Prefácio Ahistória do sábado abrange um período de seis mil anos. O sétimo dia é o sábado do Senhor. Os atos que lhe conferiram essa posição foram, em primeiro lugar, o exemplo do Criador; em segundo lugar, a bênção que Ele colocou sobre o dia; e, em terceiro lugar, a santificação ou escolha divina do dia para ser usado de forma santa. O sábado, portanto, data do início da história de nosso mundo. O primeiro a guardar o sábado no sétimo dia foi Deus, o Criador; e o primeiro sétimo dia de todas as eras foi o dia que Ele assim honrou. Logo, a maior de todas as honras possíveis pertence ao sétimo dia. Mas essa honra não se limitou ao primeiro sétimo dia da histó- ria, pois, assim que Deus descansou nesse dia, Ele o designou para uso santo, a fim de que o ser humano pudesse reverenciá-lo em memória ao Criador. Essa ordem divina é fruto da essência e conveniência das coisas e deve ter sido dada diretamente para Adão, pois ele e a esposa eram os únicos seres humanos que tinham os dias da semana para usar. Como foi dirigida a Adão ainda no estado de retidão, ela lhe foi concedida no papel de cabeça de toda a família humana. O quarto mandamento baseia toda sua autoridade nessa ordem original do Criador, e, por isso, em essência, deve representar o que Deus ordenou a Adão e Eva como representantes da raça humana. É impossível que os patriarcas fossem ignorantes acerca dos fatos e do dever de observá-lo, os quais o quarto mandamento mostra terem se originado desde o princípio, pois Adão esteve presente com eles por um período equivalente a mais da metade da dispensação cristã. Consequentemente, aqueles que andavam com Deus na observância de Seus mandamentos certamente santificavam Seu sábado. Assim, o grupo de guardadores do sétimo dia deve incluir os antigos patriarcas piedosos, e ninguém pode negar que também inclui os profetas e apóstolos. Aliás, toda a igreja de Deus mencionada nos registros da Inspiração guardava o sábado. A esse número deve ser acrescentado o Filho de Deus. Que história, então, tem o sábado do Senhor! Foi instituído no Paraíso, honrado mediante diversos milagres a cada semana ao longo de 40 anos, proclamado pelo grande Legislador no Sinai, guardado pelo Criador, por patriarcas, profetas, apóstolos e pelo Filho de Deus! Ele constitui o próprio cerne da lei de Deus; e, enquanto essa lei perdurar, a autoridade desta instituição sagrada permanecerá firme. Sendo essa a história do sétimo dia, é natural que surja a pergunta: como é que este dia foi reduzido ao pó e outro dia usurpou suas honras sagradas? Nenhuma parte da Escritura atribui tal obra ao Filho de Deus. O que a Bíblia faz, contudo, é predizer a grande apostasia dentro da igreja cristã e afirmar que o chifre pequeno, o homem da iniquidade, o que se levantaria contra a lei de Deus, imaginaria poder mudar os tempos e as leis. Este livro tem o objetivo de mostrar: (1) o relato bíblico do sábado; (2) o registro do sábado na história secular; (3) o registro da festa ao domingo e os vários passos que a levaram a usurpar o lugar do antigo sábado. O autor procurou determinar a verdade exata sobre o assunto, consultando as autoridades originais sempre que foi possível ter acesso a elas. As notas de rodapé mostram a quem ele deve, de maneira principal, os fatos apresentados nesta obra, embora elas mencionem apenas uma parte muito pequena dos livros consultados. O autor apresentou as palavras exatas dos historiadores, e procurou, de maneira consciente, expô-las de modo a fazer justiça aos escritores citados. Não é culpa do autor que a história da festa ao domingo se encontre repleta de fraudes e iniquidades para apoiá-la. Tais coisas se fazem necessárias no caso em questão, pois as reivindicações de um usurpador necessariamente se baseiam em fraude. A responsabilidade por elas repousa sobre aqueles que ousam cometer ou defender esses atos. O antigo sábado do Senhor nunca precisou desse tipo de ajuda e nunca teve sua história manchada por fraude ou falsidade. J. N. A. Battle Creek, Michigan, 18 de novembro de 1873. Capítulo 1 A Criação O"tempo", em contraste com a "eternidade", pode ser definido como aquela parte da duração mensurada pela Bíblia. Desde a primeira data do livro de Gênesis até a ressurreição dos ímpios, no fim do milênio, há um período de cerca de sete mil anos.[1] Antes do início dessa grande semana do tempo, a duração sem princípio preenche o passado; e após o fim desse período, a duração infinita se abrirá perante o povo de Deus. Eternidade é a palavra que abrange a duração sem início e sem fim. E o Ser, cuja existência abrange a eternidade, é o Único que tem imortalidade, o Rei eterno, imortal, invisível, o único Deus sábio. (Isaías 57:15; 1 Samuel 15:29; Jeremias 10:10; Miqueias 5:2; 1 Timóteo 6:16; 1:17; Salmos 90:2) Quando pareceu bem a esse Ser infinito assim fazê-lo, Ele trouxe nossa Terra à existência. Do nada, Deus criou todas as coisas,[2] "de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem". O ato da criação é o evento que marca o início da primeira semana do tempo. Aquele que poderia ter realizado toda a obra com apenas uma palavra escolheu, em vez disso, dedicar seis dias a essa obra, e alcançar Seus propósitos por meio de passos sequenciais. Tracemos os passos do Criador desde o momento em que Ele lançou os alicerces da Terra até o fim do sexto dia, quando os céus e a terra foram concluídos e "viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom". (Hebreus 11:3; Gênesis 1) No primeiro dia do tempo, Deus criou os céus e a terra. A terra, dessa forma chamada à existência, era sem forma e vazia; e escuridão total cobria a obra do Criador. Então "Disse Deus: Haja luz; e houve luz". E Deus "fez separação entre a luz e as trevas" e chamou a uma de dia e a outra de noite. (Gênesis 1:1-5; Hebreus 1) No segundo dia, "disse Deus: Haja firmamento [ou expansão, ARC] no meio das águas e separação entre águas e águas". A terra seca ainda não havia aparecido; consequentemente, a terra se encontrava coberta por água. Como não havia atmosfera, densos vapores pairavam sobre a face das águas; mas no momento em que a atmosfera foi chamada à existência pela Palavra do Criador, fazendo tais elementos se unirem para formar o ar que respiramos, a neblina e os vapores que repousavam sobre o seio das águas foram, por ela, levados para cima. Essa atmosfera ou expansão se chama céu. (Gênesis 1:6-8; Jó 37:18) No terceiro dia, Deus juntou as águas e fez a terra seca aparecer. Ao ajuntamento das águas Deus chamou de mar; o solo seco, separado das águas, foi denominado terra. "E disse: Produza a terra relva, ervas que deem semente e árvores frutíferas que deem fruto segundo a sua espécie, cuja semente esteja nele, sobre a terra. E assim se fez." "E viu Deus que isso era bom". (Gênesis 1:9-13; Salmos 136:6; 2 Pedro 3:5) No quarto dia do tempo, "Disse [...] Deus: Haja luzeiros no firmamento dos céus, para fazerem separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais, para estações, para dias e anos". "Fez Deus os dois grandes luzeiros: o maior para governar o dia, e o menor para governar a noite; e fez também as estrelas". A luz fora criada no primeiro dia da semana; e agora, no quarto dia, Deus faz com que o sol e a lua apareçam como portadores de luz, e coloca a luz sob o domínio deles. E até hoje eles continuam seguindo as ordenanças divinas, pois são Seus servos. Essa foi a obra do quarto dia. E o grande Arquiteto, ao examinar aquilo que realizara, declarou que era bom. (Gênesis 1:14-19; Salmos 119:91; Jeremias 33:25) No quinto dia, "criou, pois, Deus os grandes animais marinhos e todos os seres viventes que rastejam, os quais povoavam as águas, segundo as suas espécies; e todas as aves, segundo as suas espécies. E viu Deus que isso era bom". (Gênesis 1:20-23) No sexto dia do tempo, "fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom". Desse modo, a Terra, depois de estar preparada para seu propósito, foi preenchida com todas as ordens de seres vivos, ao passo que o ar e a água já estavam cheios de animais. A fim de completar essa nobre obra da criação, Deus providenciou a seguir um governante, o Seu representante, e colocou tudo em submissão a ele. "Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra". "Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente. E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal". Por último, Deus criou a Eva, a mãe de todos os viventes. A obra do Criador estava agora completa. "Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército". "Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom". Adão e Eva estavam no paraíso; a árvore da vida florescia na Terra; o pecado não havia entrado em nosso mundo e a morte não se encontrava aqui, pois não havia pecado. "As estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus". Assim terminou o sexto dia. (Gênesis 1:24, 31; 2:7--9, 18--22; 3:20; Jó 38:7) Notas: 1. Evidências bíblicas e da tradição acerca desse ponto podem ser consultadas em Shimeall, Bible Chronology, parte 1, cap. 6; Taylor, Voice of the Church, p. 25--30; e Bliss, Sacred Chronology, p. 199--203. 2. O Dr. Adam Clarke, em seu comentário sobre Gênesis 1:1, usa a seguinte linguagem: "[O Criador] levou à existência aquilo que, até então, não existia. Os rabinos, que são juízes legítimos em um caso de crítica a respeito de palavras de sua própria língua, são unânimes em afirmar que a palavra bara expressa o início da existência de algo, ou o ato de sair do estado de não entidade para o de entidade. [...] Tais palavras deveriam ser traduzidas: 'Deus, no princípio, criou a substância dos céus e a substância da terra, isto é, a matéria-prima, ou os primeiros elementos a partir dos quais os céus e a terra foram sucessivamente formados'". Em Pilgrimage, livro 1, cap. 2, Purchase fala da seguinte forma acerca da criação: "Nada, a não ser o nada, tinha o Senhor Todo-Poderoso do qual, com o qual e pelo qual construir esta cidade" [ou seja, o mundo]. O Dr. Gill declara: "Afirma-se que foram criados, isto é, feitos a partir do nada; pois que matéria preexistente a esse caos [do versículo 2] poderia haver a partir da qual [os céus e a terra] seriam formados?". "A criação tem de ser obra de Deus, pois nada a não ser um poder onipotente seria capaz de produzir algo a partir do nada". Comentário sobre Gênesis 1:1. João Calvino, em seu comentário sobre esse capítulo, expõe da seguinte forma o ato criador: "Seu significado é que o mundo foi feito do nada. Assim é refutada a loucura daqueles que imaginam que matéria sem forma existia desde a eternidade". A obra da criação é definida da seguinte maneira em 2 Macabeus 7:28: "Olhe o céu e a terra, e observe tudo o que neles existe Deus criou tudo isso do nada, e a humanidade foi da mesma forma criada". O fato de que esse ato criador marcou o início do primeiro dia, em vez de precedê-lo por eras praticamente infinitas, é assim confirmado em 2 Esdras 6:38: "E eu disse, ó Senhor, Tu falaste desde o início da criação, mesmo no primeiro dia, e disseste: Que os céus e a terra se façam; e Tua palavra produziu uma obra perfeita". A tradução de Wycliffe, a primeira versão para o inglês, traduz da seguinte forma Gênesis 1:1: "No princípio fez Deus do nada os céus e a terra". Capítulo 2 A Instituição do Sábado Aobra do Criador estava concluída, mas a primeira semana do tempo ainda não havia terminado. Cada um dos seis dias se distinguira um do outro pela ação do Criador sobre eles, mas o sétimo dia se tornou memorável de um modo bem diferente. "E, havendo Deus terminado no dia sétimo[1] a Sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a Sua obra que tinha feito". Contudo, uma linguagem ainda mais intensa foi usada: "[E], ao sétimo dia, descansou, e restaurou-Se [ARC; "tomou alento", ARA; "was refreshed" (foi revigorado), KJV]. (Gênesis 2:2; Êxodo 31:17) Assim, o sétimo dia da semana se tornou o dia de descanso do Senhor. Que fato notável! "O eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da terra, [que] nem Se cansa, nem Se fatiga". (Isaías 40:28) Ele não precisa de descanso, todavia está escrito: "[A]o sétimo dia, descansou, e tomou alento". Por que o registro não conta apenas que a obra do Criador cessou? Por que dedicar um dia para o descanso ao fim dessa obra? A resposta se encontra no verso seguinte. Ele estava lançando as bases de uma instituição divina, o memorial de Sua grande obra. "E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera". O quarto mandamento declara o mesmo fato: Ele "ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou". (Gênesis 2:3; Êxodo 20:11)[2] A bênção e a santificação do sétimo dia ocorreram porque Deus nele descansou. Assim, o descanso de Deus nesse dia teve como propósito lançar os fundamentos para abençoá-lo e santificá-lo. O fato de Ele ter "tomado alento" ou ter-Se "revigorado" com o descanso sugere que Deus Se deleitou no ato que lançou as bases para o memorial de Sua grande obra. O segundo ato do Criador ao instituir este memorial foi colocar Sua bênção sobre o dia de descanso. A partir de então, ele passou a ser o abençoado dia de descanso do Senhor. Um terceiro ato completou a instituição sagrada. O dia, que já havia sido abençoado por Deus, foi afinal santificado ou consagrado por Ele. Santificar é "separar, colocar à parte, destinar como santo, para uso religioso". Consagrar é "tornar santo; dedicar; separar para uso santo ou religioso".[3] O momento em que cada um desses três atos foi realizado é digno de destaque especial. O primeiro ato foi o do descanso. Ele aconteceu no sétimo dia, pois o dia foi dedicado ao descanso. O segundo e o terceiro atos ocorreram depois que o sétimo dia acabou. "Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele Ele havia descansado de toda Sua obra" (KJV) [Gn 2:3]. Portanto, foi no primeiro dia da segunda semana do tempo que Deus abençoou o sétimo dia e o separou para uso santo. A bênção e a santificação do sétimo dia se relacionam não ao primeiro sétimo dia do tempo, mas, sim, ao sétimo dia de cada semana do tempo que viria, em memória ao descanso de Deus naquele dia específico de Sua obra da criação. Com o início do tempo, Deus começou a contar os dias, dando a cada um o nome de um número ordinal. Sete dias diferentes receberam nomes diferentes. Em memória ao que Ele fez no último desses dias, Deus o separou por nome para uso santo. Tal ato trouxe à existência as semanas, ou períodos de sete dias; pois, com o sétimo dia, Ele parou de contar e, havendo determinado que aquele dia deveria ter uso santo em memória de Seu descanso, fez o ser humano começar a contagem de uma nova semana assim que o primeiro sétimo dia terminou. Assim, como Deus Se agradou de dar ao homem, ao todo, apenas sete dias diferentes, atribuindo a cada um desses dias um nome que indica seu lugar exato na semana, o ato de Ele separar um desses dias por nome (criando as semanas e dando ao homem o sábado) nunca pode se referir a um dia indefinido ou incerto, a menos que se faça uso de engano. Os dias da semana são medidos pela rotação de nossa Terra em volta de seu eixo; portanto, nosso sétimo dia só existe para os habitantes deste globo. Logo, os dias da semana foram dados para serem usados por Adão e Eva, habitantes deste planeta, e não pelos habitantes de algum outro mundo. Consequentemente, quando Deus separou um desses dias para uso santo, como memorial de Seu próprio descanso nesse dia da semana, a própria essência do ato consistia em contar a Adão que esse dia deveria ser empregado apenas para propósitos santos. Adão se encontrava no jardim de Deus, colocado ali pelo Criador para cuidar do jardim e preservá-lo. Ele também havia recebido de Deus a ordem de dominar a terra. (Gênesis 2:15; 1:28) Assim, quando o dia do Senhor chegasse, semana após semana, todas essas ocupações seculares, embora legítimas em si, deveriam ser deixadas de lado, e o dia deveria ser observado em memória do descanso do Criador. O Dr. Twisse cita Martinho Lutero da seguinte maneira: "E Martinho Lutero professa igualmente esse mesmo ponto (volume 6, sobre Gênesis 2:3). 'Conclui-se a partir disso', disse ele, 'que, se Adão houvesse permanecido em sua inocência, ainda assim teria santificado o sétimo dia, ou seja, naquele dia ensinaria seus filhos e os filhos de seus filhos qual era a vontade de Deus e como Ele deveria ser adorado; louvaria a Deus, daria ações de graças, e apresentaria ofertas. Nos outros dias lavraria o solo e cuidaria do gado.'"[4] O verbo hebraico kadash, traduzido aqui e no quarto mandamento como santificou, é definido por Gesenius: "declarar santo; santificar; instituir qualquer coisa santa, designar".[5] É usado diversas vezes no Antigo Testamento para designar uma reunião ou proclamação pública. Por exemplo, quando as cidades de refúgio foram separadas em Israel, está escrito: "Designaram [no hebraico, santificaram], pois, solenemente, Quedes, na Galileia, na região montanhosa de Naftali, e Siquém, na região montanhosa de Efraim", etc. Essa santificação, ou designação, das cidades de refúgio significa que elas haviam sido colocadas à parte para aquele propósito por meio de uma proclamação pública a Israel. Esse verbo também é usado para a designação de um jejum público e para a convocação de uma assembleia solene. Assim, lemos: "Promulgai [no hebraico, santificai] um santo jejum, convocai uma assembleia solene, congregai os anciãos, todos os moradores desta terra, para a Casa do Senhor, vosso Deus, e clamai ao Senhor". "Tocai a trombeta em Sião, promulgai [ou seja, santificai] um santo jejum, proclamai uma assembleia solene". "Disse mais Jeú: Consagrai [heb. santificai] uma assembleia solene a Baal". (Josué 20:7; Joel 1:14; 2:15; 2 Reis 10:20, 21; Sofonias 1:7) Essa assembleia a Baal foi tão pública que todos os adoradores de Baal em Israel se reuniram. Tais jejuns e assembleias solenes eram santificados ou separados por meio de uma intimação ou proclamação pública. Assim, quando Deus separou o sétimo dia para uso sagrado, era necessário que Ele anunciasse o fato aos que fariam uso dos dias da semana. Sem esse anúncio, o dia não poderia ser separado dos outros. Mas a ilustração mais marcante do significado dessa palavra se encontra no relato em que o monte Sinai foi santificado. (Êxodo 19:12, 23, ARC) Quando Deus estava prestes a pronunciar os dez mandamentos aos ouvidos de todo o Israel, Ele ordenou que Moisés descesse do monte Sinai para não deixar que o povo tocasse no monte. "Então, disse Moisés ao Senhor: O povo não poderá subir o monte Sinai, porque Tu nos tens protestado, dizendo: Marca termos ao monte e santifica-o." Voltando ao verso no qual Deus deu essa ordem a Moisés, lemos: "E marcarás limites ao povo em redor, dizendo: Guardai-vos, que não subais o monte nem toqueis o seu termo". Portanto, santificar o monte era ordenar ao povo que não tocasse nem em suas bordas, pois Deus estava prestes a descer em majestade sobre ele. Em outras palavras, santificar ou separar o monte Sinai para um uso santo significava dizer ao povo que Deus queria que o monte fosse tratado como algo sagrado para Si. Da mesma maneira, santificar o dia de descanso do Senhor era dizer a Adão que ele deveria tratar o dia como santo ao Senhor. A declaração "abençoou Deus o dia sétimo e o santificou" não é, na verdade, um mandamento para a observância desse dia, mas, sim, o registro de que tal preceito foi dado a Adão.[6] Pois como o Criador "separaria para uso santo" o dia de Seu descanso se aqueles por quem o dia seria usado não soubessem nada a esse respeito? Quem puder responder, responda. Veremos que esse ponto de vista sobre o relato de Gênesis é sustentado por todos os testemunhos da Bíblia acerca do dia de descanso do Senhor. Os fatos que já examinamos constituem a base do quarto mandamento. Assim falou o grandioso Legislador, do cume do monte fumegante: "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar". "O sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus". "Porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou". (Êxodo 20:8-11) A palavra "sábado" vem da língua hebraica e significa descanso.[7] Assim, a ordem "Lembrate do dia de sábado, para o santificar" equivale a dizer: "Lembra-te do dia de descanso, para o santificar". A explicação que se segue sustenta essa declaração: "O sétimo dia é o sábado [ou dia de descanso] do Senhor, teu Deus". A origem do dia de descanso é informada nas seguintes palavras: "Porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou". O que é ordenado no quarto mandamento é a santificação do dia de descanso do Senhor. E fica definido ali que isso deve acontecer no dia que Ele descansou da obra da criação. Além disso, o quarto mandamento chama de "sábado" o sétimo dia, que Deus abençoou e santificou; portanto, o sábado é uma instituição que data da fundação do mundo. O quarto mandamento aponta para a criação como a origem de sua obrigação; e, quando voltamos a esse ponto, descobrimos que a base do quarto mandamento foi dada a Adão, porquanto "abençoou Deus o dia sétimo e o santificou", isto é, separou para uso santo. Uma declaração afirma que "abençoou Deus o dia sétimo e o santificou" e a outra que "o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou". Essas duas afirmações se referem ao mesmo ato. Uma vez que a palavra sábado não aparece na primeira declaração, alguns argumentam que o sábado não se originou na criação, mas que apenas o sétimo dia foi santificado naquela ocasião. Com base na segunda declaração, eles argumentam que Deus não abençoou o sétimo dia em si, mas simplesmente a instituição do sábado. No entanto, ambas as declarações englobam toda a verdade. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou; e esse dia assim abençoado e santificado corresponde a Seu santo sábado, ou dia de descanso. Desse modo, o quarto mandamento estabelece a origem do sábado na criação. A segunda menção do sábado na Bíblia confirma de maneira decisiva os testemunhos já mencionados. No sexto dia da semana, Moisés, no deserto de Sim, disse a Israel: "Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor". (Êxodo 16:22,23) O que fora feito ao sétimo dia desde que Deus o abençoara e santificara como Seu dia de descanso no paraíso? Nada. O que Moisés fez ao sétimo dia para transformá-lo no descanso do santo sábado do Senhor? Nada. No sexto dia, Moisés simplesmente afirmou o fato de que o dia seguinte era o descanso do santo sábado do Senhor. O sétimo dia sempre havia ocupado essa posição desde que Deus o abençoara e santificara como Seu dia de descanso. O testemunho de nosso divino Senhor acerca da origem e do propósito do sábado tem importância especial. Ele é competente para testificar a respeito disso, pois esteve com o Pai no princípio da criação. (João 1:1-3; Gênesis 1:1,26; Colossenses 1:13-16) "O sábado foi estabelecido por causa do homem", disse Ele, "e não o homem por causa do sábado". (Marcos 2:27) A regra gramatical a seguir é digna de nota: "Um substantivo sem adjetivo é invariavelmente interpretado em sua extensão mais ampla, como por exemplo: O homem é responsável".[8] Os textos a seguir ilustram essa regra e também essa declaração de Cristo no Novo Testamento: "O homem se deita e não se levanta; enquanto existirem os céus, não acordará, nem será despertado do seu sono". "Não sobreveio a vocês tentação que não fosse comum aos homens". "Aos homens está ordenado morrerem uma só vez". (Jó 24:12; 1 Coríntios 10:13 (NVI); Hebreus 9:27) Nesses textos, "homem" e "homens" são usados sem adjetivos ou restrições, aplicando-se, portanto, a toda a humanidade. Logo, o sábado foi feito para toda a família humana, e teve origem junto com a humanidade. Mas, no original, a linguagem do Salvador é ainda mais enfática: "O sábado foi estabelecido por causa do homem e não o homem por causa do sábado". Essa construção chama a atenção para o homem Adão, que foi feito do pó da terra logo antes que o sábado do sétimo dia fosse feito para ele. Essa é uma confirmação notável do fato já destacado de que o sábado havia sido dado a Adão, o cabeça de toda a família humana. "O sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus"; contudo, Ele fez o sábado para o homem. "Deus tornou o sábado Seu por apropriação solene, a fim de que pudesse devolvê-lo a nós sob a proteção de uma lei divina, para que ninguém nos privasse dele e ficasse impune". Mas não seria possível que o ato de Deus abençoar e santificar o sétimo dia não tivesse ocorrido ao término da semana da criação? Não pode dar-se o caso de essa bênção ter sido mencionada em Gênesis porque Deus tinha a intenção de que o dia de Seu descanso fosse observado depois? Ou melhor, será que Moisés, ao escrever o livro de Gênesis muito tempo depois da Criação, não poderia ter inserido essa história da santificação do sétimo dia no registro da primeira semana, muito embora o dia em si tenha sido santificado somente em sua época? Certamente tal interpretação do registro bíblico não pode ser admitida, a menos que os fatos o exijam; mas isso seria, no mínimo, uma explicação forçada da linguagem. O relato de Gênesis, a menos que tenhamos aqui uma exceção, é uma simples narrativa de eventos. Assim, o que Deus fez em cada dia é registrado, em ordem, até o sétimo. Sem dúvida, é uma violência à narrativa afirmar que o registro correspondente ao sétimo dia tem caráter diferente daquele relacionado aos outros seis. Deus descansou no sétimo dia e o santificou porque nesse dia Ele havia descansado. A razão para Ele santificar o sétimo dia ficou estabelecida quando Seu descanso cessou. Portanto, falar que Deus não santificou o dia naquela época, mas, sim, nos dias de Moisés, além de distorcer a narrativa, é afirmar que Ele negligenciou, por 2.500 anos, fazer aquilo cujo motivo já existia desde a criação.[9] Pedimos, também, que sejam apresentados fatos para provar que o sábado foi santificado no deserto de Sim, e não na criação. E quais são os fatos que demonstram isso? Confessa-se que tais fatos não foram registrados. Sua existência é uma suposição necessária a fim de defender a teoria de que o sábado começou com a queda do maná, e não no paraíso. Será que Deus santificou o sábado no deserto de Sim? Não há nenhum indício desse fato. Pelo contrário, ele é mencionado como algo já separado por Deus. No sexto dia, Moisés disse: "Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor". (Êxodo 16:23) Certamente esse não foi o ato de instituição do sábado, mas, sim, a menção costumeira de um fato já existente. Prosseguimos para o monte Sinai. Será que Deus santificou o sábado quando proferiu os dez mandamentos? Ninguém afirma que Ele o fez. Todos admitem que Moisés mencionou esse dia, no mês anterior, como algo já conhecido. (Êxodo 16) Deus fala no Sinai sobre a santificação do sábado? Ele fala; mas, usando a mesma linguagem de Gênesis, Ele remonta a santificação do sábado, não ao deserto de Sim, mas à criação do mundo. (Êxodo 20:8-11) Fazemos a seguinte pergunta àqueles que defendem a teoria em análise: se o sábado não foi santificado na criação, mas no deserto de Sim, então por que as duas narrativas (Compare Gênesis 2:1-3 com Êxodo 20:8-11) registram a santificação do sábado na criação e omitem qualquer menção a tal fato no deserto de Sim? Além disso, por que o relato dos acontecimentos no deserto de Sim mostra que, na época, o santo sábado já existia? Em suma, como uma teoria que subverte todos os fatos registrados pode ser defendida como a verdade de Deus? Vimos que o sábado foi ordenado por Deus no fim da semana da criação. O objetivo de seu Autor é digno de atenção especial. Por que o Criador erigiu esse memorial no paraíso? Por que Ele separou dos outros dias da semana o dia que havia usado para descansar? "Porque nele", dizem as Escrituras, Deus "descansou de toda a obra que, como Criador, fizera". Um descanso subentende necessariamente um trabalho realizado. Portanto, o sábado foi ordenado por Deus como memorial da obra da criação. Consequentemente, o mandamento da lei moral referente a esse memorial, diferente de todos os outros mandamentos da lei, começa com as palavras "Lembra-te". Daremos mais valor à importância desse memorial quando, por meio das Escrituras, aprendermos que é a obra da criação que é reivindicada por seu Autor como a maior evidência de Seu eterno poder e divindade, e como o principal fato que O diferencia de todos os deuses falsos. Está escrito: "Aquele que estabeleceu todas as coisas foi Deus". "Os deuses que não fizeram os céus e a terra desaparecerão da terra e de debaixo destes céus". "Mas o Senhor é verdadeiramente Deus; ele é o Deus vivo e o Rei eterno". "O Senhor fez a terra pelo Seu poder; estabeleceu o mundo por Sua sabedoria e com a Sua inteligência estendeu os céus". "Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o Seu eterno poder, como também a Sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas". "Pois Ele falou, e tudo se fez; Ele ordenou, e tudo passou a existir". Assim, "entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem". (Hebreus 3:4; Jeremias 10:10-12; Romanos 1:20; Salmos 33:9; Hebreus 11:3) Tal é a avaliação feita pelas Escrituras da obra da criação como prova do poder eterno e da divindade do Criador. O sábado se levanta como memorial dessa grande obra. Sua observância é um ato de grato reconhecimento, por parte de Suas criaturas inteligentes, de que Ele é o Criador e de que devem tudo a Ele; e de que elas existem e foram criadas para o Seu prazer. Você percebe quão apropriada para Adão era a observância do sábado! E, após a humanidade haver caído, quão importante para seu bem-estar é se lembrar "do dia de sábado, para o santificar". Assim, o ser humano teria sido preservado do ateísmo e da idolatria, pois nunca se esqueceria de que há um Deus ao qual todas as coisas devem sua existência; nem adoraria outro Deus além do Criador. O sétimo dia, santificado por Deus no Éden, não era judaico, mas, sim, divino. Não foi o memorial da fuga de Israel do Egito, mas do descanso do Criador. Tampouco é verdade que os escritores judeus mais renomados neguem a origem primitiva do sábado ou afirmem que se trata de um memorial judaico. Citamos o historiador Josefo e Filo Judeu, seu letrado contemporâneo. Josefo, cuja obra Antiguidades dos Judeus cobre, desde o início, um período paralelo à Bíblia, ao comentar sobre o deserto de Sim, não faz nenhuma alusão ao sábado -- uma prova clara de que ele não tinha qualquer ideia de que este havia se originado naquele deserto. Mas ao contar o relato da criação, ele deu o seguinte testemunho: "Moisés relata que o mundo e tudo o que nele há foi criado em apenas seis dias, e que o sétimo dia foi um descanso e liberação do trabalho relacionado a tais atividades; é por isso que celebramos o descanso de nossos labores nesse dia e o chamamos de sábado, palavra que denota descanso na língua hebraica."[10] E Filo apresenta um enfático testemunho acerca do caráter do sábado como memorial. Ele diz o seguinte: "Mas depois que o mundo inteiro foi concluído, segundo a natureza perfeita do número seis, o Pai santificou o dia seguinte, o sétimo, exaltando-o e denominando-o santo; pois tal dia é uma celebração, não de uma cidade ou de um país, mas de toda a Terra. Ele é o único dia que se pode corretamente chamar de dia de celebração para todos os povos e data de aniversário do mundo."[11] O dia de descanso do Senhor também não era uma sombra do descanso do ser humano após se recuperar da queda. Deus sempre será adorado de maneira compreensível por Suas criaturas inteligentes. Portanto, quando Ele separou Seu dia de descanso para uso sagrado, se não fosse como memorial de Sua própria obra, mas apenas como sombra da redenção humana da queda, o real propósito de sua instituição deveria ser expresso e, em consequência, o ser humano em seu estado não caído nunca observaria o sábado com prazer, mas com profunda angústia, pois tal dia o lembraria de que logo se apostataria de Deus. Tampouco o santo e honrado dia do Senhor era uma das "ordenanças da carne [...] impostas até ao tempo oportuno de reforma", (Isaías 58:13,14; Hebreus 9:10) pois não era possível haver reforma de seres não caídos. Mas o ser humano não continuou em seu estado de retidão. O paraíso foi perdido, e, Adão, separado da árvore da vida. A maldição de Deus recaiu sobre a Terra, a morte entrou, pelo pecado, e foi transmitida a todos os homens. (Gênesis 3; Romanos 5:12) Após essa triste apostasia, não houve nenhuma outra menção ao sábado, até Moisés dizer no sexto dia: "Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor". Como objeção ao sábado, argumenta-se que não há nenhum preceito no livro de Gênesis que ordene a observância do sábado, e, em consequência, nenhuma obrigação, por parte dos patriarcas, de guardá-lo. Há um defeito nesse argumento que não é percebido por aqueles que o empregam. O livro de Gênesis não foi um conjunto de regras dado para os patriarcas seguirem. Pelo contrário, foi escrito por Moisés 2.500 anos depois da Criação, e muito tempo depois que todos os patriarcas haviam morrido. Em consequência, o fato de certos preceitos não se encontrarem em Gênesis não é evidência de que os mesmos não eram obrigatórios para os patriarcas. Assim, o livro não ordena aos seres humanos que amem a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmos; não proíbe a idolatria, a blasfêmia, a desobediência aos pais, o adultério, o roubo, o falso testemunho, nem a inveja. Quem afirmaria, com base na argumentação mencionada, que os patriarcas não tinham restrição alguma com relação a essas coisas? Sendo mero registro de fatos, escrito muito tempo depois de haverem ocorrido, não era necessário que o livro contivesse um código moral. Mas caso o livro de Gênesis tivesse sido entregue aos patriarcas como uma regra de vida, ele necessariamente precisaria ter tal código. Vale ressaltar o fato de que, assim que Moisés chega em sua própria época, no livro de Êxodo, toda a lei moral é apresentada. O relato e o povo eram então contemporâneos e, para sempre, a partir de então, a lei escrita se encontraria nas mãos do povo de Deus, como uma regra de vida e um código completo de preceitos morais. O argumento em consideração é problemático porque: (1) baseia-se no pressuposto de que o livro de Gênesis era a regra de vida dos patriarcas; (2) se levado a suas consequências, liberaria os patriarcas de cumprir todos os preceitos da lei moral, com exceção do sexto; (Gênesis 9:5,7) (3) o ato de Deus de separar Seu dia de descanso para uso santo, conforme vimos, necessariamente envolve o fato de que Ele deu um preceito relativo a esse dia a Adão, em cuja época o dia foi separado. Logo, embora o livro de Gênesis não contenha um preceito referente ao sábado, ele fornece evidências diretas de que tal preceito foi concedido ao cabeça e representante da família humana. Após falar sobre a instituição do sábado, o livro de Gênesis, em seu breve registro abrangendo 2.370 anos, não o menciona mais. Isso tem sido alardeado como grande prova de que esses homens santos, que, durante aquele período, eram perfeitos e andavam com Deus em observância a Seus mandamentos, estatutos e leis, (Gênesis 5:24; 6:9; 26:5) viviam todos em aberta profanação do dia que Deus havia abençoado e separado para uso santo. Mas o livro de Gênesis também omite qualquer referência específica à doutrina do castigo futuro, à ressurreição do corpo, à revelação do Senhor com fogo consumidor e ao juízo do grande dia. Será que esse silêncio comprovaria que os patriarcas não criam nessas solenes doutrinas? Será que tal silêncio as torna menos sagradas? É bom lembrar, também, que o sábado não é mencionado desde Moisés até Davi, um período de 500 anos, durante o qual se exigia que ele fosse guardado, sob pena de morte. Será que isso prova que ele não foi observado durante esse período?[12] O jubileu ocupava um lugar de grande proeminência no sistema simbólico ou tipológico; contudo, na Bíblia inteira, não há registro de um só caso de observância desse evento. Ainda mais surpreendente: não está registrado nenhum caso de observância do grande Dia da Expiação, muito embora a obra no santíssimo fosse a ministração mais importante ligada ao serviço do santuário terreno. Todavia, observâncias de outras festas menos importantes do sétimo mês, tão intimamente ligadas ao Dia da Expiação, como a que o precedia em dez dias e a que o sucedia, cinco dias depois, encontram-se especificamente registradas, repetidas vezes. (Esdras 3:1-6; Neemias 8:2, 9-12, 14-18; 1 Reis 8:2,65; 2 Crônicas 5:3; 7:8,9; João 7:2-14,37) Seria um sofisma argumentar, com base no silêncio a respeito do Dia da Expiação, havendo tantas situações em que a menção a ele seria praticamente exigida, que o dia nunca foi observado; de qualquer forma, esse argumento seria melhor do que o do silêncio sobre o sábado no livro de Gênesis, apresentado contra a sua observância. A contagem do tempo por semanas não deriva de nada na natureza, mas deve sua existência à ordem divina sobre o sétimo dia para que fosse usado de maneira santa, em memória do descanso do Senhor de Seus seis dias de trabalho na criação.[13] Esse período de tempo é marcado pela recorrência do dia de descanso santificado pelo Criador. Vários textos deixam claro que os patriarcas contavam o tempo em semanas e agrupamentos de sete dias. (Gênesis 29:27,28; 8:10,12; 7:4,10; 50:10; Êxodo 7:25; Jó 2:13) Não é provável concluir que eles tenham mantido a semana e esquecido o sábado, que é o único fator pelo qual a semana é marcada. O fato de a contagem das semanas ter sido conservada corretamente fica claro no episódio do deserto de Sim, quando o povo, de comum acordo, recolheu porção dobrada do Maná no sexto dia. E Moisés lhes disse: "Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor". (Êxodo 16:22,23) A brevidade do registro de Gênesis nos faz deixar de lado muitos fatos profundamente interessantes. Adão viveu 930 anos. Certamente, o fato de a família humana ter podido ver o primeiro homem, deve ter despertado, em todos, um interesse muito profundo e envolvente! Conversar com aquele que havia falado com o próprio Deus! Ouvir de seus lábios a descrição do paraíso no qual vivera! Aprender com aquele ser, criado no sexto dia, sobre os maravilhosos acontecimentos da semana da criação! Escutar de seus lábios as palavras do próprio Criador ao separar Seu dia de descanso para uso santo! E, infelizmente, familiarizar-se também com a triste história da perda do paraíso e da árvore da vida![14] Assim, não foi difícil divulgar os fatos acerca dos seis dias da criação e da santificação do dia de descanso entre a humanidade na era patriarcal. Pelo contrário, era impossível que fosse de outro modo, sobretudo entre os fiéis. De Adão a Abraão, uma sucessão de homens -- provavelmente inspirados por Deus -- preservou o conhecimento de Deus sobre a Terra. Adão viveu até Lameque, pai de Noé, ter 56 anos de idade; Lameque viveu até Sem, filho de Noé, ter 93; Sem viveu até Abraão ter 150 anos de idade. Assim chegamos até Abraão, o pai da fé. A Bíblia diz que ele obedecia à voz de Deus e cumpria Suas ordens, Seus mandamentos, Seus estatutos e Suas leis. A seu respeito, o Altíssimo deu o seguinte testemunho: "Porque Eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor e pratiquem a justiça e o juízo". (Gênesis 26:5; 18:19) O conhecimento de Deus foi preservado na família de Abraão; e descobriremos a seguir que o sábado era mencionado com familiaridade por sua descendência, como uma instituição existente. Notas: 1. "E, havendo Deus terminado no sexto dia a Sua obra, que fizera, descansou no sétimo dia" etc. é o que se lê nas versões Septuaginta, siríaca e a samaritana; "e essa deve ser considerada a versão genuína", diz o Dr. A. Clarke. Ver o comentário dele sobre Gênesis 2. 2. Em uma obra anônima intitulada Morality of the Fourth Commandment, Londres, 1652 -- que não deve ser confundida com o livro do Dr. Twisse, com o mesmo título, se encontra a seguinte passagem marcante: "O radical hebraico para sete significa plenitude, perfeição, e os judeus defendiam que há muitos mistérios no número sete. É por isso que João usa tanto esse número em Apocalipse; por exemplo: sete igrejas, sete estrelas, sete espíritos, sete candelabros, sete anjos, sele selos, sete trombetas; e assim que nos deparamos com um sétimo dia, este é abençoado; mal entramos em contato com um sétimo homem [Gn 5:24; Jd 14], e ele é transladado" (p. 7). 3. Verbetes das palavras "santificar" [sanctify] e "consagrar" [hallow] no Webster's Unabridged Dictionary, edição de 1859. A edição revisada de 1864 dá a seguinte definição: "Tornar sagrado ou santo; separar para um fim religioso ou santo; consagrar por meio de ritos apropriados; reverenciar. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou (Gn 2:3). Moisés [...] santificou Arão e suas vestes (Lv 8:30)." Worcester define o termo da seguinte forma: "Ordenar ou separar para fins sagrados; consagrar; reverenciar. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou (Gn 2:3)". 4. Morality of the Fourth Commandment, p. 56, 57, Londres, 1641. 5. Hebrew Lexicon, p. 914, ed. 1854. 6. O Comentário do Dr. Lange fala sobre isso da seguinte forma, no vol. 1, p. 197: "Se não tivéssemos nenhuma outra passagem além de Gênesis 2:3, não haveria dificuldade em deduzir, a partir dela, um preceito de observância universal do sábado, ou sétimo dia, para ser dedicado a Deus como tempo santo por toda a raça para quem a terra e a natureza foram especialmente preparadas. Sem dúvida, os primeiros seres humanos devem ter ficado sabendo disso. As palavras 'e o santificou' não fariam sentido de outro modo. Elas seriam destituídas de qualquer significado a menos que tivessem sido digiridas a alguns que receberam a ordem de santificá-lo". O Dr. Nicholas Bound, em True Doctrine of the Sabbath, Londres, 1606, página 7, afirma o seguinte a respeito da antiguidade do preceito do sábado: "Essa primeira menção do Sábado como mandamento [Êxodo 20], quando foi pronunciada dos céus pelo Senhor, não significa que o mandamento tenha sido introduzido pela primeira vez ali, assim como não significa que os outros mandamentos tiveram ali o seu início; pelo contrário, ele é tão antigo quanto a existência do sétimo dia; pois, no momento em que o dia de sábado passou a existir, nesse mesmo momento ele foi santificado, a fim de que soubéssemos que, do mesmo modo que ele foi introduzido com o primeiro homem, ele não deve sair, senão com o último homem; assim como ele passou a existir no princípio do mundo, assim deve continuar até seu fim; e assim como o primeiro sétimo dia foi santificado, da mesma forma o último também deverá ser. É como já foi dito: o sábado foi ordenado por Deus e o sétimo dia foi santificado por Ele desde o início do mundo. Esse enunciado -- cuja segunda oração explica a primeira -- mostra que, quando Deus o santificou, Ele também ordenou que fosse santificado. Portanto, veja quão antiga é a santificação desse dia, tão antiga quanto a ordem de santificá-lo, pois as duas coisas são uma só." 7. Buck's Theological Dictionary, verbete "Sabbath"; Calmet's Dictionary, verbete "Sábado". 8. Barret's Principles of English Grammar, p. 29. 9. O Dr. Twisse ilustra o caráter absurdo do ponto de vista que defende a primeira observância do sábado, em memória da cria- ção, como ocorrendo 2.500 anos depois desse acontecimento: "Lemos que quando os ilienses, habitantes de Ílio, chamada antigamente de Troia, enviaram um embaixador para Tibério, a fim de expressar suas condolências pela morte de seu pai Augusto, este, considerando o tempo do gesto inoportuno, uma vez que muito tempo se passara desde a morte, respondeu à altura, dizendo que lamentava também a perda deles, pela morte de um cavaleiro tão renomado quanto Heitor, mais de mil anos antes, nas guerras de Troia" (Morality of the Fourth Commandment, p. 198). 10. Antiguidades dos Judeus, livro 1, cap. 1, seção 1. 11. Works, vol. 1, The Creation of the World, seção 30. 12. Ver o início do capítulo 8 desta obra. 13. "A semana, outra medida primitiva, não é uma medida natural de tempo, conforme supõem alguns astrônomos e cronologistas, indicada pelas fases da lua. Ela surgiu por instituição divina na criação -- seis dias de trabalho e um de descanso sabiamente designado para o bem-estar físico e espiritual do ser humano" (Bliss' Sacred Chronology, p. 6; Hale's Chronology, vol. 1, p. 19). "Sete tem sido o número antigo e honrado entre as nações da Terra. Elas têm medido o tempo por meio de semanas desde o princípio. A origem dessa prática foi o sábado de Deus, conforme as razões apresentadas por Moisés em seus escritos' (Brief Dissertation on the first Chapters of Genesis, do Dr. Coleman, p. 26). 14. O interesse em ver o primeiro homem é expresso da seguinte forma: "Sem e Sete eram tidos em grande honra entre os homens, e assim era Adão acima de qualquer outro ser vivo na criação" (Eclesiástico 49:16). Capítulo 3 O Sábado Confiado aos Hebreus Delinearemos agora a história da verdade divina, por muitas eras, em conexão quase que exclusiva com a família de Abraão. Com o objetivo de expor a verdade diante da alegação de que o sábado pertence somente aos hebreus, e de justificar a conduta de Deus com a humanidade ao deixar as nações apóstatas seguirem os próprios caminhos, vamos examinar com cuidado a Bíblia, em busca dos motivos que dirigiram a providência divina a escolher a família de Abraão como depositária da verdade divina. O mundo antediluviano fora muito favorecido por Deus. O período de vida de cada geração era doze vezes maior do que o das pessoas da atualidade. Durante quase mil anos, Adão, que conversara com Deus no paraíso, permaneceu com a humanidade. Antes da morte de Adão, Enoque começou sua santa caminhada de trezentos anos e foi trasladado sem ver a morte. O exemplo de piedade de Enoque foi um poderoso testemunho para os antediluvianos em favor da verdade e da justiça. Ademais, o Espírito de Deus lutava para salvar a humanidade, mas a perversidade do ser humano superou toda a bondosa ação refreadora do Espírito Santo. "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração". Até os filhos de Deus aderiram à apostasia generalizada. Por fim, apenas uma família, dentre todas, continuou a ser adoradora do Altíssimo. (Gênesis 2-6; Hebreus 11:4-7; 1 Pedro 3:20; 2 Pedro 2:5) Então veio o dilúvio, trazendo a destruição e varrendo do mundo seus ímpios habitantes. (Gênesis 7; Mateus 24:37-39; Lucas 17:26,27; 2 Pedro 3:5,6) Com certeza seria de se pensar que uma demonstração tão terrível da justiça divina seria suficiente para conter a impiedade por eras. Sem dúvida, a família de Noé não poderia se esquecer tão cedo dessa lição alarmante. Mas, infelizmente, a revolta e a apostasia logo reapareceram, e os seres humanos deixaram a Deus para adorar a ídolos. A fim de contrariar a ordem divina de separar a família humana em diversas nações, (Deuteronômio 32:7, 8; Atos 17:26) os seres humanos se reuniram em um grande ato de rebelião na planície de Sinar. "Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra". Então, Deus os confundiu em sua impiedade, e os espalhou para outros lugares, por toda a face da Terra. (Gênesis 11:1-9)[1] Os homens não queriam guardar o conhecimento de Deus; por isso, o Senhor os entregou a uma mente perversa e permitiu que transformassem a verdade divina em mentira, e adorassem e servissem a criatura em lugar do Criador. Essa foi a origem da idolatria e da apostasia dos gentios. (Romanos 1:18-32; Atos 14:16,17; 7:29,30) No meio dessa apostasia amplamente disseminada, foi encontrado um homem cujo coração era fiel a Deus. Abraão foi escolhido dentre uma família idólatra para ser depositário da verdade divina, o pai da fé, herdeiro do mundo e amigo de Deus. (Gênesis 12:1-3; Josué 24:2,3,14; Neemias 9:7,8; Romanos 4:13-17; 2 Crônicas 20:7; Isaías 41:8; Tiago 2:23) Quando os adoradores de Deus eram achados apenas na família de Noé, o Senhor permitiu que o restante da humanidade perecesse no dilúvio. Agora que, mais uma vez, os adoradores de Deus se reduziram praticamente a uma só família, Deus permitiu que as nações idólatras seguissem os próprios caminhos, e tomou a família de Abraão como Sua herança particular. "Porque Eu o escolhi" -- disse Deus -- "para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor e pratiquem a justiça e o juízo". (Gênesis 18:19) A fim de poderem preservar o conhecimento da verdade divina, a memória e a adoração do Altíssimo na Terra, eles deveriam ser um povo separado de toda a humanidade, habitando em uma terra própria. Com o objetivo de que ele se separasse dos pagãos ao redor, Deus concedeu a Abraão o rito da circuncisão e, posteriormente, toda a lei cerimonial à sua posteridade. (Gênesis 17:9-14; 34:15; Atos 10:28; 11:2,3; Efésios 2:12-19; Números 23:9; Deuteronômio 33:27,28) Mas eles só poderiam possuir a terra prometida quando se enchesse a taça da iniquidade de seus habitantes, os amorreus, e estes fossem, por essa razão, expulsos diante deles. O horror da grande escuridão e a fumaça vistos por Abraão em visão prefiguravam a fornalha de ferro e a amarga servidão no Egito. A família de Abraão deveria descer até lá. Breve prosperidade e longa e terrível opressão se seguiriam. (Gênesis 15; Êxodo 1-5; Deuteronômio 4:20) Por fim, o poder do opressor foi quebrado e o povo de Deus, libertado. O fim dos 430 anos desde a promessa feita a Abraão marca a hora do livramento da sua descendência. (Êxodo 12:29-42; Gálatas 3:17) A nação de Israel saiu do Egito como o tesouro peculiar de Deus, a fim de que Ele lhes desse o sábado, Sua lei e a Si próprio. O salmista testifica de que Deus "conduziu com alegria o Seu povo e, com jubiloso canto, os Seus escolhidos. Deu-lhes as terras das nações, e eles se apossaram do trabalho dos povos, para que Lhe guardassem os preceitos e Lhe observassem as leis". O Deus Altíssimo disse: "Eu Sou o Senhor, que vos santifico, que vos tirei da terra do Egito, para ser o vosso Deus". (Salmos 105:43-45; Levítico 22:32,33; Números 15:41) Isso não quer dizer que os mandamentos de Deus, o sábado e Ele próprio não tivessem existência anterior, ou que o povo ignorasse o Deus verdadeiro e Sua lei; pois o sábado foi destinado para uso santo antes da queda do homem; os mandamentos de Deus, Seus estatutos e Suas leis foram guardados por Abraão; e quando alguns dos próprios israelitas transgrediram o sábado, o povo foi reprovado com a pergunta: "Até quando recusareis guardar os Meus mandamentos e as Minhas leis?" (Gênesis 2:2,3; 26:5; Êxodo 16:4,27,28; 18:16) E quanto ao Altíssimo, o salmista exclama: "Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, Tu és Deus". (Salmos 90:2) No entanto, deveria haver uma aliança pública formal entre o povo de Deus, Ele mesmo, Sua lei e o sábado. (Êxodo 19:3-8; 24:3-8; Jeremias 3:14 comparado com a última frase de Jeremias 31:32) Mas nem o sábado, nem a lei, nem o grande Legislador se tornaram judeus por sua ligação com os hebreus. De fato, o Legislador Se tornou o Deus de Israel, (Êxodo 20:2; 24:10) e qual gentio poderia se recusar a adorá-Lo por esse motivo? Mas, o sábado continuou a ser o sábado do Senhor, (Êxodo 20:10; Deuteronômio 5:14; Neemias 9:14) e a lei continuou a ser a lei do Altíssimo. No mês seguinte à travessia do Mar Vermelho, os hebreus chegaram ao deserto de Sim. É nesse ponto da narrativa que Moisés menciona, pela segunda vez, o dia santo de descanso do Criador. O povo murmurou pedindo pão: "Então, disse o Senhor a Moisés: Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá e colherá diariamente a porção para cada dia, para que Eu ponha à prova se anda na Minha lei ou não. Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem; e será o dobro do que colhem cada dia. [...] Tenho ouvido as murmurações dos filhos de Israel; dize-lhes: Ao crepúsculo da tarde, comereis carne, e, pela manhã, vos fartareis de pão, e sabereis que Eu Sou o Senhor, vosso Deus. À tarde, subiram codornizes e cobriram o arraial; pela manhã, jazia o orvalho ao redor do arraial. E, quando se evaporou o orvalho que caíra, na superfície do deserto restava uma coisa fina e semelhante a escamas, fina como a geada sobre a terra. Vendo-a os filhos de Israel, disseram uns aos outros: Que é isto? Pois não sabiam o que era. Disse-lhes Moisés: Isto é o pão que o Senhor vos dá para vosso alimento. Eis o que o Senhor vos ordenou: Colhei disso cada um segundo o que pode comer, um gômer por cabeça, segundo o número de vossas pessoas; cada um tomará para os que se acharem na sua tenda. Assim o fizeram os filhos de Israel; e colheram, uns, mais, outros, menos. Porém, medindo-o com o gômer, não sobejava ao que colhera muito, nem faltava ao que colhera pouco, pois colheram cada um quanto podia comer. Disse-lhes Moisés: Ninguém deixe dele para a manhã seguinte. Eles, porém, não deram ouvidos a Moisés, e alguns deixaram do maná para a manhã seguinte; porém deu bichos e cheirava mal. E Moisés se indignou contra eles. Colhiam-no, pois, manhã após manhã, cada um quanto podia comer; porque, em vindo o calor, se derretia. Ao sexto dia, colheram pão em dobro, dois gômeres para cada um;[2] e os principais da congregação vieram e contaram-no a Moisés. Respondeu-lhes ele: Isto é o que disse o Senhor:[3] Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor; o que quiserdes cozer no forno, cozei-o, e o que quiserdes cozer em água, cozei-o em água; e tudo o que sobrar separai, guardando para a manhã seguinte. E guardaram-no até pela manhã seguinte, como Moisés ordenara; e não cheirou mal, nem deu bichos. Então, disse Moisés: Comei-o hoje, porquanto o sábado é do Senhor;[4] hoje, não o achareis no campo. Seis dias o colhereis, mas o sétimo dia é o sábado; nele, não haverá. Ao sétimo dia, saíram alguns do povo para o colher, porém não o acharam. Então, disse o Senhor a Moisés: Até quando recusareis guardar os Meus mandamentos e as Minhas leis? Considerai que o Senhor vos deu o sábado; por isso, Ele, no sexto dia, vos dá pão para dois dias; cada um fique onde está, ninguém saia do seu lugar no sétimo dia. Assim, descansou o povo no sétimo dia." (Êxodo 16) Essa narrativa mostra: 1) que Deus tinha uma lei e mandamentos antes de dar o maná; 2) que, ao dar pão do céu para Seu povo, Deus tinha o desígnio de provar se eles respeitavam Sua lei; 3) que dentro dessa lei se encontrava o santo sábado, pois o teste relativo a andar na lei dizia respeito diretamente ao sábado; e quando Deus disse: "Até quando recusareis guardar os Meus mandamentos e as Minhas leis?", Ele estava Se referindo ao sábado, que eles haviam violado; 4) que, ao provar o povo com respeito a essa lei que já existia, Moisés não apresentou nenhum preceito novo sobre o sábado, mas permaneceu em silêncio acerca do preparo para o dia até que o povo, por vontade própria, recolhesse uma porção dobrada no sexto dia; 5) que, mediante esse ato, o povo provou não somente que conhecia o sábado, mas também que estava disposto a guardá-lo;[5] 6) que a contagem da semana, cuja evidência é vista durante a era patriarcal, (Gênesis 7:4, 10; 8:10, 12; 29:27, 28; 50:10; Êxodo 7:25; Jó 2:13) havia sido preservada corretamente, pois o povo sabia quando o sexto dia havia chegado; 7) que, caso houvesse qualquer dúvida a esse respeito [isto é, se a contagem semanal se havia perdido desde a criação], a queda do maná durante os seis dias da semana, sua retenção no sétimo dia e a preservação, no sábado, do necessário para esse dia, teriam resolvido a questão sem deixar nenhum lugar para dúvidas;[6] 8) que não houve nenhum ato que instituísse o sábado no deserto de Sim; pois Deus não fez dele Seu dia de descanso nessa ocasião, nem o abençoou e santificou ali. Pelo contrário, o relato mostra que o sétimo dia já era o dia de descanso santificado pelo Senhor;[7] 9) que a obrigação de guardar o sábado já existia e era conhecida antes da queda do maná, pois o vocabulário usado subentende a existência de tal obrigação, e não contém uma nova ordem, o que ocorre só depois de algumas pessoas transgredirem o sábado. Assim, Deus diz a Moisés: "Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem", mas não fala sobre o sétimo. E no sexto dia, Moisés fala ao povo: "Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor", mas não ordena que eles o observem. Sobre o sétimo dia, ele afirma que é o sábado e que ninguém encontraria maná no campo. "Seis dias o colhereis, mas o sétimo dia é o sábado; nele, não haverá". Em tudo isso, nenhum preceito é estabelecido; todavia, a existência de um preceito é claramente subentendida; 10) que, quando algumas pessoas violaram o sábado, estas foram repreendidas com uma linguagem que implicava, com clareza, uma transgressão prévia do preceito: "Até quando recusareis guardar os Meus mandamentos e as Minhas leis?"; 11) e que essa repreensão, por parte do Legislador, refreou por um tempo a transgressão do povo. "Considerai que o Senhor vos deu o sábado; por isso, Ele, no sexto dia, vos dá pão para dois dias;[8] cada um fique onde está, ninguém saia do seu lugar no sétimo dia".[9] Deus confiou o sábado aos hebreus como um legado especial. O mesmo foi, nessa ocasião, dado a eles; ele não foi criado para eles. O sábado foi criado para o homem ao fim da primeira semana do tempo; mas depois que todas as outras nações se afastaram do Criador para adorar ídolos, ele foi dado ao povo hebreu. Isso também não prova que todos os hebreus o haviam desconsiderado até aquele momento, pois Cristo usa a mesma linguagem acerca da circuncisão. Ele diz: "Pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas)". (João 7:22) No entanto, Deus havia dado essa ordenança a Abraão e sua família 400 anos antes de concedê-la a Moisés, e eles a haviam conservado.[10] As palavras "o Senhor vos deu o sábado" indicam um ato solene de confiar um tesouro aos cuidados deles. Como isso foi feito? Nenhum ato de instituição do sábado ocorreu naquele momento. Nenhum preceito ordenando sua observância foi dado até que algumas pessoas o transgrediram, momento em que ele foi, então, mencionado em forma de repreensão, evocando uma obrigação prévia e a transgressão de uma lei existente. Esse ponto de vista certamente é fortalecido pelo fato de que, na ocasião, nenhuma explicação foi dada ao povo acerca da instituição do sábado. Tal fato indica que eles já tinham algum conhecimento acerca do sétimo dia. Mas, então, como Deus lhes deu o sábado? Ele o fez, em primeiro lugar, ao livrá-los do jugo abjeto do Egito, sob o qual os hebreus eram uma nação de escravos. E segundo, dando-lhes alimento de forma a impor uma forte obrigação de guardar o sábado. Por 40 anos Ele lhes deu pão do céu, mandando-o por seis dias e deixando de enviá-lo no sétimo, preservando o alimento para eles durante o sábado. Foi assim que o sábado lhes foi especialmente confiado. Como um presente para os hebreus, o grande memorial do Criador se tornou um sinal entre eles e Deus. "Também lhes dei os Meus sábados, para servirem de sinal entre Mim e eles, para que soubessem que Eu Sou o Senhor que os santifica". O propósito do sinal é indicado: tornar conhecido o verdadeiro Deus. E as Escrituras nos apresentam a razão por que tal sinal teria esse fim: "Entre Mim e os filhos de Israel é sinal para sempre; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento". (Ezequiel 20:12; Êxodo 31:17) A instituição em si simbolizava que Deus havia criado os céus e a terra em seis dias e descansara no sétimo. Sua observância pelo povo queria dizer que o Criador era seu Deus. Que sinal repleto de significado! O sábado era um sinal entre Deus e os filhos de Israel porque só eles adoravam o Criador. Todas as outras nações haviam se afastado Dele para buscar "deuses que não fizeram os céus e a terra". (Jeremias 10:10-12) Por essa razão, o memorial do grande Criador foi confiado aos hebreus e se tornou um sinal entre eles e o Altíssimo. O sábado, dessa forma, representava um elo de ouro unindo o Criador a Seus adoradores. Notas: 1. Josefo, Antiguidades, livro 1, cap. 4. Isso aconteceu nos dias de Pelegue, que nasceu cerca de cem anos após o dilúvio. Gênesis 10:25 comparado com 11:10--16; Ant., livro 1, cap. 6, seção 4. 2. A respeito deste versículo, o Dr. A. Clarke comenta: "No sexto dia, eles recolheram o dobro do normal. Assim o fizeram com o objetivo de fazer provisão para o sábado". 3. A Bíblia Douay diz: "Amanhã é o descanso do sábado santificado ao Senhor". O Dr. Clarke comenta o seguinte acerca desse texto: "Amanhã é o repouso, o santo sábado do Senhor. Não há nada no texto, nem no contexto, que pareça sugerir que o sábado foi, naquela ocasião, dado pela primeira vez aos israelitas, como alguns supõem. Pelo contrário, ele é mencionado como algo perfeitamente conhecido, pelo fato de ter sido observado de forma generalizada. O mandamento, de fato, pode ser considerado como sendo aqui renovado, uma vez que eles poderiam supor que, devido à condição instável do deserto, estariam isentos de guardá-lo. Portanto, constatamos que: (1) Deus instituiu o sábado quando terminou a criação; (2) quando tirou o povo do Egito, Ele refor- çou sua estrita observância; (3) e ao entregar a Lei, Deus transformou o dia na décima parte da Lei, tamanha a importância que essa instituição tem aos olhos do Ser supremo!" Richard Baxter, célebre teólogo do século 17 e defensor categórico da anulação do quarto mandamento, afirma com clareza a origem do sábado em sua obra Divine Appointment of the Lord's Day: "Por que Deus começaria, dois mil anos depois [da criação do mundo], a dar o sábado ao ser humano, com a alegação de haver descansado da criação do mundo nesse dia, se nunca antes tivesse convidado a humanidade para essa celebração? E não há dúvida que o sábado foi observado na queda do maná, antes da lei ter sido dada. Assim, qualquer cristão pensante deve julgar: [...] (1) se a razão original para a observância do sábado seria o fato do maná não cair nesse dia ou o fato de Deus haver descansado após a criação; (2) e, caso tivesse sido a primeira razão, se a Bíblia não o teria dito: Lembra-te do dia de sábado, para o santificar, pois em seis dias o maná caiu, mas não no sétimo, em vez de 'porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, [...] e ao sétimo dia descansou'. E ainda é acrescentado: 'por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado, e o santificou'. Diante disso, considere se esse motivo adicional não é evidência suficiente de que o dia já era santificado antes, e por essa razão Deus não enviou o maná no sábado e proibiu as pessoas de sairem para colhê-lo" (Practical Works, vol. 3, p. 784, ed. 1707). 4. A Bíblia Douay traz: "Porque é o Sábado do Senhor". 5. Já se alegou que Deus, por um milagre, igualava a porção de cada um nos cinco dias e a dobrava no sexto, de forma que a ação do povo não tinha nenhuma implicação sobre o sábado. Mas a porção igual de cada um nos cinco dias não era compreendida dessa maneira por Paulo. Ele declarou: "suprindo a vossa abundância, no presente, a falta daqueles, de modo que a abundância daqueles venha a suprir a vossa falta, e, assim, haja igualdade, como está escrito: O que muito colheu não teve demais; e o que pouco, não teve falta" (2 Coríntios 8:14, 15). Outra evidência de que a porção dobrada era resultado da ação do povo é confirmada por Moisés, ao este afirmar que "[a]o sexto dia, colheram pão em dobro" (Êxodo 16:22). 6. Por meio desse milagre triplo, que ocorreu semanalmente ao longo de 40 anos, o grande Legislador tornou distinto Seu dia santo. O povo estava, então, admiravelmente preparado para ouvir o quarto mandamento, que prescrevia a observância do próprio dia em que o Senhor havia descansado (Êxodo 16:35; Josué 5:12; Êxodo 20:8--11). 7. O 12º capítulo de Êxodo narra a origem da Páscoa. Ele é fortemente contrastante com Êxodo 16, que alguns supõem tratar da origem do sábado. Se o leitor comparar os dois capítulos, verá a diferença entre a origem de uma instituição, conforme apresentada em Êxodo 12, e uma referência familiar a uma instituição existente, como apresentada em Êxodo 16. Se comparar, também, Gênesis 2 com Êxodo 12, o leitor verá que um narra a origem do sábado da mesma maneira que o outro narra a origem da Páscoa. 8. Essa declaração subentende, em primeiro lugar, a queda de uma quantidade maior naquele dia e, segundo, sua preservação para as necessidades do sábado. 9. Essa deve ser uma referência à saída para colher o maná, conforme indica o contexto, pois as assembleias religiosas no sábado eram ordenadas e observadas (Levítico 23:3; Marcos 1:21; Lucas 4:16; Atos 1:12; 15:21). 10. Gênesis 17; 34; Êxodo 4. Afirma-se que Moisés deu a circuncisão aos hebreus; mas é interessante notar que sua primeira menção a essa ordenança é puramente casual, subentendendo claramente um conhecimento já existente do rito por parte do povo. Está escrito: "Esta é a ordenança da Páscoa: nenhum estrangeiro comerá dela. Porém todo escravo comprado por dinheiro, depois de o teres circuncidado, comerá dela" (Êxodo 12:43, 44). De maneira semelhante, quando o sábado foi dado a Israel, o povo não era ignorante acerca dessa instituição sagrada. Capítulo 4 O Quarto Mandamento Nós agora nos aproximamos do registro daquele evento sublime, a descida pessoal do Senhor sobre o monte Sinai.[1] Conforme observamos, o 16º capítulo de Êxodo é notável porque, nele, vemos que Deus deu o sábado a Israel; o 19º capítulo é igualmente notável porque, ali, está registrado que Deus entregou a Si mesmo ao povo, ao desposá-lo solenemente como nação santa; e o mesmo pode ser dito do 20º capítulo, pois nele testemunhamos o ato do Altíssimo de entregar Sua lei a Israel. É costume acusar o sábado e a lei de serem judeus por terem sido entregues a Israel. Seria necessário, então, falar também contra o Criador, que os tirou do Egito para ser o Deus deles e que Se denominava Deus de Israel. (Êxodo 24:10; Levítico 22:32,33; Números 15:41; Isaías 41:17) Os hebreus foram honrados quando o sábado e a lei lhes foram confiados; o sábado, a lei e o Criador, porém, não se tornaram judeus por causa desse ato. Os autores das Sagradas Escrituras falam sobre a elevada posição em que Israel foi colocado quando a lei de Deus lhe foi confiada. "Mostra a Sua palavra a Jacó, as Suas leis e os Seus preceitos a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação; todas ignoram os Seus preceitos. Aleluia!" "Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus". "São israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!" (Salmos 147:19,20; Romanos 3:1, 2; 9:4,5)[2] Depois que o Deus Altíssimo fez uma aliança solene com Seu povo, transformando-o em Seu tesouro peculiar na Terra, (Êxodo 19; Deuteronômio 7:6; 14:2; 2 Samuel 7:23; 1 Reis 8:53; Amós 3:1,2) os israelitas vieram do arraial para se encontrarem com Deus. "Todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo; a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente". Do meio desse fogo, Deus proclamou as dez ordenanças de Sua lei. (Êxodo 20:1-17; 34:28; Deuteronômio 5:4-22; 10:4) O quarto desses preceitos é a grandiosa lei do sábado. Assim falou o grande Legislador: "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou." O valor que o Legislador colocou sobre o sábado é visto no fato de que Ele o considerou digno de um lugar na lei dos Dez Mandamentos, fazendo com que tal mandamento fosse posto no meio de nove preceitos morais imutáveis. E não se trata de uma honra de pequena importância, o Altíssimo, ao nomear, um por um, os grandes princípios da moralidade, até concluí- -los, sem acrescentar nenhum outro, (Deuteronômio 5:22) incluir em seu número a observância do sagrado dia de descanso. Tal preceito é expressamente dado para impor a observância do grande memorial do Criador; e, diferente de todos os outros, este mandamento remonta sua obrigação à Criação, onde o memorial foi ordenado. O sábado deve ser lembrado e santificado porque Deus o santificou, isto é, designou-o para uso santo, no final da primeira semana do tempo. E essa santificação do dia de descanso, quando o primeiro sétimo dia terminou, foi o ato solene de separar esse dia para os tempos vindouros, em memória do descanso do Criador. Assim, o quarto mandamento remonta à instituição do sábado no paraíso e a engloba, ao passo que a santificação do sábado no paraíso se estende por todo o tempo por vir. O relato acerca do deserto de Sim consolida, de maneira admirável, a união entre os dois. Pois, no deserto de Sim, antes da entrega do quarto mandamento, lá estava o santo sábado do Senhor, como uma ordenança cuja obrigação já existia, embora nenhum mandamento nessa narrativa crie tal obrigação. Ela deriva da mesma fonte do quarto mandamento, a saber, a santificação do sábado no paraíso, mostrando que já era um dever existente, e não um novo preceito. Portanto, nunca se deveria esquecer que o quarto mandamento não fundamenta sua obrigação na experiência do deserto de Sim, mas na criação -- uma prova decisiva de que o sábado não surgiu no deserto de Sim. O quarto mandamento é notavelmente explícito. Ele abrange, em primeiro lugar, um preceito: "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar"; em seguida, ele apresenta uma explicação do preceito: "Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro"; terceiro, ele expõe os motivos que embasam o preceito, mencionando a origem da instituição e os próprios atos que o criaram -- motivos cuja validade se firma no exemplo[3] do próprio Legislador: "porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou". Assim, o dia de descanso do Senhor se distingue dos seis dias nos quais Ele trabalhou. A bênção e a santificação pertencem ao dia de descanso do Criador. Logo, não pode haver nenhuma indefinição no preceito. Não se trata meramente de um dia em sete, mas, sim, do dia, dentre os sete, no qual o Criador descansou e sobre o qual Ele colocou Sua bênção, a saber, o sétimo dia.[4] E esse dia é precisamente indicado por meio do nome com que Deus o designou: "o sétimo dia é o sábado [isto é, o dia de descanso] do Senhor, teu Deus". Pode-se claramente comprovar que o sétimo dia do quarto mandamento é o mesmo sétimo dia do Novo Testamento. No relato do sepultamento de nosso Senhor, Lucas escreveu assim: "Era o dia da preparação, e começava o sábado. As mulheres que tinham vindo da Galileia com Jesus, seguindo, viram o túmulo e como o corpo fora ali depositado. Então, se retiraram para preparar aromas e bálsamos. E, no sábado, descansaram, segundo o mandamento. Mas, no primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo, levando os aromas que haviam preparado." (Lucas 23:54-56; 24:1) Lucas testemunha que as mulheres guardaram o "sábado", descansando "segundo o mandamento". O mandamento diz: "o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus". Esse dia, assim observado, foi o último, ou o sétimo dia da semana, pois o dia seguinte (Ver também Mateus 28:1; Marcos 16:1,2) foi o primeiro dia da semana. O testemunho de Neemias é muito interessante. "Desceste sobre o monte Sinai, do céu falaste com eles e lhes deste juízos retos, leis verdadeiras, estatutos e mandamentos bons. O Teu santo sábado lhes fizeste conhecer; preceitos, estatutos e lei, por intermédio de Moisés, Teu servo, lhes mandaste". (Neemias 9:13,14) É notável a afirmação de que Deus lhes fez conhecer o sábado quando Ele desceu sobre o monte, pois os filhos de Israel já tinham posse do sábado quando se posicionaram ao redor do Sinai. Essas palavras devem, portanto, se referir ao detalhamento completo da instituição sabática, dado por intermédio do quarto mandamento. E note a expressão: "o Teu santo sábado lhes fizeste conhecer",[5] em vez de "fizeste o sábado para eles" -- uma linguagem que indica, com clareza, sua existência prévia, e que direciona a mente para o descanso do Criador como sendo a origem da instituição sabática.[6] A obrigação moral do quarto mandamento, negada com tanta frequência, pode ser claramente demonstrada por meio da referência à origem de todas as coisas. Deus criou o mundo e trouxe à existência o ser humano para nele habitar. Ao homem, deu vida, fôlego e tudo o mais. Portanto, o ser humano deve todas as coisas a Deus. Cada faculdade de sua mente, cada capacidade de seu ser, toda sua força e todo o seu tempo pertencem, por direito, ao Criador. Por isso, foi por Sua benevolência que o Criador deu ao homem seis dias, para que este fizesse uso deles para suprir suas próprias necessidades. E, ao separar o sétimo dia para uso santo, em memória de Seu próprio descanso, o Altíssimo estava reservando para Si apenas um dos sete dias, quando teria o direito de reivindicar todos eles como Seus. Assim, em vez de o sétimo dia ser um presente do homem a Deus, são os seis dias que são um presente de Deus ao homem. O quarto mandamento não exige que o ser humano dê a Deus algo que pertença ao homem, mas, sim, que o homem não se aproprie de algo que Deus reservou para a Sua própria adoração. Observar esse dia é render a Deus aquilo que já é Dele; apropriar-nos desse dia é simplesmente roubar a Deus. Notas: 1. O fato de que o Senhor esteve ali, em pessoa, com Seus anjos, além da narrativa em Êxodo 19:20, 32--34, pode ser conferido também nos seguintes testemunhos: Deuteronômio 33:2; Juízes 5:5; Neemias 9:6--13; Salmos 68:17. 2. As palavras seguintes, escritas por Guilherme Miller, apresentam o assunto em luz clara: "Eu digo, e creio ter respaldo bíblico, que a lei moral nunca foi dada de maneira exclusiva aos judeus como povo; mas, por um tempo, eles foram os guardiões dela. E por meio deles, a lei, os oráculos e o testemunho nos foram entregues. Confira o claro raciocínio de Paulo nos capítulos 2, 3 e 4 de Romanos a esse respeito" (Miller's Life and Views, p. 161). 3. Aquele que criou o mundo no primeiro dia da semana e terminou sua organização em seis dias, descansou no sétimo dia e foi revigorado (Gênesis 1 e 2; Êxodo 31:17). 4. A esse fato, porém, objeta-se que, em consequência da rotação da Terra sobre o próprio eixo, o dia começa mais cedo no Oriente do que aqui e, portanto, não existiria um sétimo dia definitivo para o mundo inteiro. Para satisfazer a esses opositores, teríamos que imaginar uma Terra que não girasse. Mas, nesse caso, em vez de remover a dificuldade, não haveria, de forma alguma, nenhum sétimo dia, pois um lado do globo teria dia perpétuo e o outro, noite perpétua. A verdade é que tudo depende da rotação da Terra. Deus fez o sábado para o homem [Marcos 2:27]; e fez o homem para habitar sobre toda a face da Terra [Atos 17:26]; Ele fez a Terra girar em volta do próprio eixo para que ela marcasse os dias da semana, levando o sol a brilhar sobre a Terra à medida que ela gira do oeste para o leste, de modo que o dia passa pelo mundo de leste a oeste. Sete desses movimentos de rotação formam uma semana; o sétimo leva o sábado ao mundo inteiro. 5. Esta expressão é ilustrada de maneira conspícua na declaração de Ezequiel 20:5, a qual afirma que Deus Se fez conhecer a Israel no Egito. Tal vocabulário não pode significar que o povo ignorava a existência do Deus verdadeiro -- muito embora alguns ímpios dentre eles até pudessem desconhecer ao Senhor -- pois os hebreus eram o povo peculiar de Deus desde os dias de Abraão (Êxodo 2:23--25; 3:6, 7; 4:31). A linguagem subentende a existência prévia, tanto do Legislador, quanto do sábado, quando afirma que Deus lhes "fez conhecer" a Seu povo. 6. Nunca devemos esquecer que o termo "sábado" significa "dia de descanso"; o sábado do Senhor é o dia de descanso do Senhor; logo, a expressão "Teu santo sábado" conduz a mente ao dia de descanso do Criador e ao Seu ato de abençoá-lo e santificá-lo. Capítulo 5 O Sábado Escrito pelo Dedo de Deus Quando a voz do Santo cessou, "o povo estava de longe, em pé; Moisés, porém, se chegou à nuvem escura onde Deus estava". Segue-se um breve diálogo (Êxodo 20-24) no qual Deus entrega a Moisés uma série de preceitos, os quais, como uma amostra dos estatutos dados por seu intermédio, podem ser classificados da seguinte forma: preceitos cerimoniais, que apontavam para as coisas por vir; preceitos legais, direcionados ao governo civil da nação; e preceitos morais, declarando, de outras formas, os dez mandamentos. Nesse breve diálogo, o sábado não é esquecido: "Seis dias farás a tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro." (Êxodo 23:12) Esse texto bíblico fornece uma evidência implícita de que o sábado foi feito para a humanidade e para as criaturas que compartilham dos labores humanos. O estrangeiro e o forasteiro deveriam guardá-lo, e o sábado serviria para o alento deles. (Ver também Êxodo 20:10; Deuteronômio 5:14; Isaías 56) Mas as mesmas pessoas não poderiam participar da Páscoa até que se tornassem membros da igreja hebraica por meio da circuncisão. (Êxodo 12:43-48) Quando Moisés voltou para junto do povo, ele repetiu todas as palavras do Senhor. A uma voz, os israelitas exclamaram: "Tudo o que falou o Senhor faremos". Então Moisés escreveu todas as palavras do Senhor. "E tomou o livro da aliança e o leu ao povo; e eles disseram: Tudo o que falou o Senhor faremos e obedeceremos". Então "tomou Moisés aquele sangue, e o aspergiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o Senhor fez convosco". (Êxodo 24:3-8; Hebreus 9:18-20) Dessa maneira, Deus preparou o caminho para derramar um segundo sinal de honra sobre Sua lei: "Então, disse o Senhor a Moisés: Sobe a mim, ao monte, e fica lá; dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos que escrevi, para os ensinares. [...] Tendo Moisés subido, uma nuvem cobriu o monte. E a glória do Senhor pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu por seis dias; ao sétimo dia, do meio da nuvem[1] chamou o Senhor a Moisés. O aspecto da glória do Senhor era como um fogo consumidor no cimo do monte, aos olhos dos filhos de Israel. E Moisés, entrando pelo meio da nuvem, subiu ao monte; e lá permaneceu quarenta dias e quarenta noites." (Êxodo 24:12,15-18) Durante esses quarenta dias, Deus mostrou a Moisés um modelo da arca dentro da qual seria colocada a lei que Ele havia escrito em pedra, do propiciatório que ficaria em cima da lei, e do santuário no qual a arca seria depositada. Também ordenou o sacerdócio, cujos membros ministrariam no santuário diante da arca. (Êxodo 25:31) Depois que essas coisas foram ordenadas, quando o Legislador estava prestes a confiar a lei escrita por Si mesmo às mãos de Moisés, Ele mais uma vez ordenou que o sábado fosse guardado: "Disse mais o Senhor a Moisés: Tu, pois, falarás aos filhos de Israel e lhes dirás: Certamente, guardareis os Meus sábados; pois é sinal entre Mim e vós nas vossas gerações; para que saibais que Eu Sou o Senhor, que vos santifica. Portanto, guardareis o sábado, porque é santo para vós outros; aquele que o profanar morrerá; pois qualquer que nele fizer alguma obra será eliminado do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, porém o sétimo dia é o sábado do repouso solene, santo ao Senhor; qualquer que no dia do sábado fizer alguma obra morrerá. Pelo que os filhos de Israel guardarão o sábado, celebrando-o por aliança perpétua nas suas gerações. Entre Mim e os filhos de Israel é sinal para sempre; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento. E, tendo acabado de falar com ele no monte Sinai, deu a Moisés as duas tábuas do Testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus." (Êxodo 31:12-18) Essa passagem deve ser comparada com o testemunho de Ezequiel, dado em nome de Deus: "Dei-lhes os Meus estatutos e lhes fiz conhecer os Meus juízos, os quais, cumprindo- -os o homem, viverá por eles. Também lhes dei os Meus sábados, para servirem de sinal entre Mim e eles, para que soubessem que Eu Sou o Senhor que os santifica. [...] Eu Sou o Senhor, vosso Deus; andai nos Meus estatutos, e guardai os Meus juízos, e praticai-os; santificai os Meus sábados, pois servirão de sinal entre Mim e vós, para que saibais que Eu Sou o Senhor, vosso Deus." (Ezequiel 20:11,12,19,20) Deve-se observar que nenhum desses textos bíblicos ensina que o sábado foi feito para Israel, nem que ele foi criado depois que os hebreus saíram do Egito. Nenhum detalhe desses versos nem sequer parece contradizer os textos que afirmam que o sábado foi instituído na criação; ao contrário, constatamos: (1) que foi o ato divino de dar o sábado aos hebreus que o transformou em um sinal entre Ele e o povo. "Também lhes dei os Meus sábados, para servirem de sinal entre Mim e eles". O ato divino de lhes confiar o sábado já foi discutido;[2] (2) que seria um sinal entre Deus e os hebreus "para que soubessem que Eu Sou o Senhor que os santifica". No Antigo Testamento, toda vez que a palavra Senhor tem todas as suas letras maiúsculas ["Senhor"], como nos textos em análise, o original hebraico é Yahweh [ Javé, Jeová]. Portanto, o sábado, como sinal, significava que foi Jeová, isto é, o Deus infinito e autoexistente, que o havia santificado. Santificar é separar ou destinar a um fim santo, sagrado ou religioso.[3] Já era suficientemente evidente que a nação hebraica fora separada de toda a humanidade de modo surpreendente. Mas quem é que os havia separado, dessa forma, de todos os outros povos? Em graciosa resposta a essa importante pergunta, Deus concedeu aos hebreus Seu próprio dia sagrado de descanso. Mas como o grande memorial do Criador seria a resposta categórica a essa pergunta? Ouça as palavras do Altíssimo: "Certamente, guardareis os Meus sábados", isto é, Meus dias de descanso, "pois é sinal entre Mim e vós. [...] Entre Mim e os filhos de Israel é sinal para sempre; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento". O sábado, como sinal entre Deus e Israel, era um testemunho perpétuo de que, Aquele que os havia separado de toda a humanidade como Seu tesouro peculiar na Terra, era o mesmo Ser que havia criado os céus e a terra em seis dias e descansado no sétimo. Tratava-se, portanto, da mais forte certeza possível de que Aquele que os santificava era, de fato, Jeová. Desde os dias de Abraão, Deus havia separado os hebreus. Aquele que, até então, nunca havia usado nome local, nacional ou familiar, desde aquela época até o fim de Seu relacionamento de aliança com a raça hebraica, assumiu títulos que pareciam mostrar que Ele era Deus apenas dos israelitas. Da escolha de Abraão -- e sua família -- em diante, Ele Se designa Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, Deus dos hebreus e Deus de Israel. (Gênesis 17:7,8; 26:24; 28:13; Êxodo 3:6,13-16,18; 5:3; Isaías 45:3) Ele tirou os hebreus do Egito para ser o seu Deus (Levítico 11:45) e, no Sinai, uniu-Se a eles em solene aliança. Dessa forma, Ele separou -- ou santificou -- os hebreus para Si, porque todas as outras nações haviam se entregado à idolatria. Assim, o Deus do céu e da terra condescendeu em Se entregar a uma só raça e separá-la de toda a humanidade. Deve-se observar que não foi o sábado que separou Israel de todas as outras nações, mas, sim, a idolatria destas nações que levou o Senhor a separar os hebreus para Si, e que Deus deu a Israel o sábado, que Ele santificara para a raça humana na criação, como o sinal mais expressivo de que Aquele que os havia santificado era, de fato, o Deus vivo. Foi o ato divino de dar o sábado para os israelitas que o transformou em um sinal entre Ele e o povo. Mas a existência do sábado não resultou do fato de ele ter sido dado, dessa maneira, aos hebreus; pois o que eles receberam foi o antigo sábado do Senhor e, conforme vimos,[4] ele não foi dado como um novo mandamento. Pelo contrário, baseou-se, na época, em uma obrigação já existente. Mas foi a providência de Deus em favor dos hebreus, primeiro lhes resgatando da escravidão abjeta e depois lhes enviando pão do céu por seis dias e preservando-o para o sábado, que transformou esse dia em um presente para o povo. Note a importância da maneira como esse dom foi concedido, em uma demonstração de quem os santificava. Ele se tornou um presente aos hebreus pela providência maravilhosa do maná -- um milagre que continuou a declarar abertamente o sábado a cada semana durante o período de quarenta anos, mostrando invariavelmente que Aquele que os conduzia era o Autor do sábado e, portanto, o Criador do céu e da terra. O fato do sábado, que foi feito para a humanidade, ter sido entregue aos hebreus dessa forma, certamente não é mais notável do que o fato do Deus de toda a Terra ter confiado Seus oráculos, e a Si próprio, a esse povo. O Altíssimo, Sua lei e o sábado não se tornaram judeus; mas os hebreus se tornaram depositários honrados da verdade divina, e o conhecimento de Deus e de Seus mandamentos foi preservado na Terra. O motivo sobre o qual esse sinal se baseia aponta inequivocamente para a verdadeira origem do sábado. Ele não se originou da queda do maná durante seis dias e de sua interrupção ao sétimo, pois isso aconteceu porque o sábado já existia. Sua origem se deve ao fato de que "em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento". Assim fica demonstrado que o sábado teve origem no descanso e alento do Criador, e não na queda do maná. Como instituição, o sábado declarava que seu Autor era o Criador dos céus e da terra. Como sinal[5] entre Deus e Israel, anunciava que quem os havia separado era, de fato, Jeová. O último ato do Legislador, nesse diálogo memorável, foi colocar nas mãos de Moisés "as duas tábuas do Testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus". Ele então revelou a Moisés a triste apostasia do povo de Israel, apressando-o para que descesse a encontrá-los. "E, voltando-se, desceu Moisés do monte com as duas tábuas do Testemunho nas mãos, tábuas escritas de ambos os lados; de um e de outro lado estavam escritas. As tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas. [...] Logo que se aproximou do arraial, viu ele o bezerro e as danças; então, acendendo-se-lhe a ira, arrojou das mãos as tábuas e quebrou-as ao pé do monte." Então Moisés infligiu o castigo sobre os idólatras "e caíram do povo, naquele dia, uns três mil homens". Moisés se voltou para Deus e intercedeu em favor do povo. Então o Senhor prometeu que Seu anjo iria com os israelitas, mas Ele próprio não andaria no meio deles, para que não os consumisse.[6] Em seguida, Moisés apresentou uma fervorosa súplica ao Altíssimo para que pudesse ver Sua glória. Tal pedido foi atendido, com exceção de que a face de Deus não poderia ser vista. (Êxodo 32 e 33) Mas antes de Moisés subir para contemplar a majestade do Legislador infinito, o Senhor lhe disse: "Lavra duas tábuas de pedra, como as primeiras; e Eu escreverei nelas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que quebraste. [...] Lavrou, pois, Moisés duas tábuas de pedra, como as primeiras; e, levantando-se pela manhã de madrugada, subiu ao monte Sinai, como o Senhor lhe ordenara, levando nas mãos as duas tábuas de pedra. Tendo o Senhor descido na nuvem, ali esteve junto dele e proclamou o nome do Senhor. E, [passou] o Senhor por diante dele, [...]." Moisés, então, contemplou a glória do Senhor e, "imediatamente, curvando-se Moisés para a terra, o adorou". Esse encontro durou quarenta dias e quarenta noites, assim como o primeiro. Ao que tudo indica, o tempo foi gasto em intercessão, da parte de Moisés, para que Deus não destruísse o povo por causa do seu pecado. (Êxodo 34; Deuteronômio 9) O relato acerca desse período é muito breve, mas o sábado é mencionado. "Seis dias trabalharás, mas, ao sétimo dia, descansarás, quer na aradura, quer na sega". (Êxodo 34:21) Assim o povo foi admoestado a não se esquecer do sábado do Senhor, nem mesmo nos períodos mais ocupados. Esse segundo período de quarenta dias terminou como o primeiro, com o ato de Deus de depositar as tábuas de pedra nas mãos de Moisés. "E, ali, esteve com o Senhor quarenta dias e quarenta noites; não comeu pão, nem bebeu água; e escreveu[7] nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras". Portanto, parece que as tábuas do testemunho eram duas tábuas de pedra nas quais os mandamentos foram escritos pelo dedo de Deus. Demonstra-se, então, que o testemunho de Deus corresponde aos dez mandamentos. A escrita feita nas segundas tábuas foi uma cópia exata da que foi feita nas primeiras. Deus disse: "Lavra duas tábuas de pedra, como as primeiras; e Eu escreverei nelas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que quebraste". Acerca das primeiras tábuas, Moisés disse: "Então, vos anunciou Ele a Sua aliança, que vos prescreveu, os dez mandamentos, e os escreveu em duas tábuas de pedra". (Êxodo 34:1,28; Deuteronômio 4:12,13; 5:22) Foi assim que Deus confiou a Seu povo os dez mandamentos. Sem interferência humana ou angélica, Ele mesmo os proclamou. Não delegando a Seu honrado servo Moisés e nem mesmo a um anjo vindo de Sua presença, Ele mesmo os escreveu com o próprio dedo. "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar" é uma das dez prescrições que assim foram exaltadas pelo Altíssimo. Essas duas elevadas honras não foram as únicas que Ele conferiu a esse preceito. Ao passo que o mandamento do sábado as compartilha com os outros nove mandamentos, o quarto se destaca dentre eles por ter sido estabelecido pelo exemplo do próprio Legislador. Estes mandamentos, escritos nas duas tábuas de pedra, fazem evidente referencia à natureza dupla da lei divina: o amor supremo a Deus e o amor ao próximo como a nós mesmos. O mandamento do sábado, colocado no fim da primeira tábua, forma o elo de ouro que une as duas partes da lei moral. Ele protege e faz vigorar o dia que Deus reivindica como Seu. Ele acompanha os seres humanos ao longo dos seis dias que Deus lhes deu para serem usados de maneira apropriada nas várias relações da vida, abrangendo, dessa forma, a vida humana em sua totalidade e deixando implícito que cabe ao homem, ao fazer "toda a sua obra" nos "seis dias" que lhe foram emprestados, cumprir todos os deveres da segunda tábua, embora o mandamento em si pertença à primeira tábua da lei. A linguagem do Legislador, ao chamar Moisés para subir o monte e receber os dez mandamentos, comprova que eles formam um código moral completo. "Sobe a Mim, ao monte, e fica lá; dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos que escrevi". (Êxodo 24:12) Essa lei composta de mandamentos era o testemunho de Deus gravado em pedra. O mesmo fato grandioso é apresentado por Moisés na bênção que pronunciou sobre Israel: "Disse, pois: O Senhor veio do Sinai e lhes alvoreceu de Seir, resplandeceu desde o monte Parã; e veio das miríades de santos; à Sua [mão] direita, havia para eles o fogo da lei" (Deuteronômio 33:2)[8] [ou como diz a KJV: "de Sua destra, veio para eles uma lei ardente".]. Não pode haver dúvida de que, por meio dessas palavras, o Altíssimo é descrito como estando pessoalmente presente com miríades de Seus santos, ou de anjos. E o que Ele escreveu com a própria mão direita é chamado por Moisés de "fogo da lei". Agora o homem de Deus completa seu encargo sagrado. E assim ele relata o que Deus fez ao lhe confiar a lei, e o que ele mesmo fez para que a lei chegasse à sua posição final: "Então, escreveu o Senhor nas tábuas, segundo a primeira escritura, os dez mandamentos que Ele vos falara no dia da congregação, no monte, no meio do fogo; e o Senhor mas deu a mim. Virei-me, e desci do monte, e pus as tábuas na arca que eu fizera; e ali estão, como o Senhor me ordenou". Assim a lei de Deus foi depositada dentro da arca, embaixo do propiciatório. (Deuteronômio 10:4,5; Êxodo 25:10-22) Este capítulo também não poderia terminar sem destacar a importante relação do quarto mandamento com a expiação. A tampa da arca era chamada de propiciatório porque, todos aqueles que haviam transgredido a lei contida embaixo dele, dentro da arca, poderiam encontrar perdão por meio da aspersão, sobre o propiciatório, do sangue da expiação. A lei dentro da arca era a que exigia a expiação; a lei cerimonial que ordenava o sacerdócio levítico e os sacrifícios pelo pecado era a lei que ensinava aos seres humanos como a expiação poderia ser efetuada. A lei transgredida se encontrava embaixo do propiciatório; o sangue da oferta pelo pecado era aspergido em cima dele, e o perdão era estendido ao pecador penitente. Havia um pecado autêntico e, portanto, uma lei autêntica que o ser humano havia quebrado; mas não havia uma expiação autêntica, e daí a necessidade do grande antítipo dos sacrifícios levíticos. A expiação autêntica, quando fosse realizada, deveria estar ligada à lei a respeito da qual a expiação havia sido prefigurada. Em outras palavras, a expiação típica [ou simbólica], que era "sombra dos bens vindouros" (Hebreus 10:1), estava relacionada à lei guardada na arca e indicava que uma expiação autêntica era exigida por aquela lei. Era necessário que a lei que exige a expiação, a fim de poupar aquele que a transgredira, fosse perfeita em si mesma; caso contrário, a culpa recairia, pelo menos em parte, sobre o Legislador, e não totalmente sobre o pecador. Logo, a expiação efetuada não elimina a lei transgredida, uma vez que ela é perfeita, mas tem o claro propósito de eliminar a culpa do transgressor. (1 João 3:4, 5) Devemos lembrar que o quarto mandamento é um dos dez preceitos da lei quebrada, um dos princípios santos e imutáveis que tornou necessária a morte do Filho unigênito de Deus antes que o perdão pudesse ser estendido ao homem culpado. Com esses fatos em mente, não é estranho que o Legislador tenha reservado para Si a tarefa de proclamar a lei, não confiando a nenhum ser criado a responsabilidade de escrever a lei que exigiria, como meio de expiação, a morte do Filho de Deus. Notas: 1. O Dr. Clarke faz a seguinte observação acerca desse versículo: "É bem provável que Moisés tenha subido ao monte no primeiro dia da semana; e, tendo Josué permanecido na região da nuvem durante seis dias, no sétimo, que era o sábado, Deus falou com ele" (Comentário sobre Êxodo 24:16). Essa notável demarcação de uma semana, dentre os quarenta dias, muito faz por consolidar o ponto de vista do Dr. Clarke. E se isso estiver correto, trata-se de um forte indício de que os dez mandamentos foram entregues no sábado, pois parecem haver boas evidências de que eles foram proferidos um dia antes de Moisés subir ao monte a fim de receber as tábuas de pedra; o pronunciamento feito nos capítulos 21 a 23 não exigiria mais do que um breve espaço de tempo e, certamente, foi proferido imediatamente após a proclamação dos dez mandamentos (Êxodo 20:18--21). Quando o diálogo terminou, Moisés desceu ao povo e escreveu todas as palavras do Senhor. De manhã, ele se levantou cedo e, depois de ratificar a aliança, subiu para receber a lei que Deus havia escrito (Êxodo 24:3--13). 2. Confira o terceiro capítulo deste livro. 3. "Santificar, kadash, significa consagrar, separar uma coisa ou pessoa, de todos os propósitos seculares, para uso religioso" (Clarke's Commentary sobre Êxodo 13:2). O mesmo escritor diz o seguinte acerca de Êxodo 19:23: "Aqui a palavra kadash é usada em seu sentido legítimo e literal, significando a separação de uma coisa, pessoa ou lugar, de todos os usos comuns ou profanos e sua dedicação a propósitos sagrados. 4. Ver o terceiro capítulo. 5. O fato do sábado ser um sinal não o tornava uma sombra e uma cerimônia, porque o Senhor do sábado era, Ele próprio, um sinal. "Eis-me aqui, e os filhos que o Senhor me deu, para sinais e para maravilhas em Israel da parte do Senhor dos Exércitos, que habita no monte Sião" (Isaías 8:18). Em Hebreus 2:13, essa linguagem se refere a Cristo. "E Simeão os abençoou e disse a Maria, sua mãe: Eis que este é posto para queda e elevação de muitos em Israel e para sinal que é contraditado" (Lucas 2:34, ARC). O fato do sábado ter sido um sinal entre Deus e Israel, ao longo de suas gerações, durante o tempo em que foram Seu povo peculiar, não constitui prova de que o mesmo tenha sido abolido quando eles perderam esse status, da mesma forma que o fato de Jesus ser hoje "um sinal que é contraditado" não prova que Ele deixará de existir quando não for mais esse sinal. Essa linguagem também não prova que o sábado foi feito para eles, nem que a obrigação de guardá-lo acabou depois que eles deixaram de ser o povo de Deus. A proibição de comer sangue era um estatuto perpétuo para as gerações de israelitas; contudo, foi dada a Noé quando Deus permitiu, pela primeira vez, o uso de alimento cárneo, e ainda era obrigatória para os gentios quando os apóstolos se dirigiram a eles (Levítico 3:17; Gênesis 9:1--4; Atos 15). A pena de morte nas mãos do magistrado civil foi estipulada para quem violasse o sábado. A mesma pena é prescrita para a maior parte dos preceitos da lei moral (Levítico 20:9, 10; 24:15--17; Deuteronômio 13:6--18; 17:2--7). É importante lembrar que a lei moral, a qual continha o sábado, fazia parte do código civil da nação hebraica. Por isso, o grande Legislador incluiu penalidades a serem aplicadas pelos magistrados, prefigurando, sem dúvida, a retribuição final dos ímpios. Tais penas foram suspensas pela decisão surpreendente do Salvador de que, quem estivesse sem pecado, atirasse a primeira pedra. Mas esse mesmo Ser Se levantará para castigar os homens quando as saraivas de Sua ira desolarem a Terra. Nosso Senhor, porém, não descartou a real penalidade da lei, o salário do pecado, nem enfraqueceu o preceito que fora violado ( João 8:1-9; Jó 38:22,23; Isaías 28:17; Apocalipse 16:17-21; Romanos 6:23). 6. Este fato lança luz sobre os textos que mencionam a atuação dos anjos na entrega da lei (Atos 7:38,53; Gálatas 3:19; Hebreus 2:2). 7. Com base nesse versículo, alguns sugerem a ideia de que foi Moisés, e não Deus, quem escreveu nas segundas tábuas. Acredita- -se que esse ponto de vista seja fortalecido pelo versículo anterior: "Escreve estas palavras, porque, segundo o teor destas palavras, fiz aliança contigo e com Israel". Mas é preciso observar que as palavras escritas nas tábuas de pedra foram os dez mandamentos, ao passo que as palavras a que se faz referência aqui são as que Deus disse a Moisés ao longo dos quarenta dias, começando no versículo 10 e terminando no 27. Poder-se-ia prontamente admitir que o pronome ele, no versículo 28, naturalmente se referiria a Moisés, mas o testemunho positivo das Escrituras proibe tal conclusão. A fim de se decidir quais são os antecedentes dos pronomes, é necessário prestar atenção ao contexto. Esse fato é ilustrado de forma marcante em 2 Samuel 24:1, em que o pronome ele se referiria naturalmente ao Senhor, tornando Deus o responsável por incitar Davi a contar Israel. No entanto, o contexto revela que não foi esse o caso, pois a ira do Senhor se acendeu com esse ato; e 1 Crônicas 21:1 declara positivamente que o "ele", que incitou a Davi, foi Satanás. Confira testemunhos positivos de que foi Deus, e não Moisés, quem escreveu nas segundas tábuas, em Êxodo 34:1 e Deuteronômio 10:1--5. Tais passagens estabelecem uma distinção nítida entre o trabalho de Moisés e o de Deus, atribuindo a Moisés o preparo das tábuas, o transporte delas até o cume do monte e de volta ao pé do mesmo, mas afirmando expressamente que a escrita nas tábuas foi feita pelo próprio Deus. 8. Veja Daniel 8:13-16 para constatar que os anjos são chamados, às vezes, de santos. Confira Salmos 68:17 para ver que anjos estavam presentes com Deus no Sinai. Capítulo 6 O Sábado Durante o Dia da Tentação A história do sábado durante "a provocação, no dia da tentação no deserto" (Hebreus 3:8), quando Deus Se entristeceu com Seu povo por quarenta anos, pode ser resumida em poucas palavras. Mesmo sob a supervisão de Moisés e com os milagres mais extraordinários gravados na memória e operados à vista deles, os israelitas se mostraram idólatras, (Êxodo 32; Josué 24:2,14,23; Ezequiel 20:7,8,16,18,24) negligentes quanto aos sacrifícios e a circuncisão, (Amós 5:25-27; Atos 7:41-43; Josué 5:2-8) murmuradores contra Deus, desprezadores de Sua lei (Números 14; Salmos 95; Ezequiel 20:13) e transgressores do sábado. Ezequiel faz uma descrição vívida de como eles trataram o sábado enquanto estavam no deserto: "Mas a casa de Israel se rebelou contra Mim no deserto, não andando nos Meus estatutos e rejeitando os Meus juízos, os quais, cumprindo-os o homem, viverá por eles; e profanaram grandemente os Meus sábados. Então, Eu disse que derramaria sobre eles o Meu furor no deserto, para os consumir. O que fiz, porém, foi por amor do Meu Nome, para que não fosse profanado diante das nações perante as quais os fiz sair." (Ezequiel 20:13-14) Essa linguagem mostra uma violação geral do sábado, e evidentemente se refere à apostasia de Israel durante os primeiros quarenta dias nos quais Moisés se ausentou. Deus então planejou destruí-los; mas, por causa da intercessão do líder, poupou-os pela razão mencionada pelo profeta. (Êxodo 32) Após receberem mais um tempo de teste, falharam de maneira marcante pela segunda vez. Por isso, Deus levantou a mão em juramento de que eles não entrariam na terra prometida. Assim continua o profeta: "Demais, levantei-lhes no deserto a mão e jurei não deixá-los entrar na terra que lhes tinha dado, a qual mana leite e mel, coroa de todas as terras. Porque rejeitaram os Meus juízos, e não andaram nos Meus estatutos, e profanaram os Meus sábados, pois o seu coração andava após os seus ídolos. Não obstante, os Meus olhos lhes perdoaram, e Eu não os destruí, nem os consumi de todo no deserto" (Ezequiel 20:15-17). Essa linguagem se refere, sem dúvida, ao ato divino de impedir todos aqueles que tinham mais de vinte anos de idade de entrar na terra prometida. (Números 14) Deve-se notar que a transgressão do sábado é especificamente mencionada como um dos motivos para a exclusão, daquela geração, da terra prometida. Deus poupou o povo, de modo que a nação não foi totalmente eliminada, estendendo então ao grupo mais jovem um período de graça adicional. O profeta continua: "Mas disse Eu a seus filhos no deserto: Não andeis nos estatutos de vossos pais, nem guardeis os seus juízos, nem vos contamineis com os seus ídolos. Eu Sou o Senhor, vosso Deus; andai nos Meus estatutos, e guardai os Meus juízos, e praticai-os; santificai os Meus sábados, pois servirão de sinal entre Mim e vós, para que saibais que Eu Sou o Senhor, vosso Deus. Mas também os filhos se rebelaram contra Mim e não andaram nos Meus estatutos, nem guardaram os Meus juízos, os quais, cumprindo-os o homem, viverá por eles; antes, profanaram os Meus sábados. Então, Eu disse que derramaria sobre eles o Meu furor, para cumprir contra eles a Minha ira no deserto. Mas detive a mão e o fiz por amor do Meu nome, para que não fosse profanado diante das nações perante as quais os fiz sair. Também levantei-lhes no deserto a mão e jurei espalhá-los entre as nações e derramá-los pelas terras; porque não executaram os Meus juízos, rejeitaram os Meus estatutos, profanaram os Meus sábados, e os seus olhos se iam após os ídolos de seus pais" (Ezequiel 20:18-24). Portanto, parece que a geração mais jovem, poupada por Deus quando Ele excluiu os seus pais da terra prometida, assim como os seus progenitores, transgrediu a lei de Deus, profanou o sábado e se apegou à idolatria. Não aprouve a Deus excluí-los da terra de Canaã, mas Ele levantou a mão para os israelitas no deserto, jurando que os entregaria à dispersão entre os seus inimigos depois que eles tivessem entrado na terra da promessa. Assim se vê que, enquanto estavam no deserto, os hebreus lançaram as bases para sua dispersão futura da própria terra; e um dos atos que desencadeou sua ruína final como nação foi a transgressão do sábado, antes de haverem entrado na terra prometida. Moisés tinha motivos de sobra para dizer, em seu último mês de vida: "Rebeldes fostes contra o Senhor, desde o dia em que vos conheci". (Deuteronômio 9:24) Em Josué e Calebe havia outro espírito, pois seguiram ao Senhor com integridade. (Números 14; Hebreus 3:16) Essa é a história completa da observância do sábado no deserto. Até mesmo o milagre do maná, que, por quarenta anos, todas as semanas, deu testemunho público do sábado, (Êxodo 16; Josué 5:12) tornou-se um mero evento corriqueiro para o povo hebreu, que chegou ao ponto de murmurar contra o pão enviado do céu; (Números capítulos 11 e 21) e podemos muito bem acreditar que pessoas tão endurecidas pelo engano do pecado tinham pouca consideração pelo testemunho do maná em favor do sábado.[1] No relato mosaico, lemos o seguinte com relação ao sábado: "Tendo Moisés convocado toda a congregação dos filhos de Israel, disse-lhes: São estas as palavras que o Senhor ordenou que se cumprissem: Trabalhareis seis dias, mas o sétimo dia vos será santo, o sábado do repouso solene ao Senhor; quem nele trabalhar morrerá.[2] Não acendereis fogo em nenhuma das vossas moradas no dia do sábado." (Êxodo 35:1-3) O principal destaque desse texto está ligado à proibição de acender fogo no sábado. Uma vez que essa é a única proibição do tipo na Bíblia e que, com frequência, é apresentada como um motivo pelo qual o sábado não deveria ser guardado, cabe aqui uma breve análise dessa dificuldade. É importante notar: 1) que essas palavras não fazem parte do quarto mandamento, a grande lei do sábado; 2) que havia leis referentes ao sábado que não faziam parte da instituição sabática, mas que surgiram a partir do momento em que o dia foi confiado aos hebreus. Exemplo disso é a lei referente à apresentação dos pães da proposição, no sábado, e do holocausto para o sábado. (Levítico 24:5-9; Números 28:9,10) Portanto, é possível que esse preceito, no mínimo, se refira apenas àquela nação, sem fazer parte da instituição original; 3) que, assim como havia leis específicas apenas para os hebreus, também havia aquelas que vigoraram somente enquanto eles estavam no deserto. Esse era o caso de todos os preceitos relacionados ao maná, à construção do tabernáculo e sua montagem, à ordem do acampamento ao redor do tabernáculo, etc.; 4) que a essa classe pertenciam todos os estatutos, concedidos desde que Moisés desceu com as segundas tábuas de pedra, até o fim do livro de Êxodo, a menos que as palavras em análise sejam uma exceção; 5) que a proibição de acender o fogo pertencia a essa categoria, isto é, a de leis destinadas apenas para o período no deserto, conforme evidenciam vários fatos claros: 1. A terra da Palestina é tão fria durante parte do ano que acender o fogo para impedir o sofrimento se torna uma necessidade.[3] 2. O sábado não foi criado para ser motivo de aflição e sofrimento, mas, sim, de refrigério, deleite e bênção.[4] 3. No deserto do Sinai, onde foi dado esse preceito referente ao fogo no sábado, a proibi- ção não seria motivo para sofrimento, pois os israelitas se encontravam a cerca de 320 quilômetros ao sul de Jerusalém, no clima quente da Arábia. 4. O fato desse preceito ter caráter temporário é mostrado, também, pela ausência de qualquer indicação de que se tratava de um estatuto perpétuo; mas essa indicação está presente quando se fala a respeito de outras leis que deveriam ser guardadas após a entrada do povo na terra. (Êxodo 29:9; 31:16; Levítico 3:17; 24:9; Números 19:21; Deuteronômio 5:31; 6:1; 7)[5] Nesse caso, porém, o preceito parece ter caráter semelhante ao preceito relativo ao maná, (Êxodo 16:23) coexistindo com ele e sendo a ele adaptado. 5. Se a proibição a respeito do fogo aos sábados se referisse, de fato, à terra prometida, e não somente ao deserto, ela entraria, de tempos em tempos, em conflito direto com a lei da Páscoa. Isso ocorreria porque a refeição pascoal deveria ser preparada no fogo, pelas famílias dos filhos de Israel, na tarde, ou no pôr do sol, do décimo quarto dia do primeiro mês, (Êxodo 12; Deuteronômio 16) e este ocasionalmente cairia no sábado. A proibição de acender o fogo no sábado não entraria em conflito com a Páscoa enquanto os hebreus estivessem no deserto, pois esta só seria observada depois que eles chegassem à terra prometida.[6] Mas caso a proibição se estendesse até depois da conquista da terra, quando a Páscoa seria regularmente observada, os dois estatutos frequentemente entrariam em conflito direto. Sem dúvida, essa é uma forte confirmação do ponto de vista de que a proibição do fogo no sábado era um estatuto temporário, referente apenas ao deserto.[7] Com base nesses fatos, conclui-se que o argumento popular, baseado na proibição de acender o fogo, de que o sábado era uma instituição local, adaptada apenas à terra de Canaã, deve ser abandonado; pois fica claro que tal proibição tinha caráter temporário, nem sequer adaptada à terra da promessa, nem a ela destinada. Em seguida, lemos o seguinte a respeito do sábado: "Disse o Senhor a Moisés: Fala a toda a congregação dos filhos de Israel e dize-lhes: Santos sereis, porque Eu, o Senhor, vosso Deus, Sou santo. Cada um respeitará a sua mãe e o seu pai e guardará os Meus sábados. Eu Sou o Senhor, vosso Deus. [...] Guardareis os Meus sábados e reverenciareis o Meu santuário. Eu Sou o Senhor." (Levítico 19:1-3,30) Essas referências constantes ao sábado contrastam de maneira marcante com a desobediência geral do povo. Por isso, Deus fala mais uma vez: "Seis dias trabalhareis, mas o sétimo será o sábado do descanso solene, santa convocação; nenhuma obra fareis; é sábado do Senhor em todas as vossas moradas." (Levítico 23:3)[8] Assim, o Senhor solenemente designou Seu dia de descanso para ser um período de santa adoração e um dia de reuniões religiosas semanais. Mais uma vez, o grande Legislador apresenta Seu sábado: "Não fareis para vós outros ídolos, nem vos levantareis imagem de escultura nem coluna, nem poreis pedra com figuras na vossa terra, para vos inclinardes a ela; porque Eu Sou o Senhor, vosso Deus. Guardareis os Meus sábados e reverenciareis o Meu santuário. Eu Sou o Senhor." (Levítico 26:1,2) Como o povo de Deus teria sido feliz se tivesse, dessa forma, se afastado da idolatria e reverenciado o dia de descanso do Criador! Entretanto, a idolatria e a transgressão do sábado eram tão generalizadas no deserto que a geração que saiu do Egito foi excluída da terra prometida. (Ezequiel 20:15,16) Assim, depois que Deus excluiu da herança os homens que se rebelaram contra Ele, (Números 13 e 14) lemos o seguinte acerca do sábado: "Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem apanhando lenha no dia de sábado. Os que o acharam apanhando lenha o trouxeram a Moisés, e a Arão, e a toda a congregação. Meteram-no em guarda, porquanto ainda não estava declarado o que se lhe devia fazer. Então, disse o Senhor a Moisés: Tal homem será morto; toda a congregação o apedrejará fora do arraial. Levou-o, pois, toda a congregação para fora do arraial, e o apedrejaram; e ele morreu, como o Senhor ordenara a Moisés." (Números 15:32-36) Os fatos a seguir devem ser levados em conta ao se explicar esse texto: (1) tratava-se de um caso de culpa fora do comum, pois toda a congregação perante a qual esse homem foi julgado, e pela qual foi morto, também era culpada de transgredir o sábado e acabara de ser excluída da terra prometida por causa desse pecado e de outros mais; (Ezequiel 20:15,16. Comparar com Números 14:35) (2) esse não era um caso que se enquadrava na pena de morte em vigor por trabalho ao sábado, pois o homem foi colocado em confinamento até que o Senhor declarasse Seu veredito a respeito da culpa do transgressor. A singularidade dessa transgressão pode ser entendida com a ajuda do contexto. O versículo que precede imediatamente o caso em questão diz o seguinte: "Mas a pessoa que fizer alguma coisa atrevidamente, quer seja dos naturais quer dos estrangeiros, injuria ao Senhor; tal pessoa será eliminada do meio do seu povo, pois desprezou a palavra do Senhor e violou o Seu mandamento; será eliminada essa pessoa, e a sua iniquidade será sobre ela." (Números 15:30,31) O fato de tais palavras serem sucedidas por esse caso marcante certamente serve para ilustrá-lo. Fica evidente, portanto, que se tratava de um pecado atrevido, no qual o transgressor tinha a intenção de desprezar o Espírito de graça e os estatutos do Altíssimo. Portanto, o incidente não pode ser citado como evidência de excesso de rigidez na observância do sábado por parte dos hebreus, pois temos evidências incontestáveis de que eles o transgrediram em grande medida durante todo o período de 40 anos de jornada pelo deserto. (Ezequiel 20) Consequentemente, esse caso se destaca como exemplo de transgressão na qual o pecador tinha a intenção de demonstrar desprezo pelo Legislador, e esse foi o ponto que tornou sua culpa muito grave.[9] No último mês de sua vida longa e marcante, Moisés relembrou todos os atos grandiosos de Deus em favor de Seu povo, bem como os estatutos e os preceitos que Deus lhes havia dado. Essa repetição se encontra no livro de Deuteronômio, nome que significa segunda lei, e se aplica ao livro pelo fato de se tratar de uma segunda escrita da lei. É o discurso de despedida de Moisés a um povo rebelde e desobediente. Ele deseja imbuir-lhes do mais forte senso possível de obrigação pessoal de obedecer. Por isso, logo antes de repetir os dez mandamentos, ele usa uma linguagem cujo objetivo claro é impressionar a mente dos hebreus com um senso da obrigação individual no que diz respeito a fazer aquilo que Deus havia ordenado. Ele diz: "Ouvi, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprirdes. O Senhor, nosso Deus, fez aliança conosco em Horebe. Não foi com nossos pais que fez o Senhor esta aliança, e sim conosco, todos os que, hoje, aqui estamos vivos." (Deuteronômio 5:1-3) Não foram os atos de vossos pais que colocaram esta responsabilidade sobre vós, mas vossos próprios atos individuais que vos ligaram a esta aliança. Vós vos comprometestes com o Altíssimo em cumprir tais preceitos. (Conferir as promessas do povo em Êxodo 19 e 24) Esse é o significado óbvio dessas palavras; contudo, elas têm sido erroneamente usadas como prova de que o sábado do Senhor foi feito para os hebreus e não era obrigatório para os patriarcas. A peculiaridade dessa dedução é revelada no fato de que ela é usada somente contra o quarto mandamento, ao passo que, se fosse um argumento justo e lógico, demonstraria que os antigos patriarcas não tinham obrigação nenhuma em relação a qualquer preceito da lei moral. Mas é certo que a aliança em Horebe foi apenas uma materialização, ou manifestação visível, dos preceitos da lei moral, com compromissos mútuos entre Deus e o povo. Em outras palavras, essa aliança não deu origem a nenhum dos dez mandamentos. De qualquer forma, constatamos que o sábado foi ordenado pelo Senhor ao fim da criação (Ler o segundo capítulo deste livro) e já era obrigatório para os hebreus no deserto, antes de Deus lhes dar algum preceito novo sobre o assunto. (Ver o terceiro capítulo) Como a obrigatoriedade do sábado no deserto estava em vigor antes da aliança no monte Horebe, tal fato é uma prova conclusiva de que o sábado não teve mais "origem" nessa aliança do que a proibição da idolatria, do roubo ou do assassinato. O homem de Deus então repete os dez mandamentos. E diz o seguinte acerca do quarto: "Guarda o dia de sábado, para o santificar, como te ordenou o Senhor, teu Deus. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro das tuas portas para dentro, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu; porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o Senhor, teu Deus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado." (Deuteronômio 5:12-15) É singular o fato de que esse texto bíblico seja uniformemente citado por aqueles que escrevem contra o sábado, como sendo o quarto mandamento original, ao passo que o preceito original, em si, é cuidadosamente deixado de fora. No entanto, há fortíssimas evidências de que esse não é o preceito original, pois Moisés pronunciou essas palavras ao fim da jornada de quarenta anos, ao passo que o mandamento original foi entregue no terceiro mês após a saída do Egito. (Comparar Êxodo 19 e 20 com Deuteronômio 1) O próprio mandamento, conforme aqui expresso, contém provas inequívocas de haver sido dado posteriormente. Ele diz: "Guarda o dia de sábado, para o santificar, como te ordenou o Senhor", citando, portanto, que o original se encontrava em outra parte. Além disso, o preceito, conforme mencionado aqui, se encontra claramente incompleto. Ele não contém nenhuma pista sobre a origem do sábado do Senhor, nem mostra quais foram os atos que o trouxeram à existência. É por isso que aqueles que afirmam que o sábado teve início no deserto, e não na criação, citam essa passagem como se fosse o quarto mandamento, e omitem o preceito original, proclamado pelo próprio Deus, onde todos esses fatos se encontram expressos com clareza. (Êxodo 20:8-11) Mas embora Moisés, nesta segunda repetição, omita uma porção significativa do quarto mandamento, ele se refere ao preceito original em questão, e então inclui uma poderosa súplica quanto à obrigação dos hebreus de guardarem o sábado. Deve-se lembrar que muitos dentre o povo haviam firmemente persistido na violação do sábado, e que essa era a última vez que Moisés falava em favor desse dia. Por isso, ele diz: "Porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o Senhor, teu Deus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado" (Deuteronômio 5:15). Com frequência, essas palavras são citadas como prova de que o sábado se originou quando Israel saiu do Egito, sendo ordenado, naquela ocasião, como memorial de seu livramento. Mas deve-se observar que: 1) esse texto não diz uma palavra sequer a respeito da origem do sábado ou do dia de descanso do Senhor; 2) os fatos a respeito da origem do sábado são mencionados no quarto mandamento original; e, lá, eles remontam à criação; 3) não há motivo para crer que Deus descansou no sétimo dia por ocasião dessa fuga do Egito, nem que abençoou e santificou o dia nesse evento; 4) o sábado nada tem, em si, que insinue qualquer tipo de comemoração da libertação do Egito, pois ela foi uma fuga, e o dia é de descanso. Além disso, a fuga ocorreu no 15º dia do primeiro mês, e o descanso sabático ocorre no sétimo dia de cada semana. Logo, a comemoração do livramento ocorreria anualmente e o descanso no sábado, semanalmente; 5) Deus estabeleceu um memorial apropriado da libertação para ser observado pelos hebreus: a Páscoa [passover, em inglês: lit. "passar sobre"], no 14º dia do primeiro mês, em lembrança de Deus ter passado sobre eles [passed over], ou seja, não tê-los destruído, quando feriu os egípcios; e a Festa dos Pães Asmos, em memória de terem comido esse tipo de pão ao saírem do Egito. (Êxodo 12 e 13) Mas o que essas palavras indicam, então? Talvez o significado delas seja compreendido de forma mais clara ao compará-las com um paralelo exato encontrado no mesmo livro, escrito pelo mesmo autor: "Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão; nem tomarás em penhor a roupa da viúva. Lembrar-te-ás de que foste escravo no Egito e de que o Senhor te livrou dali; pelo que te ordeno que faças isso." (Deuteronômio 24:17,18) Logo se vê que esse preceito não foi dado para comemorar o livramento de Israel da escravidão no Egito; tampouco tal libertação poderia ter dado origem à obrigação moral expressa nele. Se, no primeiro caso, a linguagem provasse que os seres humanos não tinham obrigação de guardar o sábado antes que Israel fosse libertado do Egito, provaria com igual certeza, no segundo caso, que eles, antes desse livramento, não tinham a obrigação de tratar com misericórdia e justiça os estrangeiros, os órfãos e as viúvas. E se, no primeiro caso, o sábado se apresenta como judaico, no segundo, o estatuto do grande Legislador em favor dos necessitados e desvalidos deveria partilhar da mesma sorte. Fica evidente que a linguagem usada nos dois casos tinha o objetivo de apelar ao senso de gratidão do povo. Vós fostes escravos no Egito e Deus vos resgatou; portanto, lembrai-vos dos outros que passam por aflições, e não os oprimais. Fostes cativos no Egito e Deus vos resgatou; portanto, santificai ao Senhor o dia que Ele reservou para Si -- um apelo extremamente poderoso feito para aqueles que, até então, persistiam em transgredi-lo. De fato, o livramento da escravidão abjeta era necessário, nos dois casos, para que as coisas ordenadas fossem observadas plenamente, mas a libertação não deu origem a nenhum desses deveres. Esse foi, sim, um dos atos pelos quais o sábado do Senhor foi dado àquela nação, mas não um dos atos pelos quais Deus o criou; tampouco o ato transformou o dia de descanso do Senhor em uma instituição judaica. É fato evidente que as palavras gravadas na pedra foram apenas os dez mandamentos. 1. Afirma-se o seguinte acerca das primeiras tábuas: "Então, o Senhor vos falou do meio do fogo; a voz das palavras ouvistes; porém, além da voz, não vistes aparência nenhuma. Então, vos anunciou Ele a Sua aliança, que vos prescreveu, os dez mandamentos, e os escreveu em duas tábuas de pedra." (Deuteronômio 4:12,13) 2. Assim, as primeiras tábuas de pedra continham apenas os dez mandamentos. E a Bíblia é clara em afirmar que as segundas tábuas consistiam em uma cópia exata daquilo que fora escrito nas primeiras: "Então, disse o Senhor a Moisés: Lavra duas tábuas de pedra, como as primeiras; e Eu escreverei nelas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que quebraste." "Escreverei nas duas tábuas as palavras que estavam nas primeiras que quebraste, e as porás na arca." (Êxodo 34:1; Deuteronômio 10:2) 3. Isso se confirma por meio deste testemunho conclusivo: "E escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras." "Então, escreveu o Senhor nas tábuas, segundo a primeira escritura, os dez mandamentos que Ele vos falara no dia da congregação, no monte, no meio do fogo; e o Senhor mas deu a mim." (Êxodo 34:28; Deuteronômio 10:4) Esses textos explicam a linguagem a seguir: "Deu-me o Senhor as duas tábuas de pedra, escritas com o dedo de Deus; e, nelas, estavam todas as palavras segundo o Senhor havia falado convosco no monte, do meio do fogo, estando reunido todo o povo". (Deuteronômio 9:10) Portanto, afirma-se que Deus escreveu nas tábuas de pedra segundo todas as palavras que havia falado no dia da convocação, e as palavras que Ele assim escreveu são chamadas de dez palavras. Mas a introdução ao decálogo não era uma dessas dez palavras e, por isso, não foi escrita na pedra pelo dedo de Deus. É preciso atentar para essa distinção, que fica clara ao analisarmos a passagem a seguir e seu contexto: "Estas palavras falou o Senhor a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz, e nada acrescentou. Tendo-as escrito em duas tábuas de pedra, deu-mas a mim." (Deuteronômio 5:22) Estas palavras, aqui destacadas como tendo sido escritas pelo dedo de Deus depois de serem pronunciadas por Ele ao ouvido de todo o povo, devem ser compreendidas como uma destas duas alternativas: (1) são tão somente as dez palavras da lei de Deus, ou (2) são as palavras usadas por Moisés nessa retomada do decálogo. Contudo, elas não podem se referir às palavras usadas nessa retomada, pois: (1) Moisés omite uma parte importante do quarto preceito dado por Deus em sua proclamação no monte; (2) nessa repetição do preceito, ele faz menção ao original para fazer lembrar aquilo que é omitido; (Deuteronômio 5:12-15 comparado com Êxodo 20:8-11) (3) ele acrescenta ao preceito -- para favorecê-lo -- um apelo à gratidão do povo, que não foi feito originalmente por Deus; (4) a linguagem usada serviu apenas como repetição do mandamento e não teve o propósito de apresentar o original; e tal fato é evidenciado, ainda mais, pelas muitas variações de palavras em relação ao decálogo original. (Deuteronômio 5 comparado com Êxodo 20) Tais fatos são conclusivos para definir quais palavras foram escritas nas tábuas de pedra. Quando Moisés fala estas palavras, ele certamente não estava se referindo a uma cópia incompleta, como a repetição que ele fez em Deuteronômio, mas ao próprio código original relatado em Êxodo 20. Em outras palavras, quando Moisés fala que estas palavras foram gravadas nas tábuas, ele não se refere às palavras que ele usou em seu discurso, mas, sim, às dez palavras da lei de Deus, excluindo todo o resto. Assim analisamos as menções ao sábado nos livros de Moisés. Encontramos sua origem no paraíso, quando o homem ainda se encontrava em seu estado de retidão; vimos que os hebreus foram separados de toda a humanidade como depositários da verdade divina; constatamos que o sábado e toda a lei moral foram confiados a eles como um patrimônio sagrado; vimos que o sábado foi proclamado por Deus como um dos dez mandamentos; percebemos que ele foi escrito pelo dedo de Deus, sobre a pedra, no próprio centro da lei moral; vimos que essa lei não possui nenhum traço judaico, mas somente características morais e divinas, e que foi colocada embaixo do propiciatório na arca da aliança de Deus; vimos que diversos preceitos, referentes ao sábado, foram dados aos hebreus e se destinavam somente a eles; notamos que os hebreus transgrediram o sábado em larga escala durante sua peregrinação pelo deserto; e ouvimos o apelo final em prol do sábado, feito por Moisés àquele povo rebelde. O fundamento da instituição sabática repousa sobre a sua santificação, antes da queda do homem; o quarto mandamento é sua grande cidadela de defesa; sua localização, no centro da lei moral, embaixo do propiciatório, mostra sua ligação com a expiação e sua obrigação imutável. Notas: 1. A comparação de Êxodo 19; 20:18--21; 24:3--8 com o capítulo 32 mostra as surpreendentes transições dos hebreus, da fé e obediência, para a rebelião e idolatria. Confira um relato geral desses atos em Salmos 78 e 106. 2. Leia no capítulo 5 uma observação sobre esse tipo de penalidade. 3. A Bíblia está repleta de fatos que confirmam essa proposição. O salmista, por exemplo, ao se referir a Jerusalém, usa a seguinte linguagem: "dá a neve como lã e espalha a geada como cinza. Ele arroja o Seu gelo em migalhas; quem resiste ao Seu frio? Manda a Sua palavra e o derrete; faz soprar o vento, e as águas correm. Mostra a Sua palavra a Jacó, as Suas leis e os Seus preceitos, a Israel" (Salmos 147:16--19). O Dr. Clarke faz a seguinte observação acerca dessa passagem: "Em determinados períodos, o frio no Oriente é tão intenso que pode matar seres humanos e animais. Jacobus de Vitriaco, um dos autores de Gesta Dei per Francos, conta que, durante uma expedição da qual ele participou no monte Tabor, no dia 24 de dezembro, o frio era tão intenso que muitos dos pobres e dos animais de carga morreram por causa dele. E Albertus Aquensis, outro autor dessa obra, falando acerca do frio na Judeia, conta que trinta pessoas que auxiliavam Baldwin I., na região montanhosa próxima ao mar Morto, morreram por causa do clima; e que nessa expedição eles precisaram enfrentar granizo e gelo terríveis, com neve e chuva sem precedentes. Com base nisso, constatamos que os invernos costumam ser bastante rigorosos na Judeia, e que, em casos como os relatados acima, podemos muito bem exclamar: "quem resiste ao seu frio?" Conferir o comentário de Clarke sobre o salmo 147. Ver também Jeremias 36:22; João 18:18; Mateus 24:20; Marcos 13:18. 1 Macabeus 13:22 menciona uma tempestade de neve tão forte na Palestina que os cavaleiros não conseguiam marchar adiante. 4. O testemunho da Bíblia a esse respeito é bem explícito. Portanto, lemos: "Seis dias farás a tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro" (Êxodo 23:12). Ficar sem aquecimento por meio do fogo durante o rigor do inverno transformaria o sábado em maldição, não em alento. Ele arruinaria a saúde daqueles que ficassem assim expostos e tornaria o sábado qualquer coisa, menos uma fonte de refrigério. O profeta usa a seguinte linguagem: "Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no Meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do Senhor, digno de honra", etc. Portanto, o sábado foi projetado por Deus para ser fonte de deleite para Seu povo, e não um motivo de sofrimento. O caráter misericordioso e beneficente do sábado é visto nos seguintes textos: Mateus 12:10--13; Marcos 2:27, 28; Lucas 14:3--6. Com base neles, aprendemos que, se Deus leva em conta os sofrimentos da criação irracional, e deseja que esta seja aliviada no sábado, quão maior não será Sua preocupação com as aflições e as necessidades de Seu povo, para cujo refrigério e deleite o sábado foi criado! 5. O número e a variedade dessas alusões surpreendem quem os procura. 6. A lei da Páscoa certamente levava em conta a chegada dos hebreus à terra prometida antes de sua observância regular (Êxodo 12:25). Aliás, ela só foi observada uma única vez no deserto, a saber, no ano posterior à partida do Egito. Depois disso, foi omitida até eles entrarem na terra de Canaã (Números 9; Josué 5). Isso é comprovado não só pelo simples fato de não haver registro de outras ocasiões, mas também porque a circuncisão foi omitida durante todo o período da permanência do povo de Israel no deserto; e sem essa ordenança, os filhos ficariam excluídos da celebração (Êxodo 12; Josué 5). 7. O Dr. Gill, que considerava o sábado uma instituição judaica que teria começado com Moisés e terminado com Cristo, e com a qual os gentios não precisavam ter o menor envolvimento, fez a avaliação a seguir acerca da questão do fogo no sábado. Sem dúvida, ele não tinha nenhum motivo para responder a essa objeção popular, a não ser o de declarar a verdade. Ele afirma: "Essa lei parece ser temporária, sem a exigência de que continuasse. Não se diz que ela deveria ser guardada ao longo das gerações, como em outros textos nos quais a lei do sábado é apresentada ou repetida; ficaria restrita ao período da construção do tabernáculo. E como tal, é verdade que ela é ordenada imediatamente antes dos preparativos para a sua construção (Êxodo 35:4ss). Vemos, portanto, que seu objetivo era impedir qualquer trabalho público ou particular no dia de sábado referente a esse empreendimento" (Commentary on Exodus 35:3). O Dr. Bound nos conta qual era a opinião de Santo Agostinho acerca desse preceito: "Ele não os admoesta a esse respeito sem motivo, pois ele [logo em seguida] fala sobre a construção do tabernáculo e de todos os objetos a ele relacionados, e mostra que, a despeito disso, deveriam descansar no dia de sábado e não chegar ao ponto de acender fogo (como se lê no texto), nesse dia, sob o pretexto de estar atendendo aos projetos da construção" (True Doctrine of the Sabbath, p. 140). 8. Tem-se afirmado, com base no versículo 2, que o sábado era uma das festas do Senhor. Mas a comparação entre os versículos 2 e 4 mostra que há uma quebra na narrativa com o propósito de apresentar o sábado como uma santa convocação, e que o versículo 4 reinicia o tema usando exatamente a mesma linguagem do versículo 2. É preciso observar, também, que o restante do capítulo descreve as festas judaicas propriamente ditas, a saber, a Festa dos Pães Asmos, o Pentecostes e a Festa dos Taberná- culos. O que deixa esse ponto ainda mais claro é a diferenciação cuidadosa, feita nos versículos 37 e 38, entre as festas do Senhor e os sábados do Senhor. Mas Êxodo 23:14 resolve a questão, sem deixar espaço para dúvidas: "Três vezes no ano Me celebrareis festa". E em seguida os versículos 15--17 enumeram essas festas, conforme mencionadas em Levítico 23:4--44. Conferir também 2 Crônicas 8:13. 9. Hengstenberg, ilustre alemão antissabatista, aborda com toda franqueza essa passagem: "Um homem que havia apanhado lenha no sábado foi levado para fora, por ordem do Senhor, e apedrejado por toda a congregação diante do arraial. Calvino disse corretamente: 'O homem culpado não caiu por causa de seu erro, mas pelo desprezo descarado pela lei, pois levianamente julgou poder subverter e destruir tudo aquilo que é sagrado'. Fica evidente, com base no modo como a passagem é introduzida, que o relato não foi apresentado sem uma clara referência quanto a sua posição cronológica. A Bíblia diz: 'Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem apanhando lenha no dia de sábado'. Trata-se simplesmente de um exemplo de arrogante transgressão da lei da qual falam os versículos anteriores. Aquele homem havia desprezado a palavra do Senhor e quebrado Seus mandamentos [versículo 31]; ele pecara arrogantemente e injuriara ao Senhor [versículo 30]" (The Lord's Day, p. 31, 32). Capítulo 7 As Festas, as Luas Novas e os Sábados dos Hebreus Estudamos o sábado do Senhor ao longo dos livros de Moisés. Uma breve análise das festas judaicas é necessária para uma abordagem completa do assunto em questão. Comecemos com as três festas principais: a Páscoa, o Pentecostes e a Festa dos Tabernáculos. Havia as festas de cada lua nova, isto é, o primeiro dia de cada mês ao longo do ano; e havia também os sete sábados anuais, a saber: (1) o primeiro dia da Festa dos Pães Asmos; (2) o sétimo dia dessa festa; (3) o dia de Pentecostes; (4) o primeiro dia do sétimo mês; (5) o décimo dia desse mês; (6) o décimo quinto dia desse mês; (7) o vigésimo segundo dia desse mês. Além desses, todo sétimo ano deveria ser um sábado da terra, e todo quinquagésimo ano, o jubileu. A Páscoa [passover, em inglês: passar sobre] deriva seu nome da passagem do anjo do Senhor por cima da casa dos hebreus, na fatídica noite em que os primogênitos de todas as famílias egípcias foram mortos. Essa festa foi ordenada em comemoração ao livramento do povo da escravidão no Egito. Começava com a imolação do cordeiro pascoal, no décimo quarto dia do primeiro mês e se estendia por um período de sete dias, nos quais só se podia comer pão sem fermento. Seu grande antítipo ocorreu quando Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por nós. (Êxodo 12; 1 Coríntios 5:7,8) O Pentecostes era a segunda das festas judaicas, e acontecia em um único dia. Era celebrado no quinquagésimo dia após as primícias da colheita da cevada serem movidas perante o Senhor. Por ocasião dessa festa, as primícias da colheita de trigo eram ofertadas a Deus. O antítipo dessa festa aconteceu no quinquagésimo dia após a ressurreição de Cristo, quando sobreveio o grande derramamento do Espírito Santo. (Levítico 23:10-21; Números 28:26-31; Deuteronômio 16:9-12; Atos 2:1-18) A festa dos tabernáculos era a última festa judaica. Era celebrada no sétimo mês, quando o povo já havia feito a colheita, e se estendia do décimo quinto ao vigésimo primeiro dia desse mês. Era ordenada como uma festa de regozijo perante o Senhor; durante esse período, os filhos de Israel habitavam em cabanas para relembrar sua forma de habitação durante a peregrinação pelo deserto. Ela provavelmente tipifica o grande regozijo que se seguirá ao ajuntamento final de todo o povo de Deus, em Seu reino. (Levítico 23:10-21; Deuteronômio 16:13-15; Neemias 8; Apocalipse 7:9-14) Em conexão com essas festas, ordenava-se que cada lua nova, ou seja, o primeiro dia de cada mês, fosse observada com algumas ofertas especiais e demonstrações de regozijo. (Números 10:10; 28:11-15; 1 Samuel 20:5,24,27; Salmos 81:8) Os sábados anuais dos hebreus já foram enumerados. Os dois primeiros eram o primeiro e o sétimo dias da Festa dos Pães Asmos, isto é, o décimo quinto e o vigésimo primeiro dias do primeiro mês. Eles foram ordenados por Deus da seguinte maneira: "Sete dias comereis pães asmos. Logo ao primeiro dia, tirareis o fermento das vossas casas. [...] Ao primeiro dia, haverá para vós outros santa assembleia; também, ao sétimo dia, tereis santa assembleia; nenhuma obra se fará nele, exceto o que diz respeito ao comer; somente isso podereis fazer." (Êxodo 12:15,16; Levítico 23:7,8; Números 28:17,18,25) O terceiro na sequência dos sábados anuais era o dia de Pentecostes. Essa festa foi ordenada, nas seguintes palavras, como dia de descanso: "No mesmo dia, se proclamará que tereis santa convocação; nenhuma obra servil fareis; é estatuto perpétuo em todas as vossas moradas, pelas vossas gerações." (Levítico 23:21; Números 28:26) O primeiro dia do sétimo mês era o quarto sábado anual dos hebreus. Foi ordenado assim: "Fala aos filhos de Israel, dizendo: No mês sétimo, ao primeiro do mês, tereis descanso solene, memorial, com sonidos de trombetas, santa convocação. Nenhuma obra servil fareis, mas trareis oferta queimada ao Senhor." (Levítico 23:24,25; Números 29:1-6) O grande Dia da Expiação era o quinto desses sábados. Assim falou o Senhor a Moisés: "Mas, aos dez deste mês sétimo, será o Dia da Expiação; tereis santa convocação. [...] Nenhuma obra fareis, porque é o Dia da Expiação, para fazer expiação por vós perante o Senhor, vosso Deus. Porque toda alma que, nesse dia, se não afligir será eliminada do seu povo. Quem, nesse dia, fizer alguma obra, a esse Eu destruirei do meio do seu povo. Nenhuma obra fareis; é estatuto perpétuo pelas vossas gerações, em todas as vossas moradas. Sábado de descanso solene vos será; então, afligireis a vossa alma; aos nove do mês, de uma tarde a outra tarde, celebrareis o vosso sábado." (Levítico 23:27-32; 16:29-31; Números 29:7) O sexto e o sétimo sábados anuais correspondiam ao décimo quinto e ao vigésimo segundo dias do sétimo mês, isto é, o primeiro dia da Festa dos Tabernáculos e um dia após seu término. Assim eles foram ordenados por Deus: "Porém, aos quinze dias do mês sétimo, quando tiverdes recolhido os produtos da terra, celebrareis a festa do Senhor, por sete dias; ao primeiro dia e também ao oitavo, haverá descanso solene." (Levítico 23:39) Além desses, todo sétimo ano era um sábado de descanso para a terra. O povo poderia trabalhar, como de costume, em outros ofícios, mas eram proibidos de arar o solo, para que a própria terra pudesse descansar. (Êxodo 23:10,11; Levítico 25:2-7) Após sete desses sábados, o ano seguinte, ou seja, o quinquagésimo, deveria ser o ano do jubileu, no qual toda a herança deveria ser restaurada às pessoas. (Levítico 25:8-54) Não há evidências de que o jubileu tenha sido observado, e é certo que o ano sabático foi quase totalmente negligenciado. (Levítico 26:34,35,43; 2 Crônicas 36:21) Essas eram as festas, as luas novas e os sábados dos hebreus. Bastam algumas palavras para mostrar a grande distinção entre estes e o sábado do Senhor. A primeira das três festas foi ordenada em memória da libertação do cativeiro egípcio, e deveria ser observada quando entrassem na própria terra. (Êxodo 12:25) A segunda festa, conforme vimos, só poderia ser observada após os hebreus se estabelecerem em Canaã, pois seria celebrada quando as primícias da colheita de trigo pudessem ser movidas perante o Senhor. A terceira festa foi ordenada em memória da peregrinação pelo deserto, e deveria ser celebrada anualmente após o término de toda a colheita. É claro que essa festa, assim como as outras, só poderia ser celebrada depois que o povo se estabelecesse em sua terra. As luas novas, conforme já vimos, só deveriam começar depois da instituição dessas festas. Os sábados anuais faziam parte dessas festas, e só poderiam existir depois que as festas às quais pertenciam fossem colocadas em prática. Assim, o primeiro e o segundo desses sábados ocorriam no primeiro e no sétimo dias da festa da Páscoa. O terceiro sábado anual correspondia ao dia da festa de Pentecostes. O quarto deles equivalia à lua nova do sétimo mês. O quinto era o grande Dia da Expiação. O sexto e o sétimo sábados anuais caíam no décimo quinto e no vigésimo segundo dias do sétimo mês, isto é, no primeiro dia da Festa dos Tabernáculos e no dia seguinte ao encerramento da mesma. Como essas festas só seriam observadas depois que os hebreus possuíssem a terra, os sábados anuais só teriam existência a partir de então. O mesmo se pode dizer dos sábados da terra. Eles só poderiam existir depois que os hebreus possuíssem a terra e cultivassem o solo; depois de seis anos de cultivo, a terra deveria descansar no sétimo ano e permanecer sem ser arada. Depois de sete desses sábados da terra, viria o ano do jubileu. O contraste entre o sábado do Senhor e esses sábados dos hebreus14 é fortemente marcado: 1. O sábado do Senhor foi instituído no fim da primeira semana do tempo, ao passo que esses foram ordenados em conexão com as festas judaicas; 2. O primeiro sábado foi abençoado e santificado por Deus, porque Ele descansou da obra da Criação; os outros não receberam esse tipo de honra; 3. Quando os filhos de Israel chegaram ao deserto, o sábado do Senhor era uma instituição existente e obrigatória para eles; já os sábados anuais passaram a existir a partir do deserto. É muito fácil identificar o ato exato de Deus que deu existência a tais sábados enquanto guiava os israelitas, ao passo que todas as referências ao sábado do Senhor mostram que ele fora ordenado antes de Deus escolher os filhos de Israel; 4. Os israelitas foram excluídos da terra prometida por transgredirem o sábado do Senhor no deserto, mas os sábados anuais não deveriam ser observados enquanto eles não entrassem naquela terra. Tal contraste seria muito estranho caso fosse verdade que o sábado do Senhor foi instituído depois que os filhos de Israel chegaram ao deserto de Sim; pois é certo que dois dos sábados anuais foram instituídos antes que eles partissem do Egito; (Êxodo 12:16) 5. O sábado do Senhor foi feito para o homem, mas os sábados anuais foram designados apenas para os residentes da terra da Palestina; 6. Um era semanal, sendo um memorial do descanso do Criador; os outros eram anuais, ligados a memoriais da libertação dos hebreus do Egito; 7. Um é chamado de "sábado do Senhor", "Meus sábados", "Meu santo dia" e assim por diante; os outros são chamados de "vossos sábados", "seus sábados" e expressões semelhantes; (Êxodo 20:10; 31:13; Isaías 58:13 comparados com Levítico 23:24,32,39; Lamentações 1:7; Oseias 2:11) 8. Um foi proclamado por Deus como um dos dez mandamentos e escrito com Seu dedo no meio da lei moral sobre tábuas de pedra, e depositado na arca embaixo do propiciatório; já os outros não faziam parte da lei moral, mas foram codificados por Moisés, e por ele escritos à mão em forma de ordenanças, servindo de "sombra dos bens vindouros" (Hebreus 10:1); 9. A distinção entre as festas e os sábados do Senhor foi cuidadosamente traçada por Deus quando Ele ordenou as festas e os sábados associados a elas. Ele disse: "São estas as festas fixas do Senhor, que proclamareis para santas convocações [...], além dos sábados do Senhor". (Levítico 23:37,38) Os sábados anuais são apresentados por Isaías sob uma perspectiva bem diferente da que ele adota ao abordar o sábado do Senhor. Acerca dos primeiros, ele diz: "Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para Mim abominação, e também as Festas da Lua Nova, os sábados, e a convocação das congregações; não posso suportar iniquidade associada ao ajuntamento solene. As vossas Festas da Lua Nova e as vossas solenidades, a Minha alma as aborrece; já Me são pesadas; estou cansado de as sofrer." (Isaías 1:13,14) Em marcante contraste com essa declaração, o mesmo profeta diz o seguinte a respeito do sábado do Senhor: "Assim diz o Senhor: Mantende o juízo e fazei justiça, porque a Minha salvação está prestes a vir, e a Minha justiça, prestes a manifestar-se. Bem-aventurado o homem que faz isto, e o filho do homem que nisto se firma, que se guarda de profanar o sábado e guarda a sua mão de cometer algum mal. Não fale o estrangeiro que se houver chegado ao Senhor, dizendo: O Senhor, com efeito, me separará do Seu povo; nem tampouco diga o eunuco: Eis que eu sou uma árvore seca. Porque assim diz o Senhor: Aos eunucos que guardam os Meus sábados, escolhem aquilo que Me agrada e abraçam a Minha aliança, darei na Minha casa e dentro dos Meus muros um memorial e um nome melhor do que filhos e filhas; um nome eterno darei a cada um deles, que nunca se apagará. Aos estrangeiros que se chegam ao Senhor, para o servirem e para amarem o nome do Senhor, sendo deste modo servos Seus, sim, todos os que guardam o sábado, não o profanando, e abraçam a Minha aliança, também os levarei ao Meu santo monte e os alegrarei na Minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no Meu altar, porque a Minha casa será chamada Casa de Oração para todos os povos." (Isaías 56:1-7; 58:13,14) Oseias nomeia cuidadosamente os sábados anuais na seguinte profecia: "Farei cessar todo o seu gozo, as suas Festas de Lua Nova, os seus sábados e todas as suas solenidades." (Oseias 2:11) Essa profecia foi feita por volta de 785 a.C. Ela se cumpriu parcialmente cerca de 200 anos depois de ser feita, quando Jerusalém foi destruída por Nabucodonosor. Por volta de 588 a.C., Jeremias disse as seguintes palavras acerca desse acontecimento: "[...] o seu povo [caiu] nas mãos do adversário, não tendo ela quem a socorresse; e [...] os adversários a viram e fizeram escárnio da sua queda [de seus sábados, KJV]." "Tornou-se o Senhor como inimigo, devorando Israel; devorou todos os seus palá- cios, destruiu as suas fortalezas e multiplicou na filha de Judá o pranto e a lamentação. Demoliu com violência o seu tabernáculo, como se fosse uma horta; destruiu o lugar da sua congregação; o Senhor, em Sião, pôs em esquecimento as festas e o sábado [os sábados, KJV] e, na indignação da sua ira, rejeitou com desprezo o rei e o sacerdote. Rejeitou o Senhor o seu altar e detestou o seu santuário; entregou nas mãos do inimigo os muros dos seus castelos; deram gritos na Casa do Senhor, como em dia de festa." (Lamentações 1:7; 2:5-7) As festas do Senhor deveriam ser realizadas na cidade que Ele escolhesse, a saber, Jerusalém; (Deuteronômio 16:16; 2 Crônicas 7:12; Salmos 122) e quando essa cidade, o local das assembleias solenes do povo, fosse destruída e seus habitantes levados cativos, ocorreria a interrupção completa dessas festas e, em consequência, dos sábados anuais, que caíam em dias específicos dessas festas. Os adversários zombariam de seus sábados, dando "gritos na Casa do Senhor, como em dia de festa". Mas a observância do sábado do Senhor não cessou com a dispersão dos hebreus de sua terra, pois não se tratava de uma instituição local, como os sábados anuais. Sua transgressão foi uma das principais causas do cativeiro babilônico; (Jeremias 17:19-27; Neemias 13:15-18) e a restauração final deles à sua própria terra era condicional à observação do sábado durante o período de dispersão. (Isaías 56)[2] As festas, as luas novas e os sábados anuais foram restaurados quando os hebreus voltaram do cativeiro, e, com algumas interrupções, guardados até a destruição final de sua cidade e nação pelos romanos. Mas antes que a providência divina assim eliminasse a existência dessas festas judaicas, todo o sistema típico foi abolido, ao chegar o início de seu antítipo, quando nosso Senhor Jesus Cristo expirou sobre a cruz. Nesse momento, o "escrito [...] que constava de ordenanças" (Colossenses 2:14) foi abolido e, por isso, ninguém deve ser julgado a respeito de comida, bebida, dias santos, luas novas, ou sábados, "porque tudo isso [era] sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo" (Colossenses 2:17). Entretanto, o sábado do Senhor não fazia parte desse "escrito [...] que constava de ordenanças", pois ele foi instituído antes da entrada do pecado no mundo e, consequentemente, antes que houvesse qualquer tipo de sombra da obra da redenção. Ele foi escrito pelo dedo de Deus, não em meio a tipos e sombras, mas, sim, no seio da lei moral; e no dia posterior àquele em que aos sábados típicos foram pregados na cruz, o mandamento sabático da lei moral é expressamente reconhecido. Além disso, quando as festas judaicas foram extintas por completo, após a destruição final de Jerusalém, mesmo lá a atenção do povo de Deus foi dirigida para o sábado do Senhor. (Ver capítulo 10) Assim delineamos a história dos sábados anuais até seu fim definitivo, conforme predito por Oseias. Resta-nos traçar a história do sábado do Senhor até chegarmos às infindáveis eras da nova terra, quando encontraremos toda a multidão dos remidos reunida diante de Deus, sábado após sábado, para adorar. Notas: 1. A esse respeito, o Sr. Miller usa as seguintes palavras: "Somente um tipo de sábado foi dado a Adão, e apenas um permanece para nós. Ver Oseias 2:11: 'Farei cessar todo o seu gozo, as suas Festas de Lua Nova, os seus sábados e todas as suas solenidades'. Todos os sábados judaicos cessaram quando Cristo os pregou na cruz (Colossenses 2:14--17). Esses eram chamados adequadamente de sábados judaicos. Oseias diz 'os seus sábados'. Mas o sábado ao qual nos referimos, Deus o chama de 'Meu sábado'. Aqui vemos uma clara distinção entre o sábado da Criação e o sábado cerimonial. Um é perpétuo; os outros eram apenas sombras dos bens vindouros" (Life and Views, p. 161, 162). 2. Conferir o oitavo capítulo desta obra. Capítulo 8 O Sábado de Davi a Neemias Quando deixamos os livros de Moisés, há uma longa interrupção na história do sábado. Não se faz nenhuma menção a ele nos livros de Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel e 1 Reis. Ele só volta a ser mencionado quando chegamos ao livro de 2 Reis. (2 Reis 4:23) Contudo, no livro de 1 Crônicas, cuja narrativa é paralela à dos dois livros de Samuel, o sábado é mencionado (1 Crônicas 9:32)[1] com referência aos acontecimentos da vida de Davi. Todavia, isso significa um intervalo de 500 anos nos quais a Bíblia fica em silêncio a respeito do sábado. Durante esse período, lemos a história do povo hebreu, desde a entrada na terra prometida até a coroação de Davi como seu rei, abrangendo vários detalhes da vida de Josué, dos anciãos e juízes de Israel, de Gideão, Baraque, Jefté, Sansão, Eli, Noemi e Rute, Ana e Samuel, Saul e Jônatas e Davi. Entretanto, mesmo em meio a todo esse relato minucioso, não há menção direta ao sábado. Os antissabatistas, no desejo de provar a total negligência do sábado na era patriarcal, têm grande apreço pelo argumento de que o livro de Gênesis, embora apresente um relato preciso da origem do sábado no paraíso no fim da primeira semana do tempo, não registra nada relativo a sua observância na vida dos patriarcas -- vale ressaltar que nesse livro se encontram narrados os acontecimentos de 2.370 anos. O que, então, eles teriam a dizer sobre o fato de que seis livros sucessivos da Bíblia, que abordam, com detalhes consideráveis, os acontecimentos de 500 anos, envolvendo muitas circunstâncias que convidam a uma alusão ao sábado, não o mencionam nem sequer uma vez? Será que o silêncio de um livro, apesar de relatar com clareza a instituição do sábado logo em seu início e trazer em seu registro quase 2.400 anos, prova que não havia guardadores do sábado antes de Moisés? O que, então, seria provado pelo fato de seis livros seguidos da Bíblia, restritos aos acontecimentos de 500 anos -- um período correspondendo a cerca de um quinto daquele coberto pelo livro de Gênesis e com uma média de menos de cem anos por livro -- guardarem total silêncio a respeito do sábado? Ninguém faz menção a esse silêncio como evidência de que o sábado foi totalmente negligenciado durante esse período; mas por que não? Seria porque, quando a narrativa, após tamanho silêncio, menciona o sábado novamente, ela o faz de maneira casual, e não como uma nova instituição? Foi justamente esse o caso da segunda menção ao sábado no registro mosaico, isto é, sua referência após o silêncio de Gênesis. (Comparar os dois casos: Êxodo 16:23 com 1 Crônicas 9:32) Seria porque o quarto mandamento havia sido concedido aos hebreus, ao passo que nenhum preceito do tipo fora dado anteriormente à humanidade? Não se pode admitir tal resposta, pois vimos que a essência do quarto mandamento foi entregue ao cabeça da família humana; também é certo que, ao partirem do Egito, os hebreus já tinham a obrigação de guardar o sábado em consequência de uma lei pré-existente. (Ver capítulos 2 e 3) Logo, o argumento de que não houve guardadores do sábado de Moisés a Davi seria mais conclusivo do que dizer que não houve nenhum desde Adão até Moisés; contudo, ninguém tenta defender a primeira posição, ao passo que há muitos que tentam defender a segunda. Vários fatos, narrados na história desse período de cinco séculos, chamam nossa atenção. O primeiro deles se encontra no relato do cerco de Jericó. (Josué 6) Por ordem divina, os hebreus deram a volta na cidade todos os dias por sete dias; no último dia, deram a volta sete vezes. Então, por intervenção divina, os muros caíram diante deles e a cidade foi tomada em um ataque. Um desses sete dias certamente foi o sábado do Senhor. O povo de Deus não teria, então, transgredido o sábado ao agir assim? Deixemos os fatos seguintes responderem: 1. O que eles fizeram, nessa situação, foi por ordem direta de Deus; 2. O que o quarto mandamento proíbe é nossa própria obra: "Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus". Aquele que reservou o dia para Si tinha o direito de Se apropriar dele para realizar Seu serviço da maneira que achasse melhor; 3. O ato de dar a volta na cidade foi uma procissão estritamente religiosa. A arca da aliança do Senhor foi carregada diante do povo; e, perante a arca, marcharam sete sacerdotes tocando trombetas de chifre de carneiro; 4. A cidade não poderia ser muito grande; do contrário, rodeá-la sete vezes no último dia, e ainda sobrar tempo para sua destruição completa, teria sido impossível; 5. Tampouco se pode acreditar que os hebreus, carregando a arca à frente deles por ordem de Deus, a qual continha nada mais nada menos do que os dez mandamentos do Altíssimo, estariam violando o quarto mandamento, que diz: "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar". Com certeza, um dos sete dias nos quais o povo deu a volta em Jericó era o sábado; mas não é necessário supor que foi justamente o dia em que a cidade foi tomada. Nem se trata de uma conjectura razoável quando todos os fatos do caso são levados em consideração. Acerca desse episódio, o Dr. Clarke faz a seguinte observação: "Não parece que poderia haver alguma transgressão do sábado pelo simples fato de o povo rodear a cidade, junto com a arca e os sacerdotes tocando as sagradas trombetas. Isso nada mais era do que uma procissão religiosa, realizada por ordem divina, na qual nenhum trabalho servil foi feito."[2] Sob a palavra de Josué, aprouve a Deus deter a rotação da Terra e fazer o sol ficar parado por um tempo, a fim de que os cananeus fossem derrotados diante de Israel. (Josué 10:12-14) Esse grande milagre não teria atrapalhado o sábado? De maneira nenhuma! Pois o aumento de um dos seis dias por intervenção divina não impediria a chegada do sétimo, nem poderia destruir sua identidade, muito embora o adiasse. O caso representa uma dificuldade para aqueles que defendem a teoria de que Deus santificou a sétima parte do tempo, e não o sétimo dia; nesse caso, o sábado não teria ficado com a totalidade da sétima parte do tempo. Contudo, não há dificuldade nenhuma para aqueles que creem que Deus separou o sétimo dia para ser guardado quando chegasse, em memória de Seu próprio descanso. Um dos seis dias recebeu porção de tempo maior do que até então e desde então; contudo, isso não conflita nem um pouco com o sétimo dia, que chegou do mesmo jeito. Além disso, todas essas coisas aconteceram enquanto homens inspirados estavam em ação; e consistiram em direta providência divina. Também se deve lembrar, de modo especial, que tudo isso ocorreu numa época em que ninguém nega que o quarto mandamento estava em pleno vigor. O caso de Davi, ao comer o pão da proposição, é digno de nota, visto que provavelmente aconteceu no sábado, e também porque foi citado em uma conversa memorável de nosso Senhor com os fariseus. (1 Samuel 21:1-6; Mateus 12:3,4; Marcos 2:25,26; Lucas 6:3,4) A lei dos pães da proposição ordenava que doze pães fossem colocados sobre a mesa pura do santuário, perante o Senhor, todos os sábados. (Levítico 24:5-9; 1 Crônicas 9:32) Quando os pães frescos eram colocados perante o Senhor a cada sábado, os velhos eram retirados e consumidos pelos sacerdotes. (1 Samuel 21:5, 6; Mateus 12:4) Tudo indica que os pães da proposição, dados a Davi naquele dia, haviam sido retirados da presença do Senhor, para que pães quentes fossem colocados em seu lugar; logo, aquele dia era o sábado. Por isso, quando Davi pediu pão, o sacerdote disse: "Não tenho pão comum à mão; há, porém, pão sagrado". Davi respondeu: "Em alguma maneira é pão comum, quanto mais que hoje se santificará outro no corpo!" (ARC). E o escritor sagrado acrescenta: "Então, o sacerdote lhe deu o pão sagrado, porquanto não havia ali outro pão, senão os pães da proposição, que se tiraram de diante do Senhor, para se pôr ali pão quente, no dia em que aquele se tirasse" (ARC). Todas as circunstâncias, nesse caso, favorecem o ponto de vista de que isso aconteceu no sábado: 1. Não havia pão comum com o sacerdote. Isso não é de se estranhar, visto que os pães da proposição deviam ser retirados da presença do Senhor a cada sábado e consumidos pelos sacerdotes; 2. O sacerdote não se ofereceu para fazer outro pão, o que não é de se estranhar se aceitarmos o fato de que se tratava do dia de sábado; 3. A surpresa do sacerdote ao encontrar Davi pode se dever, em parte, ao fato de ser sábado; 4. Isso também pode explicar a detenção de Doegue, naquele dia, perante o Senhor; 5. Quando nosso Senhor foi intimado a Se pronunciar acerca da conduta de Seus discípulos, que haviam colhido e comido espigas no sábado para saciar a fome, Ele citou esse caso de Davi, bem como o dos sacerdotes que ofereciam sacrifícios no templo, no sábado, para justificar Seus discípulos. Sua citação adquire propriedade e adequação extraordinárias se compreendermos que o ato de Davi ocorreu no sábado. Nessa perspectiva, a questão assume uma luz bem diferente daquela proposta pelos antissabatistas. (Conferir o capítulo 10 desta obra) É importante chamar a atenção para uma distinção que nunca se deve perder de vista. A apresentação do pão da proposição e a oferta de holocaustos no dia de sábado, conforme ordenadas pela lei cerimonial, não faziam parte da instituição sabática original. Afinal de contas, o sábado foi criado antes da queda do ser humano, ao passo que os holocaustos e ritos cerimoniais do santuário foram introduzidos em consequência da queda. Enquanto tais ritos foram obrigatórios, eles necessariamente ligaram o sábado, até certo ponto, às festividades judaicas, em que sacrifícios semelhantes eram realizados. Esta ligação só é vista nos textos bíblicos que relatam a provisão feita para tais ofertas. (1 Crônicas 23:31; 2 Crônicas 2:4; 8:13; 31:3; Neemias 10:31,33; Ezequiel 45:17) Quando a lei cerimonial foi cravada na cruz, todas as festas judaicas deixaram de existir, pois a realização delas era ordenada por essa lei. (Ver o capítulo 7 desta obra) Mas a anulação dessa lei só poderia eliminar os ritos que essa mesma lei havia anexado ao sábado, deixando a instituição sabática original exatamente da forma como fora estabelecida, no princípio, por seu Autor. A primeira referência ao sábado, depois dos dias de Moisés, se encontra nas prescrições de Davi e Samuel acerca do ofício dos sacerdotes e levitas na casa de Deus. As Escrituras dizem o seguinte: "Outros dos seus irmãos, dos filhos dos coatitas, tinham o encargo de preparar os pães da proposição para todos os sábados." (1 Crônicas 9:32) Pode-se observar que essa é uma menção apenas casual ao sábado. Tal alusão, depois de um silêncio tão longo, é prova decisiva de que o sábado não fora esquecido, nem se perdera ao longo dos cinco séculos nos quais ele não é mencionado pelos historiadores sacros. Depois disso, nenhuma menção direta ao sábado é encontrada desde os dias de Davi até os do profeta Eliseu -- um intervalo de cerca de 150 anos. Talvez o salmo 92 seja uma exceção a essa afirmativa, uma vez que seu título, tanto em hebraico quanto em português, declara que o mesmo foi escrito para o dia de sábado;[3] e não é improvável que ele tenha sido composto por Davi, o mavioso cantor de Israel. Quando o filho da mulher sunamita morreu, ela procurou o profeta Eliseu. Seu esposo, sem saber que o menino estava morto, lhe disse: "Por que vais a ele hoje? Não é dia de Festa da Lua Nova nem sábado. Ela disse: Não faz mal." (2 Reis 4:23) É provável que a menção aqui seja ao sábado do Senhor, pois o termo é usado três vezes em um contexto parecido. (Isaías 66:23; Ezequiel 46:1; Amós 8:5) Se isso estiver correto, ela mostra que os hebreus tinham o costume de visitar os profetas de Deus nesse dia, para receber instruções divinas -- uma prática que nos ajuda a compreender a natureza das palavras relativas a colher o maná: "ninguém saia do seu lugar no sétimo dia". (Êxodo 16:29) Uma alusão casual ao sábado é feita no relato da coroação de Joás ao trono de Judá, (2 Reis 11:5-9; 2 Crônicas 23:4-8) por volta de 778 a.C. No reinado de Uzias, neto de Joás, o profeta Amós usa a seguinte linguagem em 787 a.C.: "Ouvi isto, vós que tendes gana contra o necessitado e destruís os miseráveis da terra, dizendo: Quando passará a Festa da Lua Nova, para vendermos os cereais? E o sábado, para abrirmos os celeiros de trigo, diminuindo o efa, e aumentando o siclo, e procedendo dolosamente com balanças enganadoras, para comprarmos os pobres por dinheiro e os necessitados por um par de sandálias e vendermos o refugo do trigo?." (Amós 8:4-6) Essas palavras foram proferidas diretamente às dez tribos, revelando o triste estado de apostasia que logo resultou em sua destruição como povo. Cerca de 50 anos depois, no fim do reinado de Acaz, encontramos outra alusão ao sábado. (2 Reis 16:18) Nos dias de Ezequias, em torno de 712 a.C., o profeta Isaías usa as seguintes palavras para mostrar a obrigatoriedade do sábado: "Assim diz o Senhor: Mantende o juízo e fazei justiça, porque a Minha salvação está prestes a vir, e a Minha justiça, prestes a manifestar-se. Bem-aventurado o homem que faz isto, e o filho do homem que nisto se firma, que se guarda de profanar o sábado e guarda a sua mão de cometer algum mal. Não fale o estrangeiro que se houver chegado ao Senhor, dizendo: O Senhor, com efeito, me separará do Seu povo; nem tampouco diga o eunuco: Eis que eu sou uma árvore seca. Porque assim diz o Senhor: Aos eunucos que guardam os Meus sábados, escolhem aquilo que Me agrada e abraçam a Minha aliança, darei na Minha casa e dentro dos Meus muros um memorial e um nome melhor do que filhos e filhas; um nome eterno darei a cada um deles, que nunca se apagará. Aos estrangeiros que se chegam ao Senhor, para O servirem e para amarem o nome do Senhor, sendo deste modo servos Seus, sim, todos os que guardam o sábado, não o profanando, e abraçam a Minha aliança, também os levarei ao Meu santo monte e os alegrarei na Minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no Meu altar, porque a Minha casa será chamada Casa de Oração para todos os povos. Assim diz o Senhor Deus, que congrega os dispersos de Israel: Ainda congregarei outros aos que já se acham reunidos." (Isaías 56:1-8) Essa profecia apresenta várias características interessantes: 1. Ela se refere a um tempo em que a salvação de Deus está próxima; (Sobre a chegada dessa salvação, ver Hebreus 9:28; 1 Pedro 1:9) 2. Ela mostra, de maneira muito clara, que o sábado não é uma instituição judaica, pois pronuncia uma bênção sobre todo homem que guardar o sábado, a despeito de sua nacionalidade; e então especifica o estrangeiro, isto é, o gentio, (Êxodo 12:48,49; Isaías 14:1; Efésios 2:12) e faz uma promessa especial para ele, caso ele guarde o sábado; 3. Essa profecia se aplica a Israel quando estava no exílio, ou seja, durante a dispersão, pois promete reunir tanto eles quanto outros, isto é, os gentios, com eles. É claro que a condição para que eles sejam reunidos no santo monte de Deus deve ser cumprida, a saber, amar o nome do Senhor, ser servos Seus e deixar de profanar o sábado; 4. Conclui-se, portanto, que o sábado não é uma instituição local, passível de ser observada apenas na terra prometida, como o eram os sábados anuais, (Ver capítulo 7) mas que ele foi feito para a humanidade, podendo ser guardado pelos exilados de Israel enquanto estes estivessem espalhados por todas as terras debaixo do céu. (Deuteronômio 28:64; Lucas 21:24) Mais uma vez, Isaías fala do sábado, e o faz usando uma linguagem que o distingue, com muita ênfase, de todas as instituições cerimoniais. Ele diz: "Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no Meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do Senhor, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no Senhor. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do Senhor o disse." (Isaías 58:13,14) A linguagem empregada aqui constitui um comentário evangélico do quarto mandamento. Ela acrescenta ao mandamento do sábado uma promessa grandiosa e preciosa, que se apropria daquela terra prometida a Jacó, a saber, a Nova Terra. (Mateus 8:11; Hebreus 11:8-16; Apocalipse 21) No ano 601 a.C., 13 anos antes da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, Deus fez ao povo judeu uma graciosa oferta, por intermédio de Jeremias, de que, se guardassem o sábado, a cidade permaneceria para sempre. Ao mesmo tempo, testificou que, se não o fizessem, a cidade seria completamente destruída. Assim disse o profeta: "Ouvi a palavra do Senhor, vós, reis de Judá, e todo o Judá, e todos os moradores de Jerusalém que entrais por estas portas. Assim diz o Senhor: Guardai-vos por amor da vossa alma, não carregueis cargas[4] no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém;[5] não tireis cargas de vossa casa no dia de sábado, nem façais obra alguma; antes, santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais. Mas não atenderam, não inclinaram os ouvidos; antes, endureceram a cerviz, para não Me ouvirem, para não receberem disciplina.[6] Se, deveras, Me ouvirdes, diz o Senhor, não introduzindo cargas pelas portas desta cidade no dia de sábado, e santificardes o dia de sábado, não fazendo nele obra alguma, então, pelas portas desta cidade entrarão reis e príncipes, que se assentarão no trono de Davi, andando em carros e montados em cavalos, eles e seus príncipes, os homens de Judá e os moradores de Jerusalém; e esta cidade será para sempre habitada. Virão das cidades de Judá e dos contornos de Jerusalém, da terra de Benjamim, das planícies, das montanhas e do Sul, trazendo holocaustos, sacrifícios, ofertas de manjares e incenso, oferecendo igualmente sacrifícios de ações de graças na Casa do Senhor. Mas, se não Me ouvirdes, e, por isso, não santificardes o dia de sábado, e carregardes alguma carga, quando entrardes pelas portas de Jerusalém no dia de sábado, então, acenderei fogo nas suas portas, o qual consumirá os palácios de Jerusalém e não se apagará." (Jeremias 17:20-27) Essa graciosa oferta do Altíssimo ao povo rebelde não foi levada em conta, pois oito anos depois Ezequiel diz o seguinte: "No meio de ti, desprezam o pai e a mãe, praticam extorsões contra o estrangeiro e são injustos para com o órfão e a viúva. Desprezaste as Minhas coisas santas e profanaste os Meus sábados. [...] Os seus sacerdotes transgridem a Minha lei e profanam as Minhas coisas santas; entre o santo e o profano, não fazem diferença, nem discernem o imundo do limpo e dos Meus sábados escondem os olhos; e, assim, Sou profanado no meio deles. [...] Ainda isto Me fizeram: no mesmo dia contaminaram o Meu santuário e profanaram os Meus sábados. Pois, havendo sacrificado seus filhos aos ídolos, vieram, no mesmo dia, ao Meu santuário para o profanarem; e assim o fizeram no meio da Minha casa." (Ezequiel 22:7,8,26; 23:38,39) A idolatria e a transgressão do sábado, pecados constantes entre os hebreus no deserto e que lançaram as bases para sua dispersão da própria terra, (Ezequiel 20:23,24; Deuteronômio 32:16-35) permaneceram, desde então, no meio deles. E, agora que sua destruição pelo poder avassalador do rei de Babilônia era iminente, eles se encontravam tão profundamente envolvidos com esses pecados e outros semelhantes que não deram ouvidos à voz de advertência. Antes de entrarem no santuário de Deus no dia de sábado, eles primeiro matavam os próprios filhos em sacrifícios a ídolos! (Ezequiel 23:38,39) Assim, a iniquidade chegou ao seu auge e a ira caiu sobre eles com toda intensidade. "Eles, porém, zombavam dos mensageiros, desprezavam as palavras de Deus e mofavam dos Seus profetas, até que subiu a ira do Senhor contra o Seu povo, e não houve remédio algum. Por isso, o Senhor fez subir contra ele o rei dos caldeus, o qual matou os seus jovens à espada, na casa do seu santuário; e não teve piedade nem dos jovens nem das donzelas, nem dos velhos nem dos mais avançados em idade; a todos os deu nas suas mãos. Todos os utensílios da Casa de Deus, grandes e pequenos, os tesouros da Casa do Senhor e os tesouros do rei e dos seus príncipes, tudo levou ele para a Babilônia. Queimaram a Casa de Deus e derribaram os muros de Jerusalém; todos os seus palácios queimaram, destruindo também todos os seus preciosos objetos. Os que escaparam da espada, a esses levou ele para a Babilônia, onde se tornaram seus servos e de seus filhos, até ao tempo do reino da Pérsia." (2 Crônicas 36:16-20) Quando os hebreus estavam no cativeiro na Babilônia, Deus propôs restaurá-los à própria terra e novamente lhes dar uma cidade e um templo, em circunstâncias de glória maravilhosa. (Ezequiel, capítulos 40-43) Uma vez que a condição da proposta foi desconsiderada, (Ezequiel 43:7-11) a glória oferecida nunca foi herdada. Na oferta, havia várias alusões ao sábado do Senhor e também às festas dos hebreus. (Ezequiel 44:24; 45:17; 46:1,3,4,12) Uma delas é digna de nota especial, pela clareza com que distingue o sábado dos outros dias da semana: "Assim diz o Senhor Deus: A porta do átrio interior, que olha para o oriente, estará fechada durante os seis dias que são de trabalho; mas no sábado ela se abrirá e também no dia da Festa da Lua Nova." (Ezequiel 46:1) Seis dias da semana são chamados, por inspiração divina, de dias "de trabalho"; o sétimo é chamado de sábado do Senhor. Quem ousaria confundir uma distinção tão evidente? Depois que os judeus voltaram do cativeiro na Babilônia e seu templo e sua cidade foram restaurados, eles reuniram todo o povo em assembleia solene e narraram em um discurso ao Altíssimo todos os grandes eventos da providência divina em sua história passada. O testemunho que eles deram a respeito do sábado é este: "Desceste sobre o monte Sinai, do céu falaste com eles e lhes deste juízos retos, leis verdadeiras, estatutos e mandamentos bons. O Teu santo sábado lhes fizeste conhecer; preceitos, estatutos e lei, por intermédio de Moisés, Teu servo, lhes mandaste." (Neemias 9:13,14) Desse modo, todo o povo foi lembrado dos grandes acontecimentos do monte Sinai: a entrega das dez palavras da lei de Deus e o conhecimento de Seu santo sábado. A congregação inteira ficou tão impressionada com as consequências de sua desobediência, no passado, que entrou em solene aliança de obediência a Deus. (Neemias 9:38; 10:1-31) E assim comprometeram-se uns com os outros: "De que, trazendo os povos da terra no dia de sábado qualquer mercadoria e qualquer cereal para venderem, nada comprariam deles no sábado, nem no dia santificado; e de que, no ano sétimo, abririam mão da colheita e de toda e qualquer cobrança." (Neemias 10:31) Durante a ausência de Neemias, no período em que ele voltou para a corte persa, tal aliança foi, pelo menos parcialmente, esquecida. Onze anos se passaram e Neemias deu o seguinte testemunho acerca do estado das coisas, por ocasião de seu retorno, por volta de 434 a.C.: "Naqueles dias, vi em Judá os que pisavam lagares ao sábado e traziam trigo que carregavam sobre jumentos; como também vinho, uvas e figos e toda sorte de cargas, que traziam a Jerusalém no dia de sábado; e protestei contra eles por venderem mantimentos neste dia. Também habitavam em Jerusalém tírios que traziam peixes e toda sorte de mercadorias, que no sábado vendiam aos filhos de Judá e em Jerusalém. Contendi com os nobres de Judá e lhes disse: Que mal é este que fazeis, profanando o dia de sábado? Acaso, não fizeram vossos pais assim, e não trouxe o nosso Deus todo este mal sobre nós e sobre esta cidade? E vós ainda trazeis ira maior sobre Israel, profanando o sábado. Dando já sombra as portas de Jerusalém antes do sábado,[7] ordenei que se fechassem; e determinei que não se abrissem, senão após o sábado; às portas coloquei alguns dos meus moços, para que nenhuma carga entrasse no dia de sábado. Então, os negociantes e os vendedores de toda sorte de mercadorias pernoitaram fora de Jerusalém, uma ou duas vezes. Protestei, pois, contra eles e lhes disse: Por que passais a noite defronte do muro? Se outra vez o fizerdes, lançarei mão sobre vós. Daí em diante não tornaram a vir no sábado. Também mandei aos levitas que se purificassem e viessem guardar as portas, para santificar o dia de sábado. Também nisto, Deus meu, lembra-Te de mim; e perdoa-me segundo a abundância da Tua misericórdia." (Neemias 13:15-22) Esse texto bíblico é um testemunho explícito de que a destruição de Jerusalém e o cativeiro babilônico foram consequências da profanação do sábado. Trata-se de uma confirmação notável das palavras de Jeremias, já mencionadas, nas quais o profeta revelou aos judeus que, se eles santificassem o sábado, sua cidade permaneceria para sempre; mas, se persistissem na transgressão desse dia, ela seria completamente destruída. Neemias dá testemunho do cumprimento da profecia de Jeremias acerca da violação do sábado; e a história do sábado no Antigo Testamento termina com seu solene apelo em prol desse dia. Notas: 1. É verdade que esse texto se relaciona à ordem de coisas posterior ao retorno de Babilônia; contudo, o versículo 22 informa que tal ordem foi originalmente estabelecida por Davi e Samuel. Ver versículos 1-32. 2. Conferir o comentário do Dr. A. Clarke sobre Josué 6:15. 3. Cotton Mather diz: "Existe um salmo na Bíblia cujo título é 'Salmo ou Cântico para o Dia de Sábado'. Observe agora esta parte do salmo: 'Quão grandes, Senhor, são as Tuas obras! Os Teus pensamentos, que profundos!' (Salmos 92:5). Essa sentença revela aquilo que deveria se tornar o tema de nossa meditação no dia de sábado. Nossos pensamentos devem se voltar para as obras de Deus" (Discourse on the Lord's Day, p. 30, 1703 d.C). E Hengstenberg afirma: "Este salmo é correspondente ao cabeçalho 'Cântico para o Dia de Sábado'. O uso adequado e positivo do sábado parece ser descrito aqui como a grata contemplação das obras de Deus, uma absorção devocional que só pode existir quando as ocupações comuns são deixadas de lado" (The Lord's Day, p. 36, 37). 4. Acerca desse texto, o Dr. A. Clarke comenta: "Com base neste e nos próximos versículos, descobrimos que a ruína dos judeus é atribuída à transgressão do sábado, uma vez que tal ato levou à negligência dos sacrifícios, das ordenanças religiosas e de toda adoração pública, trazendo consigo, necessariamente, toda sorte de imoralidade. A quebra do sábado foi o que fez com que todas as águas da ira de Deus caíssem sobre eles." 5. Para um comentário inspirado sobre essa linguagem, ver Neemias 13:15-18. 6. A linguagem empregada sugere fortemente que a violação do sábado sempre foi generalizada entre os hebreus. Ver Jeremias 7:23-28. 7. Algumas palavras a respeito da hora de início do sábado são propícias neste momento: (1) a contagem da primeira semana de tempo, necessariamente, determina todas as que vieram depois dela. A primeira parte do primeiro dia foi a noite; e todos os dias da primeira semana começaram com a noite; tarde e manhã, expressão equivalente a noite e dia, formaram o dia de 24 horas (Gênesis 1). Portanto, o primeiro sábado começou e terminou com a tarde; (2) muitos textos provam que, nas Escrituras, a noite é contada como parte do dia de 24 horas (Êxodo 12:41, 42; 1 Samuel 26:7, 8; Lucas 2:8--11; Marcos 14:30; Lucas 22:34 e muitos outros testemunhos); (3) os 2.300 dias, que simbolizam 2.300 anos, são constituídos como os dias da primeira semana de tempo (Daniel 8:14). O hebraico literalmente chama cada um desses dias de "tarde manhã"; (4) o estatuto que estabelece o grande Dia da Expiação define de forma absoluta que o dia começa com a tarde, e que a noite faz parte do dia: "Sábado de descanso solene vos será; então, afligireis a vossa alma; aos nove do mês, de uma tarde a outra tarde, celebrareis o vosso sábado" (Levítico 23:32); (5) os textos bíblicos a seguir provam, mais do que satisfatoriamente, que a tarde era equivalente ao pôr do sol: Deuteronômio 16:6; Levítico 22:6, 7; Deuteronômio 23:11; 24:13, 15; Josué 8:29; 10:26, 27; Juízes 14:18; 2 Samuel 3:35; 2 Crônicas 18:34; Mateus 8:16; Marcos 1:32; Lucas 4:40. Mas Neemias 13:19 não estaria em conflito com esse testemunho, indicando que o sábado só começava depois que escurecia? Creio que não. O texto não diz "tendo já começado a escurecer em Jerusalém antes do sábado", mas, sim, "dando já sombra nas portas de Jerusalém", ou "mal as sombras caíssem sobre as portas de Jerusalém, logo antes do sábado" (BJ). Se lembrarmos que as portas de Jerusalém eram colocadas sob muralhas altas e largas, não fica difícil harmonizar esse texto com os muitos aqui citados, provando que o dia começa ao pôr do sol. Calmet, em seu dicionário bíblico, no verbete "Sabbath", declara que o método judaico antigo de iniciar o sábado era o seguinte: "Cerca de meia hora antes do pôr do sol, todo trabalho era deixado e o sábado deveria começar". Acerca do fim do sábado, ele diz: "Quando a noite chegava, e eles conseguiam ver no céu três estrelas de moderada magnitude, então o sábado era dado por encerrado e podiam então voltar a suas ocupações comuns." Capítulo 9 O Sábado de Neemias a Cristo Um período de quase cinco séculos se passou entre a época de Neemias e o início do ministé- rio do Redentor. Durante esse período, ocorreu uma drástica mudança no povo judeu. Anteriormente, eles haviam sido, em alarmante medida, idólatras e rebeldes transgressores do sábado. Mas depois que voltaram de Babilônia, nunca mais foram culpados, no menor grau que seja, de idolatria. O castigo do cativeiro curou esse mal.[1] De maneira semelhante, mudaram a conduta em relação ao sábado e, durante esse período, sobrecarregaram a instituição sabática com ordenanças excessivamente opressivas e rigorosas. Um breve resumo desse período será suficiente. Durante o reinado de Antíoco Epifânio, rei da Síria, 170 a.C., os judeus foram muito oprimidos. "O rei [Antíoco] baixou um decreto, determinando que o reino inteiro formasse um só povo, e cada qual deixasse de lado seus costumes particulares. Todas as nações obedeceram ao decreto do rei. Entre os israelitas, muitos gostaram da religião do rei e passaram a oferecer sacrifícios aos ídolos e a profanar o sábado." (1 Macabeus 1:41-43) A maior parte dos hebreus permaneceu fiel a Deus e, por isso, foi obrigada a fugir a fim de salvar a própria vida. O historiador continua: "Muitos que amavam a justiça e o direito desceram para o deserto e aí ficaram com seus filhos, mulheres e rebanhos, pois a perseguição contra eles aumentava. Denunciaram aos oficiais do rei e à guarnição estabelecida em Jerusalém, na Cidade de Davi, que algumas pessoas tinham desobedecido às ordens do rei e descido para as cavernas do deserto. Um grande número desses soldados do rei correu atrás deles e os alcançou. Esses soldados se acamparam em volta deles e se organizaram para atacá-los num dia de sábado. Tudo pronto, lhes disseram: Agora chega! Saiam daí, façam aquilo que o rei mandou, e a vida de vocês estará salva. Eles responderam: Não sairemos, nem cumpriremos a ordem do rei, profanando o dia de sábado. Então os soldados começaram a atacá-los sem demora. Eles, porém, não reagiram, não atiraram uma única pedra, nem mesmo fecharam a entrada dos seus esconderijos. Disseram apenas: Vamos morrer com a consciência limpa. O céu e a terra são testemunhas de que vocês estão nos matando injustamente. Assim mesmo, os soldados os atacaram em dia de sábado. E eles morreram, com suas mulheres, crianças e rebanhos. Eram cerca de mil pessoas." (1 Macabeus 2:29-38)[2] Na própria cidade de Jerusalém, ocorreu um massacre semelhante. O rei Antíoco enviou Apolônio com um exército de 22 mil soldados: "Ao chegar a Jerusalém, Apolônio, simulando atitude pacífica, aguardou até o dia santificado do sábado. Surpreendeu os judeus em repouso, mandando os soldados fazer um desfile militar. Ordenou então que matassem todos os que saíam para ver o desfile. Depois, percorrendo a cidade com armas, provocou terrível massacre." (2 Macabeus 5:25,26) Levando em conta esses terríveis atos de execução, Matatias, homem grande e honrado, pai de Judas Macabeu, juntamente com seus amigos, tomou a seguinte decisão: "Lutaremos abertamente contra todo aquele que nos atacar em dia de sábado. Assim não morreremos todos, como nossos irmãos em seus esconderijos." (1 Macabeus 2:41) Contudo, alguns foram martirizados depois disso por guardarem o sábado. Por isso, lemos: "Outros, que tinham saído juntos para os arredores da cidade, para as cavernas, a fim de aí celebrarem às escondidas o sábado, após serem denunciados a Filipe, foram queimados juntos, pois concienciosamente haviam decidido ajudar-se a honrar o mais sagrado dia." (2 Macabeus 6:11) Depois disso, Judas Macabeu fez grandes conquistas em defesa dos hebreus e na resistência à terrível opressão do governo sírio. Sobre uma dessas batalhas, lemos: "[...] dada a palavra de ordem -- Auxílio de Deus --, Judas partiu contra Nicanor, comandando a primeira divisão. Como o Todo-poderoso Se tornou seu aliado, eles liquidaram mais de nove mil, enquanto feriram e mutilaram mais da metade do exército de Nicanor, obrigando todos os outros a fugir. Tomaram o dinheiro dos que tinham vindo com a intenção de comprá-los. Perseguiram os fugitivos por longo tempo, mas desistiram por estar ficando tarde, pois era véspera do sábado. Por isso, não continuaram a persegui-los. Após terem tomado as armas deles e despojado os cadáveres dos inimigos, celebraram o sábado de maneira extraordinária, louvando e agradecendo ao Senhor que nesse dia os libertou, marcando assim o início da Sua misericórdia para com eles. Passado o sábado, repartiram os despojos dos inimigos entre os mutilados, viúvas e órfãos. Repartiram entre si e seus filhos tudo o que sobrou." (2 Macabeus 8:23-28) Depois disso, os hebreus, ao serem atacados pelos seus inimigos no sábado, derrotaram-nos com grande matança. (1 Macabeus 9:43-49; 2 Macabeus 15)[3] Por volta de 63 a.C., Jerusalém foi cercada e tomada por Pompeu, general romano. A fim de que isso acontecesse, foi necessário encher uma imensa vala e levantar um aterro sobre o qual pudessem colocar as armas de ataque. Josefo faz o seguinte relato sobre o evento: "Caso não tivéssemos nossa prática, desde os dias de nossos antepassados, de descansar no sétimo dia, esse aterro nunca teria sido concluído, por causa da oposição que os judeus teriam feito; pois, embora nossa lei nos dê licença para nos defender, no sábado, daqueles que começam a lutar contra nós e a nos atacar, ela não nos permite que combatamos os inimigos enquanto fazem qualquer outra coisa. Quando os romanos compreenderam isso, nos dias que chamamos de sábados, eles não lançavam nada contra os judeus, nem iniciavam qualquer batalha de arremesso contra eles, mas construíam seus aterros, levando as máquinas de guerra avante, para poderem empreender a execução nos dias seguintes."[4] Com base nisso, pode-se pereber que Pompeu tomava o cuidado de não fazer nenhum ataque contra os judeus aos sábados, durante o cerco, mas nesse dia preenchia a vala e subia o aterro, para poder atacá-los no dia depois de cada sábado, isto é, no domingo. Josefo conta ainda que os sacerdotes não deixavam de ministrar no templo quando pedras eram arremessadas pelas máquinas de Pompeu, mesmo "que algum acidente infeliz acontecesse". O historiador relata também que, quando a cidade foi tomada e os inimigos se arremessaram sobre ela, cortando a garganta dos que estavam no templo, os sacerdotes, mesmo assim, não fugiram, nem cessaram as ofertas e os sacrifícios costumeiros. Essas citações da história judaica são suficientes para mostrar que ocorreu uma mudança extraordinária no povo, no que se refere ao sábado, após o cativeiro babilônico. Uma breve men- ção ao ensino dos mestres judaicos sobre o sábado, na época em que nosso Senhor deu início a Seu ministério, conclui este capítulo: "Eles listaram cerca de 40 trabalhos principais, os quais afirmavam ser proibidos no sábado. Sob cada uma dessas categorias de trabalho, havia numerosos trabalhos secundários, que, segundo eles, também eram proibidos. [...] Dentre os principais trabalhos proibidos estavam o arar, o semear, o colher, o debulhar, o limpar, o moer, etc. Na categoria do moer, estava incluído o quebrar ou o dividir coisas que antes estavam unidas. [...] Outra de suas tradições era a de que, visto que debulhar no sábado era proibido, esmagar as coisas, uma espécie de debulha, também não era permitido. Naturalmente, era transgressão do sábado andar na grama verde, pois ela seria esmagada ou debulhada. Da mesma forma, como um homem não podia caçar no sábado, não podia pegar uma mosca, pois se tratava de uma espécie de caça. Como não era permitido transportar carga no sábado, não se podia levar água a um animal com sede, pois esta era um tipo de carga; mas havia permissão para derramar água em um cocho e levar o animal até ele. [...] Contudo, se uma ovelha caísse em um poço, eles a tirariam prontamente e a levariam a um lugar seguro. [...] Eles diziam que era permitido ministrar aos doentes a fim de aliviar seu sofrimento, mas não com o propósito de curar a doença. Podiam cobrir um olho enfermo, ou ungi-lo com bálsamo para aliviar a dor, mas não curar o olho."[5] Assim, a mudança de conduta do povo judeu em relação ao sábado foi surpreendente; e esses eram os ensinos dos doutores da lei em relação ao dia de guarda. A instituição mais misericordiosa de Deus para a humanidade havia se tornado em fonte de angústia; o que Deus ordenara para ser um deleite e uma fonte de alento, transformara-se em um jugo de escravidão. O sábado, feito para o homem no paraíso, era agora uma instituição extremamente opressiva e penosa. Era tempo de Deus interferir. Entra em cena então o Senhor do sábado. Notas: 1. Referindo-se ao cativeiro babilônico, em sua nota sobre Ezequiel 23:48, o Dr. Clarke diz: "Desde aquela época até o presente, os judeus nunca mais caíram em idolatria". 2. Josefo, Antiguidades, livro 12, cap. 6. 3. Josefo, Antiguidades, livro 13, cap. 1. 4. Antiguidades dos Judeus, livro 14, cap. 4. Neste ponto, chamamos a atenção para uma das fraudes históricas que apontam para o domingo como sendo o sábado. O Dr. Justin Edwards apresenta esse relato da seguinte maneira: "Pompeu, general romano, ciente disso, enquanto cercava Jerusalém, não os atacava no dia de descanso, mas passava o dia construindo suas obras e se preparando para atacá-los na segunda-feira, de maneira que eles não conseguiam resistir, e foi assim que ele tomou a cidade" (Sabbath Manual, p. 216). Ele quis dizer que o dia seguinte ao dia de descanso era a segunda; logo, o domingo era o dia de descanso! Todavia, o Dr. Edwards sabia muito bem que, nos tempos de Pompeu, 63 anos antes de Cristo, o sétimo dia da semana era o único dia de descanso semanal, e que o domingo, e não a segunda-feira, consistia no dia de ataque. 5. Sabbath Manual of the American Tract Society, p. 214, 215. Capítulo 10 O Sábado durante a Última das Setenta Semanas Na plenitude do tempo, Deus enviou Seu Filho para ser o Salvador do mundo. Aquele que cumpriu essa missão de infinita benevolência era, tanto o Filho de Deus, quanto o Filho do homem. Ele estava com o Pai antes que o mundo existisse, e, por meio Dele, Deus criou todas as coisas. (Gálatas 4:4,5; João 1:1-10; 17:5,24; Hebreus 1) Como o sábado foi estabelecido ao fim dessa grande obra de criação, como memorial, para que ela fosse lembrada perpetuamente, o Filho de Deus, por intermédio de quem todas as coisas foram criadas, não seria ninguém menos que um perfeito Juiz para determinar seu verdadeiro desígnio e sua observância apropriada. Quando as 69 semanas da profecia de Daniel se cumpriram, o Redentor começou a pregar, dizendo: "O tempo está cumprido". (Daniel 9:25; Marcos 1:14,15) O ministério do Salvador ocorreu numa época em que, pelo ensino dos mestres judeus, o sábado do Senhor havia se desviado grandemente de seu propósito benevolente. Conforme vimos no capítulo anterior, ele não mais era uma fonte de alento e deleite para as pessoas, mas, sim, uma causa de sofrimento e aflição. Fora sobrecarregado de tradições pelos doutores da lei, até seu propósito misericordioso e benéfico ficar completamente escondido sob o lixo das invenções humanas. Satanás não conseguiu fazer com que o povo judeu, após o cativeiro babilônico, abrisse mão do sábado e o profanasse abertamente como antes, nem mesmo por meio de decretos sangrentos. Assim, ele levou os doutores da lei a perverter de tal forma a instituição sabática, que seu verdadeiro caráter foi completamente mudado, e sua observância se tornou inteiramente contrária àquela que agradaria a Deus. Veremos que o Salvador nunca perdeu uma oportunidade de corrigir as falsas noções dos judeus acerca do sábado, e que Ele intencionalmente escolheu o sábado como o dia para realizar muitas de Suas obras de misericórdia. Descobriremos que, durante Seu ministério, uma parcela significativa de Seus ensinos foi dedicada a definir o que era lícito fazer no sábado -- fato difícil de ser explicado por aqueles que acham que Ele planejou anular o sábado. No início do ministério de nosso Senhor, lemos o seguinte: "Então, Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Galileia, e a Sua fama correu por toda a circunvizinhança. E ensinava nas sinagogas, sendo glorificado por todos. Indo para Nazaré, onde fora criado, entrou, num sábado, na sinagoga, segundo o Seu costume, e levantou-Se para ler." (Lucas 4:14-16) Esse era o costume do Salvador em relação ao sábado. Fica claro que, por meio dessa prá- tica, Ele planejava demostrar Seu respeito por esse dia, pois não era necessário fazer isso a fim de atrair o público para ouvi-Lo, uma vez que grandes multidões estavam sempre prontas a se aglomerar ao redor Dele. Quando Seu testemunho foi rejeitado em Nazaré, nosso Senhor partiu para Cafarnaum. O historiador sagrado relata: "Jesus, porém, passando por entre eles, retirou-Se. E desceu a Cafarnaum, cidade da Galileia, e os ensinava no sábado. E muito se maravilhavam da Sua doutrina, porque a Sua palavra era com autoridade. Achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio imundo, e bradou em alta voz: Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus! Mas Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te e sai deste homem. O demônio, depois de o ter lançado por terra no meio de todos, saiu dele sem lhe fazer mal. Todos ficaram grandemente admirados e comentavam entre si, dizendo: Que palavra é esta, pois, com autoridade e poder, ordena aos espíritos imundos, e eles saem? E a Sua fama corria por todos os lugares da circunvizinhança. Deixando Ele a sinagoga, foi para a casa de Simão. Ora, a sogra de Simão achava-se enferma, com febre muito alta; e rogaram-Lhe por ela. Inclinando-Se Ele para ela, repreendeu a febre, e esta a deixou; e logo se levantou, passando a servi-los." (Lucas 4:30-39; Marcos 1:21-31; Mateus 8:5-15) Esses milagres são os primeiros registrados como tendo sido realizados, pelo Salvador, no sábado. Mas a rigidez judaica em relação à guarda do sábado é vista quando o povo espera até o pôr do sol, ou seja, até o sábado terminar, (Sobre esse ponto, confira a conclusão do capítulo 8) para levar os enfermos para serem curados. A narrativa continua da seguinte forma: "À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os enfermos e endemoninhados. Toda a cidade estava reunida à porta. E Ele curou muitos doentes de toda sorte de enfermidades; também expeliu muitos demônios, não lhes permitindo que falassem, porque sabiam quem Ele era." (Marcos 1:32-34; Lucas 4:40) A próxima menção do sábado é de especial interesse: "Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os Seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-Lhe: Eis que os Teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado. Mas Jesus lhes disse: Não lestes o que fez Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Pois Eu vos digo: aqui está quem é maior que o templo. Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes. Porque o Filho do Homem é Senhor do sábado." (Mateus 12:1-8; Marcos 2:23-28; Lucas 6:1-5) O texto paralelo em Marcos traz um importante acréscimo à conclusão de Mateus: "E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho do Homem é Senhor também do sábado." (Marcos 2:27,28) Ao analisar esse texto, deve-se tomar nota dos seguintes pontos: 1. O assunto em questão não diz respeito a passar pelo campo durante o sábado, pois havia fariseus entre o grupo; logo, pode-se concluir que o Salvador e aqueles que O acompanhavam estavam indo para a sinagoga ou voltando dela. 2. O questionamento que os fariseus levantaram foi se os discípulos, ao satisfazerem a fome comendo as espigas da plantação pela qual estavam passando, não estariam transgredindo a lei do sábado. 3. Aquele a quem a pergunta foi dirigida era, no mais completo sentido, competente para respondê-la, pois era um com o Pai quando o sábado foi criado. (Comparar com João 1:1-3; Gênesis 1:1,26; 2:1,2) 4. Ao Salvador aprouve apelar para precedentes bíblicos ao tomar uma posição quanto à pergunta feita, em vez de julgar o assunto com base em Seu próprio raciocínio independente. 5. O primeiro caso citado pelo Salvador era particularmente apropriado. Davi, enquanto fugia para salvar a própria vida, entrou na casa de Deus no sábado (Ver cap. 8) e comeu os pães da proposi- ção a fim de matar a fome. Os discípulos, a fim de aliviarem a fome, simplesmente comeram as espigas da plantação pela qual estavam passando no sábado. Se Davi fez algo correto, comendo por necessidade aquilo que pertencia somente aos sacerdotes, que culpa poderia ser atribuída aos discípulos que nem sequer estavam violando um preceito da lei cerimonial? Jesus nada mais precisava acrescentar sobre o fato de os discípulos satisfazerem a fome, no sábado, da forma que o fizeram. O exemplo seguinte de nosso Senhor se destina a mostrar que tipo de trabalho, no sábado, não consiste em violação de sua santidade. 6. É citado então o caso dos sacerdotes. O mesmo Deus que disse, no quarto mandamento: "Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra", ordenara aos sacerdotes, no templo, que oferecessem alguns tipos de sacrifício no dia de sábado. (Números 28:9,10) Não há contradição nenhuma nisso, pois o trabalho realizado no sábado pelos sacerdotes era apenas a manutenção da adoração ordenada por Deus em Seu templo, e não se encaixava naquilo que o mandamento chama de "tua obra". Logo, trabalho dessa natureza, segundo o julgamento do Salvador, não era, nem nunca foi, transgressão do sábado. 7. Mas é bem provável que o Salvador, nessa referência aos sacerdotes, não tivesse em mente apenas os sacrifícios que eles ofereciam no sábado, mas também o fato de terem de preparar novos pães da proposição a cada sábado, quando os velhos deviam ser retirados da mesa, perante o Senhor, e consumidos por eles. (Levítico 24:5-9; 1 Crônicas 9:32) Esse ponto de vista ligaria o caso dos sacerdotes com o de Davi, e ambos se aplicariam, com maravilhosa distinção, ao ato dos discípulos. Nesse caso, o argumento de nosso Senhor ganharia mais força ainda, ao Ele acrescentar: "Aqui está quem é maior que o templo". Logo, se os pães da proposição deveriam ser preparados a cada sábado para uso daqueles que ministravam no templo -- e esses ficavam sem culpa --, mais inocentes ainda eram os discípulos que, seguindo Aquele que era maior do que o templo, apesar de não ter onde repousar a cabeça, haviam comido algumas espigas da plantação no sábado, a fim de aliviar a própria fome! 8. Mas nosso Senhor estabelece, em seguida, um princípio digno da mais séria atenção. Ele acrescenta: "Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes". O Altíssimo havia ordenado que alguns tipos de trabalho fossem realizados no sábado, a fim de que Lhe fossem oferecidos sacrifícios. Mas Cristo afirma, usando a autoridade das Escrituras, (Oseias 6:6) que existe algo muito mais aceitável a Deus do que sacrifícios, a saber, os atos de misericórdia. Se Deus considerava inocentes aqueles que ofereciam sacrifícios no sábado, jamais condenaria aqueles que estendem misericórdia e alívio aos aflitos e sofredores nesse dia. 9. Como se não bastasse, o Salvador não dá o assunto por encerrado, pois acrescenta: "O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho do Homem é Senhor também do sábado". Se o sábado foi estabelecido, alguns atos foram necessários a fim de dar origem a ele. Que atos foram esses? (1) Deus descansou no dia de sábado. Isso transformou o sétimo dia no dia de descanso, ou sábado, do Senhor. (2) Ele abençoou esse dia, tornando-o, portanto, Seu dia santo. (3) Ele o santificou, ou seja, separou-o para uso santo; assim, sua observância passou a ser parte do dever do homem em relação a Deus. Houve, necessariamente, um momento em que tais atos foram realizados. E nesso ponto realmente não há espaço para discórdia. Esses atos não foram realizados no Sinai, nem no deserto de Sim, mas no paraíso. E esse fato é notoriamente confirmado pela linguagem usada pelo Salvador: "O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado". (Ver no original grego: Marcos 2:27) Dessa forma, Ele conduziu nossa mente ao homem Adão que foi feito do pó da terra, e afirmou que o sábado foi estabelecido por causa dele -- um testemunho conclusivo de que o sábado se originou no paraíso. Essa realidade é ilustrada de forma muito própria por uma declaração do apóstolo Paulo: "Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por causa do homem". (1 Coríntios 11:9) Não se pode negar que essas palavras fazem referência direta à criação de Adão e Eva. Se voltarmos ao princípio, encontraremos Adão feito do pó da terra, Eva, formada de uma de suas costelas, e, o sábado, feito do sétimo dia. (Gênesis 2:1-3,7,21-23) Assim, o Salvador, para terminar de responder à pergunta feita pelos fariseus, conecta o sábado ao princípio; e faz o mesmo com a instituição do casamento, quando o mesmo grupo pediu que Jesus desse Sua posição sobre a legalidade do divórcio. (Mateus 19:3-9) Sua declaração cuidadosa acerca do propósito do sábado e do casamento, ligando-os ao início de tudo -- no primeiro caso destacando a maneira como eles haviam pervertido o sábado, e, no segundo, fazendo o mesmo com relação ao casamento -- é um testemunho poderoso do caráter santo de cada uma dessas instituições. O argumento, no caso do casamento, é o seguinte: no princípio, Deus criou um homem e uma mulher, com o propósito de que os dois fossem uma só carne. Portanto, a relação conjugal foi projetada para unir apenas duas pessoas, e essa união deveria ser sagrada e indissolúvel. Esse foi o peso do argumento de Cristo sobre o divórcio. No que se refere ao sábado, Seu argumento foi este: Deus fez o sábado para o homem que Ele criou do pó da terra. Portanto, o sábado, tendo sido estabelecido para uma raça não caída, só pode ser uma instituição misericordiosa e benéfica. Aquele que fez o sábado para o homem, antes da queda, sabia quais eram as necessidades do homem e sabia como supri-las. O sábado foi dado ao homem para seu descanso, alento e deleite -- um propósito que foi mantido após a queda, (Êxodo 16:23; 23:12; Isaías 58:13,14) embora completamente perdido de vista pelos judeus. (Ver a conclusão do capítulo 9) Dessa forma, nosso Senhor abre o coração em relação ao sábado. Ele determina cuidadosamente quais obras não constituem transgressão do sábado, e o faz citando exemplos do Antigo Testamento, para deixar claro que não está introduzindo nenhuma mudança na instituição. Ele rejeita as tradições rigorosas e opressoras dos fariseus em relação ao sábado, ao remontar sua misericordiosa origem ao paraíso. Ao libertar, dessa forma, o sábado do rigor farisaico, Cristo o coloca sobre seu fundamento paradisíaco, atribuindo a obrigatoriedade do sábado à autoridade e santidade daquela lei que Ele não viera destruir, mas, sim, exaltar e honrar. (Mateus 5:17--19; Isaías 42:21) 10. Depois de tirar de sobre o sábado todos os acréscimos farisaicos, nosso Senhor conclui com esta notável declaração: "De sorte que o Filho do Homem é Senhor também do sábado". Os seguintes pontos merecem consideração: 1) Não era um menosprezo ao sábado, mas, sim, uma honra, o Filho unigênito de Deus afirmar ser seu Senhor. 2) Também não era depreciativo, ao caráter do Redentor, ser Senhor do sábado; além de todas as honras incluídas em Sua posição de Messias, Ele era também Senhor do sábado. Ou, se usarmos a expressão de Mateus, "o Filho do Homem até do sábado é Senhor" (Mateus 12:8, ARC), subentendendo que é grande a honra de possuir tal título. 3) Esse título implica que o Messias deveria ser o protetor, e não o destruidor, do sábado. Portanto, Ele era o Ser que possuía toda a legitimidade necessária para decidir a natureza apropriada da observância do sábado. Com essas palavras memoráveis, termina o primeiro discurso de nosso Senhor acerca do sábado. Desde essa ocasião, os fariseus começaram a observar o Salvador para encontrar uma acusa- ção contra Ele de transgressão do sábado. O exemplo a seguir mostra a maldade do coração deles, sua completa perversão do sábado, a necessidade urgente de corrigir, com autoridade, seus falsos ensinos a esse respeito, e a irrefutável defesa do Salvador: "Tendo Jesus partido dali, entrou na sinagoga deles. Achava-se ali um homem que tinha uma das mãos ressequida; e eles, então, com o intuito de acusá-Lo, perguntaram a Jesus: É lícito curar no sábado? Ao que lhes respondeu: Qual dentre vós será o homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado, esta cair numa cova, não fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha? Logo, é lícito, nos sábados, fazer o bem. Então, disse ao homem: Estende a mão. Estendeu-a, e ela ficou sã como a outra. Retirando-se, porém, os fariseus, conspiravam contra Ele, sobre como Lhe tirariam a vida." (Mateus 12:9-14; Marcos 3:1-6; Lucas 6:6-11) Qual foi o ato que provocou essa insanidade nos fariseus? Da parte do Salvador, uma palavra; da parte do homem, o fato de estender a mão. A lei do sábado proibia alguma dessas coisas? Ninguém poderia afirmar que sim. Mas o Salvador havia transgredido, em público, a tradição farisaica que proibia fazer qualquer coisa relacionada à cura de um enfermo no sábado. Quão necessário era que essa tradição perversa fosse eliminada, a fim de que o sábado fosse realmente preservado para a humanidade! Mas os fariseus se encheram de tamanha fúria que saíram da sinagoga e conspiraram sobre como poderiam destruir o Salvador. Todavia, Cristo agiu em favor do sábado ao rejeitar as tradições que haviam pervertido o dia sagrado. Depois disso, nosso Senhor voltou para Sua terra, e lemos o seguinte a Seu respeito: "Chegando o sábado, passou a ensinar na sinagoga; e muitos, ouvindo-O, se maravilhavam, dizendo: Donde vêm a Este estas coisas? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por Suas mãos?." (Marcos 6:2) Não muito depois dessa época, encontramos o Salvador em Jerusalém, e o milagre a seguir foi realizado no sábado: "Estava ali um homem enfermo havia trinta e oito anos. Jesus, vendo-o deitado e sabendo que estava assim há muito tempo, perguntou-lhe: Queres ser curado? Respondeu-lhe o enfermo: Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque, quando a água é agitada; pois, enquanto eu vou, desce outro antes de mim. Então, lhe disse Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e anda. Imediatamente, o homem se viu curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. E aquele dia era sábado. Por isso, disseram os judeus ao que fora curado: Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito. Ao que ele lhes respondeu: O mesmo que me curou me disse: Toma o teu leito e anda. Perguntaram-lhe eles: Quem é o homem que te disse: Toma o teu leito e anda? Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus Se havia retirado, por haver muita gente naquele lugar. Mais tarde, Jesus o encontrou no templo e lhe disse: Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior. O homem retirou-se e disse aos judeus que fora Jesus quem o havia curado. E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Mas Ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-Lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era Seu próprio Pai, fazendo-Se igual a Deus." (João 5:1-18) Nesse episódio, nosso Senhor é acusado de dois crimes: (1) transgredir o sábado; (2) considerar-Se igual a Deus. A primeira acusação se baseia nos seguintes motivos: (1) Cristo, por meio de Sua própria palavra, havia curado o paralítico. Mas isso não violava nenhuma lei de Deus; apenas invalidava a tradição que proibia que se fizesse qualquer coisa para curar doenças no sábado; (2) Ele havia orientado o homem a carregar seu leito. Mas, se considerado como carga, tratava-se de algo muito insignificante,[1] como uma capa ou um colchonete, com o objetivo de mostrar a realidade da cura e, assim, honrar o Senhor do sábado que o havia curado. Além disso, não é esse tipo de carga que as Escrituras proíbem de se carregar no sábado; (Comparar Jeremias 17:21-27 com Neemias 13:15-20) (3) Jesus justificou o que havia feito comparando o ato presente de cura com a obra que Seu Pai fazia até agora, isto é, desde o início da criação. A partir do instante em que o sábado foi santificado no paraíso, o Pai, em Sua providência, havia continuado a derramar sobre a raça humana, inclusive durante o sábado, todos os atos misericordiosos de preservação da raça. Essa obra do Pai era da mesma natureza daquela que Jesus acabara de realizar. Tais atos não podiam ser usados como argumentos de que o Pai até aquele momento não considerara o sábado importante, pois Ele solenemente ordenou sua observância na lei e nos profetas; (Gálatas 4:4; Mateus 5:17-19; 7:12; 19:17; Lucas 16:17) e como nosso Senhor havia expressamente reconhecido a autoridade desses escritos, não havia justificativa para acusá-Lo de desrespeitar o sábado, uma vez que Ele estava apenas seguindo o exemplo do Pai, que vinha fazendo isso desde o princípio. A resposta do Salvador a essas duas acusações remove todas as controvérsias: "Então, lhes falou Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de Si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que Este fizer, o Filho também semelhantemente o faz." (João 5:19) Essa resposta tem duas implicações: (1) Jesus estava seguindo o exemplo perfeito do Pai, que Lhe havia sempre revelado todas as Suas obras; portanto, uma vez que Ele realizava apenas aquilo que agradava ao Pai fazer, Ele não estava empenhado na obra de subverter o sábado; (2) por meio da mansa humildade dessa resposta -- "o Filho nada pode fazer de Si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai" --, Ele mostrou a falta de fundamento para a acusação que recebera de exaltação própria. Assim, Seus acusadores ficaram sem qualquer argumento que lhes permitisse fazer uma réplica. Vários meses depois, o mesmo caso de cura foi discutido: "Replicou-lhes Jesus: Um só feito realizei, e todos vos admirais. Pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas), no sábado circuncidais um homem. E, se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra Mim, pelo fato de Eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem?" (João 7:21-23) Esse texto bíblico contém a segunda resposta de nosso Senhor acerca da cura do paralítico no sábado. Na primeira resposta, Ele baseou Sua defesa no fato de fazer precisamente o mesmo que Seu Pai havia realizado até agora -- isto é, desde o princípio do mundo até Sua época, deixando assim implícito que o sábado passara a existir no princípio; caso contrário, o exemplo do Pai, de realizar obras de misericórdia durante o período sabático, não seria relevante. Nessa segunda resposta está implícita uma ideia semelhante, no que se refere à origem do sábado. Dessa vez, Sua defesa se baseia no fato de que Seu ato de cura não violava o sábado, assim como a circuncisão, no dia de sábado, não o transgredia. Mas se a circuncisão, ordenada na época de Abraão, fosse mais antiga do que o sábado -- como certamente seria, caso o sábado tivesse surgido no deserto de Sim --, a alusão não seria apropriada, uma vez que a circuncisão teria o direito à prioridade, por ser a instituição mais antiga. Seria perfeitamente apropriado falar que uma instituição mais recente (a circuncisão) não representava transgressão de uma mais antiga (o sábado); mas esse não seria o caso se uma instituição antiga (a circuncisão) fosse mencionada como não violando uma mais recente (o sábado). Logo, a linguagem indica que o sábado é mais antigo do que a circuncisão; em outras palavras, anterior aos dias de Abraão. Sem dúvida, as duas respostas do Salvador estão em harmonia com o testemunho unânime dos autores sagrados, segundo os quais o sábado surgiu com a santificação do dia de descanso do Senhor, no Éden. O que o Salvador fez que justificasse o ódio do povo judeu contra Ele? Jesus havia curado no sábado, com uma só palavra, um homem que estava inválido havia 38 anos. Esse ato não estaria em total acordo com a instituição sabática? Nosso Senhor resolveu essa questão com argumentos sólidos e irrefutáveis,[2] não só neste caso, mas também em outros já mencionados, e naqueles que ainda serão analisados. Caso Ele tivesse deixado o homem em sua condição miserável por ser sábado, apesar de ter condições de curá-lo com uma só palavra, teria desonrado o sábado e envergonhado Seu Autor. O Senhor do sábado será encontrado outras vezes trabalhando em prol desse dia, a fim de resgatá-lo das mãos daqueles que haviam pervertido totalmente seu desígnio -- uma obra um tanto quanto desnecessária, caso Jesus tivesse o propósito de cravar essa instituição na cruz. O próximo episódio digno de nota é o caso do cego de nascença. Ao vê-lo, Jesus disse: "É necessário que façamos as obras Daquele que Me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, Sou a luz do mundo. Dito isso, cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a saliva, aplicou-o aos olhos do cego, dizendo-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que quer dizer Enviado). Ele foi, lavou-se e voltou vendo. [...] E era sábado o dia em que Jesus fez o lodo e lhe abriu os olhos." (João 9:1-16) Aqui está outro relato dos atos de misericórdia realizados por nosso Senhor no sábado. Ele encontrou um cego de nascença, e, movido por compaixão, molhou a terra, ungiu os olhos do homem e mandou que o mesmo se lavasse no tanque. Quando este se lavou, passou a ver. Tal ato também era digno do sábado e do Senhor do sábado. E apenas os atuais oponentes do sábado -- assim como apenas os inimigos do Senhor do sábado naquela época -- conseguem ver nesse ato qualquer violação do sábado. Depois disso, lemos o seguinte: "Ora, ensinava Jesus no sábado numa das sinagogas. E veio ali uma mulher possessa de um espírito de enfermidade, havia já dezoito anos; andava ela encurvada, sem de modo algum poder endireitar-se. Vendo-a Jesus, chamou-a e disse-lhe: Mulher, estás livre da tua enfermidade; e, impondo-lhe as mãos, ela imediatamente se endireitou e dava glória a Deus. O chefe da sinagoga, indignado de ver que Jesus curava no sábado, disse à multidão: Seis dias há em que se deve trabalhar; vinde, pois, nesses dias para serdes curados e não no sábado. Disse-lhe, porém, o Senhor: Hipócritas, cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento, para levá-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos? Tendo Ele dito estas palavras, todos os Seus adversários se envergonharam. Entretanto, o povo se alegrava por todos os gloriosos feitos que Jesus realizava." (Lucas 13:10-17) Dessa vez, uma filha de Abraão, ou seja, uma mulher piedosa, (1 Pedro 3:6) que Satanás mantinha presa havia dezoito anos, foi liberta de seu cativeiro no dia de sábado. Jesus silenciou o clamor de Seus inimigos apelando para a própria ação deles em soltarem o boi e o levarem para beber água no sábado. Com essa resposta, Jesus envergonhou todos os Seus adversários, e o povo se alegrava pelas coisas gloriosas que Ele realizava. O último ato glorioso com o qual Jesus honrou o sábado é assim relatado: "Aconteceu que, ao entrar Ele num sábado na casa de um dos principais fariseus para comer pão, eis que O estavam observando. Ora, diante Dele se achava um homem hidrópico. Então, Jesus, dirigindo-Se aos intérpretes da Lei e aos fariseus, perguntou- -lhes: É ou não é lícito curar no sábado? Eles, porém, nada disseram. E, tomando-o, o curou e o despediu. A seguir, lhes perguntou: Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado? A isto nada puderam responder." (Lucas 14:1-6) Fica claro que os fariseus e mestres da lei não ousaram responder à pergunta "É ou não é lícito curar no sábado?". Se dissessem sim, condenariam a própria tradição. Se dissessem não, seriam incapazes de embasar a resposta com argumentos justos. Por isso, ficaram em silêncio. Depois de curar o homem, Jesus fez uma pergunta igualmente embaraçosa: "Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?". Mais uma vez, não conseguiram responder. Ao que tudo indica, as discussões de nosso Senhor com os fariseus, de tempos em tempos, acerca do sábado, haviam-lhes mostrado, finalmente, que o silêncio acerca de suas tradições era mais sábio do que o discurso. Em Seus ensinos públicos, o Salvador declarou que as questões mais importantes da lei eram o juízo, a misericórdia e a fé; (Mateus 23:23) e o esforço poderoso e contínuo de Jesus em prol do sábado foi no sentido de vindicar esse dia como uma instituição misericordiosa e libertá-lo das tradições farisaicas, que o haviam desviado de seu propósito original. Aqueles que se opõem ao sábado são culpados de injustiça em dois aspectos: (1) eles apresentam os rigores farisaicos como se fossem parte da instituição sabática. Assim, fazem com que a mente das pessoas se posicionem contra o sábado; (2) tendo alcançado esse objetivo, apresentam os esforços do Salvador em anular as tradições farisaicas como sendo para derrubar o próprio sábado. E agora chegamos ao memorável discurso do Salvador no monte das Oliveiras, às vésperas de Sua crucifixão, no qual Ele faz Sua última menção ao sábado: "Quando, pois, virdes o abominável da desolação de que falou o profeta Daniel, no lugar santo (quem lê entenda), então, os que estiverem na Judeia fujam para os montes; quem estiver sobre o eirado não desça a tirar de casa alguma coisa; e quem estiver no campo não volte atrás para buscar a sua capa. Ai das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias! Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado; porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido e nem haverá jamais." (Mateus 24:15-21) Por meio dessas palavras, nosso Senhor coloca em evidência as terríveis calamidades que sobreviriam ao povo judeu, e a destruição de sua cidade e de seu templo conforme predita pelo profeta Daniel; (Daniel 9:26,27) Ele ressalta, também, Seu cuidado vigilante sobre Seu povo, visto que Ele faz questão de avisá-los sobre como poderiam escapar. Observe os pontos a seguir: 1. Jesus dá um sinal para que Seu povo fiel reconhecesse quando essa destruição terrível estivesse bem perto de acontecer. Seria quando "o abominável da desolação" estivesse "no lugar santo", ou, conforme expressou Lucas, o sinal seria "Jerusalém sitiada de exércitos". (Lucas 21:20) O cumprimento desse sinal foi registrado pelo historiador Josefo. Após afirmar que Céstio, comandante romano, no começo da disputa entre judeus e romanos, cercou a cidade de Jerusalém com um exército, ele acrescenta: "Caso tivesse dado continuidade ao cerco por um pouco mais, ele certamente teria tomado a cidade; mas, suponho eu, foi por causa da aversão que Deus já tinha contra a cidade e o santuário que ele foi impedido de dar fim à guerra naquele mesmo dia. Ocorreu então que Céstio, sem ter conhecimento do nível de desânimo dos sitiados em obter sucesso, nem da falta de coragem do povo para lutar contra ele, recolheu seus soldados do lugar e, perdendo toda esperança de tomar a cidade, sem ter sofrido qualquer infortúnio, retirou-se da cidade, sem nenhum motivo no mundo."[3] 2. Quando esse sinal fosse visto, os discípulos deveriam saber que a desolação de Jerusalém estava próxima. "Então" -- disse Cristo -- "os que estiverem na Judeia fujam para os montes". Josefo registrou o cumprimento dessa ordem: "Após essa calamidade sobrevir a Céstio, muitos dos judeus mais proeminentes 'nadaram' para longe da cidade, como se estivessem saindo de um navio prestes a afundar."[4] Eusébio também relatou o cumprimento dessa profecia: "Todavia, todo o corpo da igreja em Jerusalém, depois de receber uma revelação divina, concedida ali, antes da guerra, a homens de verdadeira piedade, saiu da cidade e foi habitar em uma cidade além do Jordão chamada Pela. Então, tendo os crentes em Cristo se retirado de Jerusalém, ficando a própria cidade real e toda a terra da Judeia como que completamente destituídas de homens santos, a justiça divina, em decorrência dos crimes cometidos contra Cristo e Seus apóstolos, finalmente lhes sobreveio, destruindo totalmente da Terra toda aquela geração de malfeitores."[5] 3. O perigo seria tão iminente que, ao verem o sinal, não deveriam perder nem um segundo. Aquele que estivesse no eirado não deveria descer nem para pegar alguma coisa dentro de casa. Quem estivesse no campo não deveria voltar para casa a fim de pegar nem mesmo suas roupas. Nenhum momento poderia ser perdido. Deveriam fugir como estavam, para salvar a própria vida. E digno de pena era o caso daqueles que não tivessem condições de fugir. 4. Levando em conta o fato de que os discípulos deveriam fugir no momento em que o sinal prometido aparecesse, nosso Senhor os orientou a orar por duas coisas: (1) para que a fuga não acontecesse durante o inverno; (2) para que não fosse em dia de sábado. Caso precisassem fugir para as montanhas no rigor do inverno, sem tempo nem de pegar suas roupas, estariam numa situação deplorável, e isso é prova suficiente da importância do primeiro pedido e do terno cuidado de Jesus por Seu povo. O segundo pedido igualmente expressa Seu cuidado como Senhor do sábado. 5. Mas argumenta-se que o último pedido se refere somente ao fato de que os judeus, naquele momento, estariam guardando o sábado de forma rígida e, por causa disso, as portas da cidade estariam fechadas nesse dia, punindo com a morte aqueles que tentassem fugir; logo, o pedido não seria prova nenhuma da consideração de Cristo pelo sábado. Uma declaração expressa com tanta certeza e frequência deveria estar bem fundamentada na verdade; no entanto, uma breve análise demonstra que esse não é o caso: 1) As palavras do Salvador se aplicam a toda a terra da Judeia, e não só a Jerusalém: "os que estiverem na Judeia fujam para os montes". O fechamento das portas da cidade só afetaria a fuga de parte dos discípulos. 2) Josefo menciona o notável fato de que Céstio, quando estava marchando em direção a Jerusalém, em cumprimento do sinal do Salvador, havendo chegado a Lida, não muitos quilômetros distante de Jerusalém, "encontrou a cidade sem seus homens, pois toda a multidão havia subido a Jerusalém para a Festa dos Tabernáculos".[6] A lei de Moisés requeria a presença de todos os homens israelitas em Jerusalém, por ocasião dessa festa. (Deuteronômio 16:16) Portanto, na providência de Deus, nenhum inimigo judeu ficou na terra para impedir sua fuga. 3) Fatos históricos revelam que a nação judaica, reunida em Jerusalém, violou abertamente o sábado alguns dias antes da fuga dos discípulos, algo digno de nota diante da suposta rigidez, existente naquela época, em guardá-lo.[7] Assim, Josefo, comentando sobre a marcha de Céstio rumo a Jerusalém, afirma: "Ele levantou acampamento em um lugar chamado Gabao, a dez quilômetros de Jerusalém. Mas quando os judeus viram a guerra se aproximar da metrópole, partiram da festa e empunharam armas. Encorajando-se grandemente por estarem em multidão, saíram para lutar de maneira repentina e desordenada, fazendo muito barulho e sem nenhuma consideração pelo descanso do sétimo dia, embora o sábado fosse o dia pelo qual tinham a maior consideração; mas a ira que os levou a esquecer a observância religiosa [do sábado] tornou a peleja contra seus inimigos muito acirrada. Caíram, portanto, com tanta violência sobre os romanos que conseguiram penetrar em suas fileiras, marchando no meio deles e causando grande carnificina enquanto prosseguiam [...]."[8] Pode-se ver, assim, que, na véspera da fuga dos discípulos, a ira dos judeus contra seus inimigos os fez desconsiderar o sábado por completo! 4) Mas depois de Céstio cercar a cidade com seu exército, dando, assim, o sinal do Salvador, ele se retirou de repente, conforme disse Josefo, "sem nenhum motivo no mundo". Ele diz que esse foi o momento da fuga dos discípulos e assinala como a providência de Deus abriu caminho para aqueles que estavam em Jerusalém: "Mas quando os saqueadores perceberam a retirada imprevista [de Céstio], eles se encheram de coragem e correram atrás da retaguarda do exército, destruindo um número considerável de cavaleiros e homens da infantaria. Enquanto isso, Céstio passou toda a noite no acampamento em Escopo. Ao se afastar ainda mais, no dia seguinte, convidou, assim, os inimigos a segui-lo, e estes atacaram mais uma vez os últimos da retaguarda e os destruíram."[9] Essa investida da multidão frenética em perseguir os romanos ocorreu durante o exato momento em que os discípulos tinham ordem de fugir, e deu a eles a oportunidade propícia para escaparem. Caso a fuga de Céstio tivesse ocorrido no sábado, sem dúvida os judeus o teriam perseguido nesse dia, como de fato o fizeram, em circunstâncias menos efervescentes alguns dias antes, quando andaram vários quilômetros para atacá- -lo no sétimo dia. Conclui-se, portanto, que, tanto na cidade quanto no campo, os discípulos não corriam risco de ser atacados por seus inimigos, mesmo que a fuga tivesse ocorrido em dia de sábado. 6. Logo, há apenas um ponto de vista que se pode considerar acerca do sentido das palavras de nosso Senhor, a saber, que Ele mencionou o sábado por respeito a esse dia sagrado. Em Seu terno cuidado por Seu povo, Ele havia lhes dado um preceito que exigiria a violação do sábado, caso o momento da fuga caísse nesse dia, pois a ordem de fugir se tornava imperativa no instante em que vissem o sinal prometido, e a distância até Pela, onde encontraram local de refúgio, era de cerca de cem quilômetros. Essa oração que o Salvador deixou com os discípulos faria com que os mesmos lembrassem do sábado sempre que se colocassem na presença de Deus. Portanto, era impossível à igreja apostólica esquecer o dia sagrado de descanso. Tal oração, a de que em um momento futuro não fossem forçados a violar o sábado, era um meio garantido de perpetuar sua sagrada observância ao longo dos 40 anos vindouros, até a destruição final de Jerusalém, e nunca foi esquecida pela igreja primitiva, conforme veremos posteriormente.[10] O Salvador, que incansavelmente Se esforçou, ao longo de todo Seu ministério, para mostrar que o sábado era uma instituição misericordiosa e deveria ficar livre das tradições que haviam pervertido seu propósito original, recomendou com grande ternura o sábado a Seu povo em Seu último discurso, unindo, na mesma petição, a segurança dos discípulos e a santidade do dia de descanso do Senhor.[11] Alguns dias depois desse discurso, o Senhor do sábado foi pregado na cruz como o grande sacrifício pelos pecados da humanidade. (Mateus 27; Isaías 53) O Messias foi, assim, morto no meio da septuagésima semana e, por Sua morte, fez cessar o sacrifício e a oferta de manjares. (Daniel 9:24-27) Paulo descreve da seguinte maneira a anulação do sistema típico, na crucifixão do Senhor Jesus: "Tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz. [...] Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo." (Colossenses 2:14-17) Declara-se que o alvo dessa ação era o "escrito de [...] ordenanças". O modo de anulação é explanado desta forma: (1) cancelado; (2) encravado na cruz; (3) removido inteiramente. Sua natureza é expressa por meio destas palavras: "contra nós" e "nos era prejudicial". As coisas que ele continha eram comida e bebida, dia de festa, lua nova e sábados.[12] O todo é chamado de "sombra" de bens vindouros e o corpo que lança essa sombra é o de Cristo. A lei proclamada pela voz de Deus e escrita com Seu próprio dedo em tábuas de pedra, depositada debaixo do propiciatório, era completamente diferente do sistema de ordenanças carnais escrito em um livro, por Moisés, e colocado ao lado da arca. [13] Seria absurdo dizer que as tábuas de pedra foram encravadas na cruz, ou se referir à remoção daquilo que foi gravado em pedra. Fazer isso seria apresentar o filho de Deus derramando Seu sangue para cancelar aquilo que o dedo de Seu Pai havia escrito. Seria tornar confusos todos os princípios imutáveis da moralidade e representar os dez mandamentos como se fossem "contrários" à natureza moral do ser humano. Seria transformar Cristo em ministro do pecado, como se tivesse morrido para destruir por completo a lei moral. Nenhum homem tem a verdade a seu lado ao apresentar os dez mandamentos como parte das coisas contidas na lista feita por Paulo daquilo que foi abolido. Tampouco há desculpa para aqueles que destroem os dez mandamentos com essa declaração de Paulo; pois ele mostra, por fim, que as coisas anuladas eram "sombras" daquilo que haveria de vir -- um absurdo se aplicado à lei moral. As festas, as luas novas e os sábados da lei cerimonial, que Paulo declara terem sido abolidos em consequência da anulação daquele código, já foram analisados de maneira específica. (Ver o capítulo 7) Os fatos a seguir demonstram que o sábado do Senhor não faz parte dessa lista: 1. O sábado do Senhor foi criado antes da entrada do pecado em nosso mundo. Portanto, não é uma das sombras da redenção do pecado. (Ver o capítulo 2) 2. Tendo sido feito para o homem antes da queda, não é uma das coisas que eram contra ele ou prejudiciais a ele. (Marcos 2:27) 3. Quando os sábados cerimoniais foram ordenados, eles foram cuidadosamente diferenciados do sábado do Senhor. (Levítico 23:37,38) 4. O sábado do Senhor não deve sua existência ao "escrito de [...] ordenanças", mas se encontra no próprio centro da lei que Jesus não veio destruir. Portanto, a anulação da lei cerimonial não seria capaz de abolir o sábado do quarto mandamento. (Gênesis 2:1-3; Êxodo 20; Mateus 5:17,19) 5. O esforço de nosso Senhor, ao longo de todo Seu ministério, para resgatar o sábado da escravidão criada pelos doutores judeus e vindicá-lo como uma instituição misericordiosa, absolutamente contradiz a ideia de que Ele o pregou na cruz como se fosse uma coisa contrária ao ser humano e prejudicial a ele. 6. A oração de nosso Senhor a respeito da fuga dos discípulos da Judeia, reconhece a santidade do sábado, muitos anos depois da crucifixão do Salvador. 7. A perpetuidade do sábado na nova terra não se harmoniza facilmente com a ideia de que ele foi cancelado e cravado na cruz de nosso Senhor, como se fosse uma coisa contrária ao homem. (Isaías 66:22,23. ver também o fim do capítulo 19 desta obra) 8. A autoridade do quarto mandamento é expressamente reconhecida após a crucifixão do Salvador. (Lucas 23:34-56) 9. E, finalmente, a lei real, não abolida, engloba os dez mandamentos, consequentemente abrangendo e ratificando o sábado do Senhor. (Tiago 2:8-12; Mateus 5:17-19; Romanos 3:19,31) Quando o Salvador morreu na cruz, todo o sistema típico, que havia apontado para esse evento como o início de seu antítipo, expirou junto com Ele. Depois que o Salvador morreu, José de Arimateia foi até Pilatos e pediu o corpo de Jesus. Com o auxílio de Nicodemos, ele o enterrou em sua nova sepultura. (Hebreus 9; 10; Lucas 23:46-53; João 19:38-42) "Era o dia da preparação, e começava o sábado. As mulheres que tinham vindo da Galileia com Jesus, seguindo, viram o túmulo e como o corpo fora ali depositado. Então, se retiraram para preparar aromas e bálsamos. E, no sábado, descansaram, segundo o mandamento. Mas, no primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo, levando os aromas que haviam preparado." (Lucas 23:54-56; 24:1) Esse texto merece atenção especial: (1) porque consiste em um reconhecimento explícito do quarto mandamento após a crucifixão do Senhor Jesus; (2) porque é o caso mais marcante de observância do sábado em toda a Bíblia. O Senhor do sábado estava morto; preparativos para Seu embalsamamento foram feitos, e, quando o sábado começou, o trabalho foi suspenso. O historiador sagrado conta então que as mulheres descansaram segundo o mandamento; (3) porque mostra que o sábado, segundo o mandamento, é o dia anterior ao primeiro dia da semana, identificando assim o sétimo dia do mandamento com o sétimo dia da semana do Novo Testamento; (4) porque consiste em um testemunho direto de que o conhecimento do verdadeiro sétimo dia foi preservado por muito tempo, chegando até a crucifixão, pois elas guardaram o dia ordenado no mandamento; e esse dia foi o mesmo no qual o Altíssimo descansou da obra de criação. No dia seguinte ao sábado, isto é, no primeiro dia da semana, constatou-se que Jesus havia ressuscitado dentre os mortos. Muitos supõem que, nesse momento, o sábado foi mudado do sétimo para o primeiro dia da semana, e que a santidade do sétimo dia foi então transferida para o primeiro dia da semana, o qual, a partir de então, passou a ser o sábado cristão, de natureza obrigatória, tendo por base toda a autoridade do quarto mandamento. A fim de julgar a veracidade desse ponto de vista, leiamos com cuidado cada uma das menções ao primeiro dia encontradas nos quatro evangelhos. Mateus escreve: "No findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro." Marcos diz: "Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram aromas para irem embalsamá-Lo. E, muito cedo, no primeiro dia da semana, ao despontar do sol, foram ao túmulo. [...] Havendo Ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana, apareceu primeiro a Maria Madalena." Lucas usa as seguintes palavras: "Então, se retiraram para preparar aromas e bálsamos. E, no sábado, descansaram, segundo o mandamento. Mas, no primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo, levando os aromas que haviam preparado." João dá este testemunho: "No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra estava revolvida. [...] Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana, trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos judeus, veio Jesus, pôs-Se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco!" (Mateus 28:1; Marcos 16:1,2,9; Lucas 23:56; 24:1; João 20:1,19) Nessas passagens, deve-se procurar o fundamento do "sábado cristão" -- caso exista de fato tal instituição --, pois não há nenhum outro relato do primeiro dia ligado ao momento em que este supostamente teria se tornado santo. Pretende-se provar, com base nesses textos que, na ressurreição do Salvador, o primeiro dia absorveu a santidade do sétimo e se elevou, da posição de dia secular, para dia santo, rebaixando o sábado do Senhor ao nível dos "seis dias que são de trabalho". (Ezequiel 46:1) Todavia, os fatos a seguir devem ser considerados muito extraordinários, caso essa suposta mudança do sábado para o domingo tenha, de fato, ocorrido aqui: 1. Essas passagens não fazem nenhuma menção à mudança do sábado para o domingo. 2. Elas fazem uma distinção cuidadosa entre o sábado do quarto mandamento e o primeiro dia da semana. 3. Elas não empregam nenhum título sagrado ao dia; omitindo especialmente o título de "sábado cristão". 4. Elas não mencionam o fato de que Cristo tenha descansado no primeiro dia da semana, ato essencial para que esse dia pudesse se tornar Seu sábado, ou Seu dia de descanso. (Conferir a origem do antigo sábado em Gênesis 2:1-3) 5. Elas não relatam o ato de retirada da bênção de Deus, de sobre o sétimo dia, para colocá-la no primeiro; aliás, não mencionam nenhum ato de bênção e santificação do dia. 6. Elas não apresentam qualquer ato que Cristo tenha feito para o primeiro dia; e nem mesmo nos informam de que saiu de Seus lábios qualquer menção ao primeiro dia da semana! 7. Elas não fornecem nenhum preceito que apoie a observância do primeiro dia, nem contêm qualquer pista de como o primeiro dia da semana pode ser ratificado pela autoridade do quarto mandamento. Caso se afirme, porém, usando as palavras de João, que os discípulos se congregaram nesse dia com o propósito de honrar o dia da ressurreição, e que Jesus sancionou o ato ao Se unir a eles, concretizando, assim, a mudança do sábado, é suficiente citar, em resposta, as palavras de Marcos que narram o mesmo encontro: "Finalmente, apareceu Jesus aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, porque não deram crédito aos que O tinham visto já ressuscitado." (Marcos 16:14. A análise detalhada de Lucas 24 mostrará que este encontro é o mesmo mencionado em João 20:19) O testemunho de Marcos mostra que a inferência tão comumente extraída das palavras de João é absolutamente infundada. (1) Os discípulos estavam reunidos com o propósito de cear. (2) Jesus apareceu no meio deles e censurou a incredulidade deles a respeito de Sua ressurreição. As Escrituras declaram que "para Deus tudo é possível"; porém, tal afirmação é limitada pelo fato de que Deus não pode mentir. (Mateus 19:26; Tito 1:2) A mudança do sábado faz parte das coisas que são possíveis para Deus ou é excluída pela importante limitação de que Ele não pode mentir? O Legislador é o Deus da verdade e Sua lei é a verdade. (Isaías 65:16; Salmos 119:142,151) Se essa lei continuaria a ser verdade caso fosse mudada, e se o Legislador continuaria a ser o Deus da verdade depois de mudá-la, isso é algo que precisa ser analisado. O quarto mandamento, que se afirma ter sido mudado, é expresso nas seguintes palavras: "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. [...] O sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus. [...] Porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou." Se inserirmos "primeiro dia" em lugar de sétimo, testaremos a hipótese: "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. [...] O primeiro dia é o sábado do Senhor, teu Deus. [...] Porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao primeiro dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou." Essa mudança transforma a verdade de Deus em mentira; (Romanos 1:25) pois não é verdade que Deus descansou no primeiro dia da semana, e também não é verdade que Ele o abençoou e santificou. Tampouco é possível mudar o dia de descanso do Criador, do dia em que Ele descansou para um dos seis dias nos quais Ele não descansou.[14] Portanto, mudar uma parte do mandamento, e manter o resto inalterado, não resolve a questão, uma vez que a verdade restante continua a ser suficiente para expor a falsidade do que é inserido. Uma mudança mais radical seria necessária, como a seguinte: "Lembra-te do sábado cristão, para o santificar. O primeiro dia é o sábado do Senhor Jesus Cristo. Pois neste dia Ele ressuscitou dos mortos; por isso, abençoou o primeiro dia da semana e o santificou." Alterando o mandamento dessa maneira, não resta nenhuma parte da instituição sabática original. Além do dia de descanso do Senhor ficar de fora, até mesmo os motivos que fundamentam o quarto mandamento também são necessariamente omitidos. Mas será que existe alguma edição do quarto mandamento semelhante a essa? Certamente, não na Bíblia. É verdade que tais títulos são aplicados ao primeiro dia? Nunca nas Sagradas Escrituras. O Legislador abençoou e santificou esse dia? É certo que não. Ele nem mesmo mencionou o nome desse dia com Seus lábios. A mudança do quarto mandamento, por parte do Deus da verdade, é impossível, pois ela não só afirma aquilo que é falso, negando o que é verdadeiro, mas também transforma a própria verdade de Deus em mentira. Tal mudança nada mais é do que o ato de criar um rival para o sábado do Senhor -- rival este que, sem santidade ou autoridade inerentes, conseguiu engenhosamente absorvê-las do próprio sábado bíblico. Esse é o fundamento do sábado do primeiro dia. Os textos usados para apoiar a instituição, e usados como suas bases, serão analisados em sua própria ordem, no seu devido lugar. Vários deles pertencem propriamente a este capítulo: "Passados oito dias, estavam outra vez ali reunidos os Seus discípulos, e Tomé, com eles. Estando as portas trancadas, veio Jesus, pôs-Se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco!" (João 20:26) Não se afirma que nosso Senhor santificou o primeiro dia da semana nessa ocasião, pois o que é dito é que tal ato data da ressurreição em si, com base na autoridade dos textos já citados. Mas se a santidade do primeiro dia for presumida como seu alicerce, este texto constitui a primeira pedra da estrutura superior, a primeira coluna do templo do primeiro dia. O argumento retirado dessa passagem pode ser expresso assim: Jesus escolheu este dia para Se manifestar aos discípulos e, por meio desse ato, demonstrou Sua forte consideração pelo dia. Mas uma falha considerável desse argumento é que Seu próximo encontro com os discípulos ocorreu durante uma pesca, (João 21) e Sua última e mais importante manifestação, quando ascendeu ao Céu, em uma quinta-feira. (Atos 1:3) Quarenta dias a partir da ressurreição dá em uma quinta-feira) Deve-se admitir, portanto, que o fato de o Salvador Se encontrar com Seus discí- pulos é insuficiente, em si, para demonstrar que qualquer dia seja sagrado; caso contrário, deveria provar a santidade de vários dias de trabalho. Mas a falha mais séria desse argumento se encontra no fato de que esse encontro de Jesus com os discípulos não parece ter acontecido no primeiro dia da semana. Ele ocorreu "oito dias" depois do encontro anterior de Jesus com os discípulos. Esse encontro, visto ter ocorrido bem no final do dia da ressurreição, certamente se estendeu até o segundo dia da semana.[15] "Passados oito dias" desse encontro, caso isso represente apenas uma semana, necessariamente nos transporta ao segundo dia da semana. Mas o Espírito de inspiração usa uma expressão diferente quando tem a intenção de dizer apenas uma semana. "Passados [depois de] sete dias" é a expressão escolhida pelo Espírito Santo ao designar apenas uma semana.[16] "Passados oito dias" pode indicar, com muita naturalidade, o nono ou décimo dia; ("Seis dias depois", em vez de designar o sexto dia, correspondia a cerca de oito dias depois. Mateus 17:1; Marcos 9:2; Lucas 9:28) mas mesmo admitindo que a referência seja ao oitavo dia, os fatos não conseguem provar que a aparição do Salvador tenha ocorrido no primeiro dia da semana. Para resumir o argumento: o primeiro encontro de Jesus com Seus discípulos, ao cair da tarde no fim do primeiro dia da semana, ocorreu, principal ou totalmente, no segundo dia da semana; (Sobre o pôr do sol como marco do fim do dia, ver a conclusão do capítulo 8) o segundo encontro não pode ter ocorrido antes do segundo ou terceiro dia, e o dia parece ter sido escolhido apenas por Tomé estar presente; o terceiro encontro aconteceu enquanto os discípulos pescavam; e o quarto, em uma quinta-feira, quando Cristo subiu ao Céu. O argumento a favor da santidade do primeiro dia extraído desse texto é tão insustentável quanto o fundamento da santidade desse dia, conforme já examinado; e a instituição do sábado do primeiro dia, a menos que seja formada por uma estrutura mais resistente que possa lhe dar sustentação, não passa, no melhor das hipóteses, de um castelo de areia. A próxima passagem que entra no rol de argumentos em prol da santidade do primeiro dia é a seguinte: "Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados." (Atos 2:1,2) Supõe-se que esse texto representa uma importante coluna para o templo do primeiro dia. Afirma-se que os discípulos estavam reunidos, nessa ocasião, para celebrar o sábado do primeiro dia, e o Espírito Santo foi derramado então para honrar esse dia. Contudo, há sérias objeções a essa dedução: 1. Não há evidências de que existia, nessa época, um sábado, ou dia de descanso do primeiro dia; 2. Não existe nenhum indício de que os discípulos se reuniram para celebrá-lo; 3. Nem de que o Espírito Santo foi derramado em honra ao primeiro dia da semana; 4. Desde a ascensão de Jesus até o dia do derramamento do Espírito, os discípulos perseveraram em orações e súplicas; logo, o fato de estarem reunidos nesse dia não era em nada diferente daquilo que vinha acontecendo havia dez dias ou mais; (Lucas 24:49-53; Atos 1) 5. Se o autor sagrado tivesse o propósito de demonstrar que determinado dia da semana estava sendo honrado pelos eventos narrados, ele sem dúvida teria afirmado tal fato e mencionado o dia; 6. Lucas teve tão pouco interesse em citar o dia da semana que esse ponto é até hoje uma questão controversa. Importantes autores[17] que defendem o primeiro dia já chegaram a afirmar que, naquele ano, o Pentecostes caiu no sétimo dia; 7. O evento grandioso que o Espírito Santo pretendia marcar era o antítipo da festa de Pentecostes; o dia da semana no qual isso aconteceria era totalmente irrelevante. Quão equivocados estão aqueles que invertem a ordem e transformam o dia da semana, que o Espírito Santo nem sequer mencionou por nome, mas o qual presumem ter sido o primeiro dia, no alvo da maior importância, mantendo-se em silêncio em relação ao fato que o Espírito Santo tomou o cuidado de ressaltar, a saber, que o evento ocorreu no dia de Pentecostes. É inevitável tais fatos levarem à seguinte conclusão: a coluna que esse texto fornece para o templo do primeiro dia é semelhante ao alicerce desse edifício, ou seja, apenas fruto da imaginação, e é digna de um lugar ao lado da coluna fornecida pelo relato da segunda aparição do Senhor a Seus discípulos. Uma terceira coluna do edifício do primeiro dia é a seguinte: a redenção é maior do que a criação; logo, o dia da ressurreição de Cristo deveria ser observado no lugar do dia de descanso do Criador. Mas tal proposição é vulnerável à objeção fatal de que a Bíblia não menciona nada dessa natureza.[18] Quem sabe, então, se isso é verdade? Quando o Criador deu origem ao nosso mundo, Ele não previu a queda do homem? E, ao prevê-la, não nutriu o propósito de redimir a humanidade? A partir disso, não se conclui que o propósito da redenção foi concebido na criação? Quem, então, é capaz de afirmar que a redenção é maior do que a criação? Mas como as Escrituras não esclarecem esse ponto, presumamos que a redenção seja maior. Quem pode dizer que um dia deveria ser separado para celebrá-la? A Bíblia não diz nada a esse respeito. Mas suponhamos que um dia deva ser separado para esse propósito. Que dia deveria ter a preferência? Alega-se que deveria ser o dia no qual o plano da redenção foi concluído. Mas não é verdade que ele foi concluído. A ressurreição dos santos e a retirada da maldição que foi posta sobre a Terra fazem parte dessa obra. (Lucas 21:28; Romanos 8:23; Efésios 1:13,14; 4:30) Mas suponhamos que a redenção deva ser celebrada, antes de sua conclusão, pela separação de um dia em sua homenagem. Mais uma vez surge a pergunta: qual deve ser esse dia? A Bíblia não tem resposta. Se o dia mais memorável da história da redenção fosse o escolhido, sem dúvida, o dia da crucifixão teria a preferência, pois nele foi pago o preço pela redenção humana. Qual dia é mais memorável: aquele no qual o infinito Legislador entregou Seu amado Filho unigênito para sofrer uma morte cheia de ignomínia, por uma raça de rebeldes que transgrediram Sua lei, ou o dia em que Ele restaurou Esse amado Filho à vida? O segundo evento, embora muito interessante, é a coisa mais natural do mundo. A crucifixão do Filho de Deus, por seres humanos pecadores, pode seguramente ser considerada o evento mais maravilhoso dos anais da eternidade. O dia da crucifixão, portanto, é, sem comparação, o mais memorável. E não há dúvida de que a redenção, em si, foi confirmada na crucifixão, não na ressurreição. Pois está escrito: "No qual temos a redenção, pelo Seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da Sua graça." "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-Se Ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro." "Foste morto e com o Teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação." (Efésios 1:7; Gálatas 3:13; Apocalipse 5:9) Logo, se algum dia deve ser observado em memória da redenção, o dia da crucifixão deveria, inquestionavelmente, ter a preferência. Mas é desnecessário persistir nessa ideia. Se é o dia da crucifixão ou o da ressurreição que deve ter preferência, isso é irrelevante. O Espírito Santo nada disse em favor de nenhum desses dias, mas cuidou para que o evento, em cada caso, tivesse seu memorial apropriado. Você gostaria de comemorar a crucifixão do Redentor? Para isso, não é preciso mudar o sábado para o dia da crucifixão. Seria um pecado presunçoso fazer isso. Veja qual foi o memorial da crucifixão apontado por Deus: "O Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o Meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de Mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no Meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de Mim. Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha." (1 Coríntios 11:23-26) Portanto, é a morte do Redentor, não o dia de Sua morte, que o Espírito Santo considera digna de comemoração. Você também gostaria de comemorar a ressurreição do Redentor? Você não precisa mudar o sábado bíblico para esse propósito. O grande Legislador nunca autorizou tal ato. Mas foi ordenado um memorial apropriado desse acontecimento: "Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na Sua morte? Fomos, pois, sepultados com Ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. Porque, se fomos unidos com Ele na semelhança da Sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da Sua ressurreição." (Romanos 6:3-5; Colossenses 2:12) Ser enterrado na sepultura das águas, assim como nosso Senhor foi sepultado na tumba, e ressuscitar das águas para andar em novidade de vida, assim como nosso Senhor ressuscitou dos mortos para a glória do Pai, é o memorial divinamente autorizado da ressurreição do Senhor Jesus. Também é preciso ressaltar que foi a ressurreição em si, e não o dia da ressurreição, que foi considerada digna de celebração. Os eventos que fundamentam a redenção são a morte, o sepultamento e a ressurreição do Redentor. Cada um deles tem um memorial apropriado; no entanto, nenhuma importância é atribuída aos dias em que cada um desses eventos aconteceu. Foi a morte do Redentor, e não o dia de Sua morte, que se tornou digna de comemoração. Por isso, a santa ceia foi destinada a esse propósito. Foi a ressurreição do Salvador, e não o dia da ressurreição, que se tornou digna de comemoração. Assim, o batismo por imersão foi ordenado como seu memorial. Foi a mudança desse memorial, da imersão para a aspersão, que deu um motivo plausível para a transformação da observância do primeiro dia no memorial da ressurreição. A celebração da obra da redenção, realizada por meio de um descanso, do trabalho, no primeiro dia da semana, após seis dias de labuta, exigiria que nosso Senhor tivesse realizado a obra da redenção humana nos seis dias anteriores à ressurreição, e descansado de Seu trabalho nesse dia, abençoando-o e separando-o por essa razão. No entanto, nenhum desses eventos é verdade. Toda a vida de nosso Senhor foi dedicada a essa obra. Ele descansou temporariamente da mesma no sábado posterior à crucifixão, mas retomou o trabalho na manhã do primeiro dia da semana, e nunca mais a interrompeu nem a interromperá, até seu cumprimento perfeito -- que se dará na ressurreição dos santos e na redenção dos que foram comprados com Seu sangue. Logo, a redenção não fornece nenhuma justificativa para a mudança do sábado. Seus memoriais são mais do que suficientes, e não precisam destruir o memorial do grande Criador. Assim, constatamos que a terceira coluna do templo da santidade do primeiro dia -- assim como as outras partes da estrutura que já foram examinadas -- não passa de fruto da imaginação. O quarto pilar desse templo é extraído de uma antiga profecia que, supostamente, predisse o sábado cristão: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos. Este é o dia que o Senhor fez; regozijemo-nos e alegremo-nos nele." (Salmos 118:22-24) Esse texto é considerado um dos mais fortes testemunhos em favor do sábado cristão, ou seja, do domingo. Todavia, para que isso seja verdade, é necessário ter como pressupostos os próprios pontos que a passagem, supostamente, provaria. Em outras palavras, deve-se adotar as seguintes premissas: (1) o Salvador Se transformou na pedra angular por Sua ressurreição; (2) o dia da ressurreição foi transformado no sábado cristão em comemoração a esse evento (3) e esse dia, assim ordenado, deve ser celebrado pela abstinência do trabalho e pela participação no culto a Deus. A esses pressupostos excepcionais, é apropriado responder: (1) não há prova alguma de que Jesus Se transformou na pedra principal no dia de Sua ressurreição. As Escrituras não definem o dia em que Cristo passou a ter esse status. Sua transformação em pedra angular se refere ao fato de Ele ter Se tornado a pedra principal do templo espiritual composto por Seu povo. Em outras palavras, refere-se ao fato de Ele Se tornar a cabeça do corpo vivo dos santos do Altíssimo. Ao que tudo indica, Ele só assumiu essa posição quando ascendeu aos Céus, tornando-Se a pedra principal e angular na Sião celestial, eleita e preciosa. (Efésios 1:20-23; 2:20,21; 1 Pedro 2:4-7) Assim, não há evidência de que o primeiro dia da semana seja sequer mencionado nesse texto; (2) também não existe a menor evidência de que esse dia, ou qualquer outro, tenha sido separado como o sábado cristão em memória da ressurreição de Cristo; (3) tampouco se pode encontrar um pressuposto mais inusitado do que este, a saber, o de que essa passagem ordena a observância sabática do primeiro dia da semana! Esse trecho da Bíblia faz referência clara ao ato do Salvador de Se tornar o cabeça da igreja do Novo Testamento; em consequência, o mesmo diz respeito ao início da dispensação evangé- lica. O dia no qual o povo de Deus se regozija, levando em conta essa relação com o Redentor, não pode ser compreendido como um único dia da semana -- pois a ordem é que os crentes se regozijem "sempre" -- , (1 Tessalonicenses 5:16) e, sim, como todo o período da dispensação evangélica. Nosso Senhor usou a palavra "dia" com o mesmo propósito ao dizer: "Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o Meu dia, viu-o e regozijou-se." (João 8:56) Defender a existência do que é chamado de sábado cristão com base no argumento de que esse texto prediz tal instituição, nada mais é do que fornecer um quarto pilar, tão sólido quanto os testados anteriormente, para o templo do primeiro dia. A profecia das setenta semanas de Daniel se estende por três anos e meio após a morte do Redentor, chegando até o começo da grande obra para os gentios. Este período de sete anos que analisamos é o mais significativo na história do sábado. Ele engloba toda a história do Senhor do sábado e de Sua ligação com essa instituição: Seus milagres e ensinos, que levam alguns a afirmar que Ele enfraqueceu a autoridade do sábado do sétimo dia; Sua morte, evento que faz outros afirmarem que Ele o anulou; e Sua ressurreição, que leva um número ainda maior de pessoas a declarar que Ele mudou esse dia para o primeiro dia da semana. No entanto, citamos evidências abundantes de que todas essas posições são falsas, e de que o início da grande obra aos gentios foi testemunha da existência do sábado do quarto mandamento, em nenhum sentido enfraquecido, anulado ou mudado. Notas: 1. Ver o Testamento grego do Dr. Bloomfield e o Testamento da família da American Tract Society sobre este texto; consultar o Biblical Antiquities de Nevin, p. 62, 63. 2. Grotius diz muito bem: "Ao curar as pessoas no sábado, Cristo fez transparecer, não só com base na lei, mas também nas opiniões recebidas por eles, que tais obras não eram proibidas no sábado" (The Truth of the Christian Religion, livro 5, seção 7). 3. Jewish Wars, livro 2, cap. 19. 4. Ibid., livro 2, cap. 20. 5. Ecclesiastical History, livro 3, cap. 5 6. Jewish Wars, livro 2, cap. 19. 7. Assim observa o Sr. Crozier no Advent Harbinger, 6 de dezembro de 1851: "A referência ao sábado em Mateus 24:20 só mostra que os judeus, que haviam rejeitado a Cristo, estariam guardando o sábado na época da destruição de Jerusalém e, em consequência, aumentariam os perigos da fuga dos discípulos ao, talvez, puni-los com a morte por escaparem naquele dia". E o Sr. Marsh, esquecendo-se de que Cristo proibiu os discípulos de pegar qualquer coisa antes da fuga, disse as seguintes palavras: "Se os discípulos tentassem fugir de Jerusalém nesse dia carregando suas coisas, os judeus impediriam sua fuga e talvez os sentenciariam à morte. Os judeus estariam guardando o sábado porque rejeitaram a Cristo e Seu evangelho" (Advent Harbinger, 24 de janeiro de 1852). Tais citações revelam a amargura de seus autores. Em notória divergência desses antissabatistas, a citação a seguir vem da pena do Sr. Guilherme Miller, ele próprio um guardador do primeiro dia da semana: "'Nem no sábado'. Porque deveria ser guardado como dia de descanso, e nenhum trabalho comum deveria ser feito naquele dia, nem seria correto que eles viajassem naquele dia. Cristo, aqui, sancionou o dia de descanso e nos mostrou claramente que é nosso dever não deixar nenhuma circunstância trivial nos levar a transgredir a lei sabática. Ainda assim, quantos dos que professam crer em Cristo, no presente, fazem questão de visitar, viajar e festejar nesse dia? Que falsa profissão de fé deve ter feito aquele que consegue tratar com tal desprezo a lei moral de Deus, e que despreza os preceitos do Senhor Jesus! Neste texto, podemos descobrir nossa obrigação de nos lembrar do dia de sábado para o santificar" (Exposition of Matt. 24, p. 18). Nota dos editores desta edição em língua portuguesa: O ponto aqui é quanto à vigência do sábado, isto é, quanto ao sábado ser ou não ser vigente na atualidade. Nas duas primeiras citações, os autores tentam fazer parecer que quem estaria guardando o sábado seriam os judeus, e não os cristãos, ao passo que Miller mostra que o sábado ainda é vigente para os próprios cristãos. Tendo essa citação de Miller estabelecido a questão da vigência do sábado, devemos então considerar outro ponto: Miller aparentemente está defendendo o dia de sábado, apesar de ter sido um guardador do domingo. Para esclarecer essa aparente incoerência, deve- -se observar o seguinte: a palavra em inglês usada por Miller é Sabbath, que corresponde ao termo bíblico hebraico que significa "descanso" -- traduzido como "sábado" para o português --, e encontrado no quarto mandamento e no decorrer de todas as Escrituras. Na cultura anglo-americana, o termo pode se referir tanto ao sábado do sétimo dia [Saturday] quanto ao domingo [Sunday], o primeiro dia da semana, dependendo da convicção religiosa e teológica de cada um. Em outras palavras, o termo Sabbath [sábado], mencionado no quarto mandamento, é muitas vezes usado para se referir ao domingo, o primeiro dia da semana, sendo considerado o "sábado" cristão. Por causa desse uso indevido da palavra "sábado" em referência ao domingo, e pelo fato de os nomes de origem pagã para os dias da semana em inglês (Sunday, Monday, etc.) não apresentarem uma sequência numérica dos dias da semana, como ocorre na língua portuguesa (segunda-feira, terça-feira, etc.), muitos norte-americanos erroneamente acreditam que o domingo, de fato, corresponde ao "sétimo dia" ou "sábado". Ver o testemunho de Oprah Winfrey em: https://www.youtube.com/watch?v=_onuImgW8JE. Andrews discutirá esse assunto em capítulos posteriores. 8. Jewish Wars, livro 2, cap. 19. 9. Ibid., livro 2, cap. 19. 10. Ver cap. 16. 11. O presidente Edward diz: "Mais um argumento a favor da perpetuidade do sábado se encontra em Mateus 24:20: 'Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado'. Cristo Se refere aqui à fuga dos apóstolos e de outros cristãos que partiriam de Jerusalém e da Judeia, logo antes de sua destruição final, conforme se manifesta no contexto todo, mas sobretudo no versículo 16: 'os que estiverem na Judeia fujam para os montes'. Mas a destruição final de Jerusalém ocorreu após a dissolução da constituição judaica e depois do pleno estabelecimento da dispensação cristã. Contudo, as palavras do Senhor deixam claro que, mesmo então, os cristãos estariam sujeitos à estrita observância do sábado" (Works of President Edwards, vol. 4, p. 621, 622, New York, 1849). 12. Para uma análise mais detida dessas festas judaicas, ver capítulo 7. 13. Deuteronômio 10:4, 5 comparado com 31:24--26. Morer faz um contraste entre a expressão "na arca", usada em referência às duas tábuas, e os termos "ao lado da arca", usados a respeito do livro da lei, e diz o seguinte acerca do segundo: "Ao lado da arca, ou, mais criticamente, do lado de fora da arca; ou dentro de um baú separado do lado direito da arca, diz o Targum de Jônatas" (Morer's Dialogue on the Lord's Day, p. 211, London, 1701). 14. Seria tão fácil mudar o momento da crucifixão do dia da semana em que Cristo foi crucificado para um dos seis dias, nos quais Ele não o foi, quanto mudar o descanso do Criador, do dia em que Ele descansou para um dos seis dias nos quais Ele realizou a obra de criação. 15. Quando o dia da ressurreição "já declin[ava]" (cf. Lucas 24:29), o Salvador e dois dos discípulos se aproximaram de Emaús, uma vila a doze quilômetros de Jerusalém. Ambos insistiram para que Ele entrasse com eles e passasse a noite. Enquanto ceavam, descobriram que era Jesus, e Este desapareceu do meio deles. Então se levantaram e voltaram para Jerusalém. Após a chegada deles, ocorreu o primeiro encontro de Jesus com os onze. Portanto, o pôr do sol, que encerrava o dia, já tinha praticamente ocorrido, ou de fato ocorrido -- dando início, assim, ao segundo dia -- quando Jesus apareceu no meio deles (Lucas 24). Se Jesus, de fato, chegou no finalzinho do primeiro dia e início do segundo, a expressão "Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana" ( João 20:19) teria como paralelo exato em significado a expressão "aos nove do mês, de uma tarde a outra tarde", que, na verdade, significa o pôr do sol [do nono dia] que dava início ao décimo dia do sétimo mês, em que ocorria o Dia da Expiação (Levítico 23:32). 16. Afirma-se que aqueles que se apresentavam diante de Deus, de sábado a sábado, para ministrar no templo, "deveriam comparecer após sete dias" (1 Crônicas 9:25; 2 Reis 11:5, KJV). 17. Horatio B. Hacket, doutor em divindade, professor de literatura bíblica na Newton Theological Institution fez o seguinte comentário: "Supõe-se, de modo geral, que este Pentecostes, marcado pelo derramamento do Espírito Santo, caiu no sábado judaico, nosso sábado [no inglês, 'Saturday']" (Commentary of the Original Text of the Acts, p. 50, 51). 18. Em 1633, William Prynne, prisioneiro na torre de Londres, elaborou uma obra em defesa da observância do primeiro dia, chamada Dissertation on the Lord's Day Sabbath. Ele reconhece a inutilidade do argumento em questão: "Nenhum texto bíblico [...] prefere ou coloca a obra da redenção [...] antes da obra da criação. As duas obras foram muito grandes e gloriosas em si mesmas; logo, não posso acreditar que a obra da redenção, ou apenas a ressurreição de Cristo, seja mais excelente e gloriosa do que a obra da criação, sem que textos e base bíblica suficientes provem isso. Devo, sim, rejeitar esse argumento, considerando-o sofisticada presunção indigna de confiança, bem como declaração definitivamente destituída de provas, até que o mesmo seja satisfatoriamente comprovado" (p. 59). Esse é o julgamento de um sincero defensor do primeiro dia como uma festa cristã. Sua opinião será ouvida novamente a respeito de Atos 20:7. Capítulo 11 O Sábado Durante o Ministério dos Apóstolos Delineamos a história do sábado ao longo de seu período de conexão especial com a família de Abraão. O término das setenta semanas nos leva ao chamado dos gentios e a sua inclusão nos privilégios concedidos aos hebreus. Vimos que não houve injustiça da parte de Deus ao derramar bênçãos especiais sobre os hebreus, deixando os gentios seguirem os caminhos que escolheram. (Ver o capítulo 3) Por duas vezes Ele dera à família humana, como um todo, a graça mais abrangente possível naquela era, e, nas duas ocasiões, isso resultou na apostasia quase total da raça humana. Então Deus escolheu como Sua herança a família de Abraão, Seu amigo; e, por intermédio dessa família, preservou na Terra o conhecimento de Sua lei, de Seu sábado e de Si próprio, até a vinda do grande Messias. Ao longo de Seu ministério, o Messias solenemente confirmou a perpetuidade da lei de Seu Pai, prescrevendo a obediência até mesmo ao menor de seus mandamentos. (Mateus 5:17-19) Por ocasião de Sua morte, Ele derrubou a parede de separação, (Efésios 2:13-16; Colossenses 2:14-17) a qual havia preservado os hebreus por tanto tempo como povo separado na Terra; e quando estava prestes a subir ao Céu, ordenou a Seus discípulos que fossem a todo mundo, pregar o evangelho a toda criatura, ensinando-as a guardar todas as coisas que Ele lhes havia ordenado. (Mateus 28:19,20; Marcos 16:15) Com o fim da septuagésima semana, os apóstolos deram início ao cumprimento dessa grande comissão aos gentios. (Daniel 9:24-27; Atos 9:10,11; 26:12-17; Romanos 11:13) Vale ressaltar, aqui, vários fatos de profundo interesse: 1. A nova aliança, ou testamento, tem início a partir da morte do Redentor. De acordo com a predição de Jeremias, ela começou com os hebreus e permaneceu restrita exclusivamente a eles até o fim da septuagésima semana. A partir de então, os gentios foram incluídos na plena participa- ção, com os hebreus, em suas bênçãos, deixando de ser estrangeiros, tornando-se concidadãos dos santos. (1 Coríntios 11:25; Jeremias 31:31-34; Hebreus 8:8,12; Daniel 9:27; Efésios 2:11-22) Deus fez uma aliança com Seu povo, dessa vez, de forma individual, não nacional. As promessas dessa aliança englobam dois pontos muito interessantes: (1) Deus coloca Sua lei no cora- ção do povo; (2) Ele lhes perdoa os pecados. Como essas promessas foram feitas 600 anos antes do nascimento de Cristo, não há dúvida sobre qual lei divina Jeremias estava mencionando. Era a lei divina existente naquela época que seria colocada no coração de cada santo da nova aliança. Logo, a nova aliança se baseia na perpetuidade da lei divina. Ela não anula essa lei, mas elimina do coração o pecado -- a transgressão da lei -- e coloca a lei de Deus em seu lugar. (Mateus 5:17-19; 1 João 3:4,5; Romanos 4:15) A perpetuidade de cada preceito da lei moral se encontra, portanto, no próprio fundamento da nova aliança. 2. A primeira aliança tinha um santuário e, dentro do santuário, a arca com a lei de Deus composta de dez mandamentos, (Hebreus 9:1-7; Êxodo 25:1-21; Deuteronômio 10:4,5; 1 Reis 8:9) além de um sacerdócio para ministrar diante da arca, para fazer expiação pelos pecados da humanidade. (Hebreus 7 a 10; Levítico 16) E o mesmo se pode dizer com relação à nova aliança. Em lugar de um tabernáculo construído por Moisés conforme o modelo do verdadeiro, a nova aliança conta com o maior e mais perfeito tabernáculo, erigido pelo Senhor, não pelo homem: o templo de Deus no Céu. (Hebreus 8:1-5; 9:23,24) O grande centro do santuário terreno era a arca contendo a lei que o ser humano havia transgredido, e o mesmo ocorre no santuário celestial. "E abriu-se no céu o templo de Deus, e a arca do Seu concerto [aliança] foi vista no Seu templo; e houve relâmpagos, e vozes, e trovões, e terremotos e grande saraiva" (ARC). (Apocalipse 11:19) Nosso Senhor Jesus Cristo, o grande Sumo Sacerdote, apresenta o próprio sangue perante a arca da aliança de Deus no templo celestial. A respeito desse objeto perante o qual Ele ministra, devem ser destacados os seguintes pontos: 1. A arca do templo celestial não está vazia; ela contém a aliança de Deus. Portanto, é o grande centro do santuário do alto, assim como a arca da aliança de Deus era o centro do santuário terreno. (Êxodo 25:21, 22) 2. A morte, do Redentor, pelos pecados da humanidade e Sua obra como Sumo Sacerdote perante a arca no Céu, têm ligação direta com o fato de que, dentro da arca, encontra-se a lei que a raça humana transgrediu. 3. Uma vez que a expiação e o sacerdócio de Cristo estão ligados à lei que está dentro da arca perante a qual Ele ministra, conclui-se que essa lei tanto existe quanto foi transgredida antes que o Salvador descesse para morrer pela humanidade. 4. Portanto, a lei que se encontra dentro da arca celestial não é uma lei originada no Novo Testamento, pois ela necessariamente existia muito antes disso. 5. Se Deus, portanto, revelou essa lei à humanidade, tal revelação deve ser procurada no Antigo Testamento. Pois, embora o Novo Testamento faça várias referências à lei que levou o Salvador a entregar a própria vida por seres humanos pecadores, e até contenha citações dela, Ele não publica uma segunda edição da mesma. Em vez disso, nos remonta ao Antigo Testamento, onde se encontra o código original. (Romanos 3:19-31; 5:8-21; 8:3,4; 13:8-10; Gálatas 3:13,14; Efésios 6:2,3; Tiago 2:8-12; 1 João 3:4,5) 6. Conclui-se, então, que essa lei foi revelada, e que essa revelação deve ser encontrada no Antigo Testamento. 7. Nele podemos ver (1) a descida do Santo ao monte Sinai, (2) a proclamação de Sua lei na forma de dez mandamentos, (3) os dez mandamentos escritos pelo dedo de Deus em duas tábuas de pedra, e (4) essas tábuas sendo colocadas embaixo do propiciatório, dentro da arca do santuário terrestre. (Êxodo 19; 20; 24:12; 31:18; Deuteronômio 10) 8. Pode-se demonstrar, da seguinte forma, que a notável lei do Antigo Testamento, guardada dentro da arca do santuário terreno, era a mesma da arca celestial: 1) O propiciatório colocado sobre os dez mandamentos era o local de onde se esperava o perdão, o grande ponto central da obra de expiação; (Levítico 16) 2) A lei sob o propiciatório era que tornava necessária a obra de expiação; 3) Não havia nenhuma expiação que pudesse remover os pecados; tratava-se apenas de uma expiação típica, uma sombra; 4) Mas havia pecados reais; logo, uma lei real que as pessoas haviam quebrado; 5) Portanto, faz-se necessária uma expiação real, capaz de remover os pecados; essa expiação verdadeira deveria estar ligada à lei que fora transgredida, e uma expiação típica a havia prefigurado; (Romanos 3:19-31; 1 João 3:4,5) 6) Os dez mandamentos são, dessa forma, apresentados no Antigo Testamento como a lei que exigia expiação, embora o povo fosse sempre lembrado de que os sacrifícios ali apresentados não tinham condições de eliminar o pecado; (Salmos 40:6-8; Hebreus 10) 7) A morte de Jesus foi o antítipo desses sacrifícios, destinado a cumprir justamente aquilo que eles prefiguravam, mas não podiam realizar, a saber, a expiação pela transgressão da lei que se encontrava na arca, debaixo do propiciatório. (Hebreus 9-10) Chegamos, portanto, à conclusão de que a lei de Deus, contida dentro da arca celestial, é a mesma lei que ficava dentro da arca terrestre; e ambas são idênticas à lei que a nova aliança coloca dentro do coração de cada crente. (Jeremias 31:33; Romanos 8:3,4; 2 Coríntios 3:3) O Antigo Testamento, então, nos apresenta a lei de Deus e a declara perfeita; ele também fornece uma expiação típica, mas afirma que ela é inadequada para remover os pecados. (Salmos 19:7; Tiago 1:25; Salmos 40) Por conseguinte, o que se fazia necessário não era uma nova versão da lei de Deus -- pois a que já havia sido dada era perfeita --, mas, sim, uma expiação real para remover a culpa dos transgressores. O Novo Testamento responde de maneira precisa a essa necessidade, provendo uma expiação verdadeira mediante a morte e a intercessão do Redentor, sem apresentar, contudo, qualquer versão atualizada da lei de Deus, (Romanos 5) mas, sim, conduzindo-nos ao código perfeito entregue muito tempo atrás. Embora o Novo Testamento não apresente uma nova edição da lei de Deus, ele efetivamente mostra que a dispensação cristã conta com o grande original dessa lei no santuário celestial. 9. Vimos que a nova aliança coloca a lei de Deus dentro do coração de cada crente, e que o original dessa lei foi preservado no templo celestial. O fato de que toda a humanidade está sujeita à lei de Deus, e de que sempre esteve, é claramente revelado na epístola de Paulo aos Romanos. No primeiro capítulo, ele remonta a origem da idolatria à apostasia obstinada dos gentios, que ocorreu logo depois do dilúvio. No segundo capítulo, ele mostra que, embora Deus os tenha entregado aos próprios caminhos e, em consequência, lhes tenha deixado sem lei escrita, Ele não os abandonou em escuridão completa; pois eles tinham, por natureza, a obra da lei escrita no coração deles e, por mais turva que fosse a luz que tinham disponível, garantiriam a própria salvação ao viverem segundo essa luz, ou incorreriam em ruína se pecassem contra ela. No terceiro capítulo, o apóstolo mostra a vantagem da família de Abraão, por ter sido escolhida como herdeira de Deus, enquanto todas as outras nações foram entregues aos próprios caminhos. A vantagem era que os oráculos de Deus, a lei escrita, lhes foram concedidos como acréscimo à obra da lei escrita no coração, a qual tinham, por natureza, em comum com os gentios. Ele mostra, então, que os judeus não eram em nada melhores do que os gentios, uma vez que ambas as classes eram transgressoras da lei. Paulo prova esse fato por meio de citações do Antigo Testamento. Ele então comprova que a jurisdição da lei de Deus abarca toda a humanidade: "Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus." (Romanos 3:19) Ele mostra, então, que a lei não pode salvar o culpado, mas, sim, condená-lo, e o faz com justiça. Em seguida, Paulo revela o grande fato de que a redenção, pela morte de Jesus, é o único meio pelo qual Deus pode justificar aqueles que buscam o perdão e, ao mesmo tempo, Ele pró- prio permanecer justo. Por fim, Paulo exclama: "Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei." (Romanos 3:31) Deduzem-se, portanto, os seguintes pontos: (1) a lei de Deus não foi abolida; (2) a sentença de condenação que ela pronuncia sobre os culpados é tão abrangente quanto a oferta de perdão por meio do evangelho; (3) a obra dessa lei existe, por natureza, no coração dos seres humanos, fato este que nos leva à conclusão de que o homem, em seu estado original de justiça, a possuía em perfeição. Tal conclusão é ainda confirmada com o fato de que a nova aliança, depois de libertar o ser humano da condenação da lei de Deus, introduz essa lei em seu coração de maneira perfeita. O resumo de tudo isso é que a lei de Deus é o grande padrão para mostrar o pecado (Romanos 3:20; 1 João 3:4,5; 2:1,2) e, consequentemente, a norma que deve governar a vida de toda a raça humana, tanto de judeus quanto de gentios. A ilustração da boa oliveira demonstra que a igreja, na dispensação presente, é, na verdade, uma continuação da antiga igreja hebraica. A igreja antiga era a oliveira de Deus, e tal árvore nunca foi destruída. (Jeremias 11:16; Romanos 11:17-24) Por causa da incredulidade, alguns de seus ramos foram quebrados; mas a proclamação do evangelho aos gentios não cria uma nova oliveira; ela simplesmente permite que os crentes gentios sejam enxertados na boa oliveira e tenham um lugar entre os ramos originais, e, com estes, participem de sua raiz e seiva. Essa oliveira deve datar do chamado de Abraão após a apostasia dos gentios, cujo tronco representa os patriarcas, começando com o pai de todos os que são da fé, (Romanos 4:16-18; Gálatas 3:7-9) e cujos ramos representam o povo hebreu. O enxerto da oliveira brava no lugar dos ramos que foram quebrados representa o acesso dos gentios, após o fim das setenta semanas, aos mesmos privilégios de que os hebreus gozavam. A igreja do Antigo Testamento, a oliveira original, era um reino de sacerdotes e uma nação santa; a igreja do Novo Testamento, a oliveira após o enxerto dos gentios, é caracterizada pelos mesmos termos. (Êxodo 19:5,6; 1 Pedro 2:9,10) Quando Deus entregou os gentios à própria apostasia antes do chamado de Abraão, Ele confundiu a língua deles para que não se entendessem e, assim, se espalhassem pela face da Terra. Revertendo essa barreira linguística, encontramos o dom de línguas no dia de Pentecostes, preparatório para o chamado dos gentios e seu enxerto na boa oliveira. (Gênesis 11:1-9; Atos 2:1-11) Acompanhamos a história do sábado até o chamado dos gentios e os eventos iniciais da dispensação evangélica. Constatamos que a lei de Deus, da qual o sábado faz parte, foi a mesma que tornou necessária a morte do Senhor como sacrifício expiatório. Vimos também que o grande original dessa lei se encontra na arca celestial, perante a qual nosso Senhor ministra como Sumo Sacerdote, ao passo que uma cópia dessa lei é escrita, pela nova aliança, dentro do coração de cada cristão. Vê-se, portanto, que a lei divina está mais conectada ao povo de Deus depois da morte do Redentor do que antes desse evento. Não há sombra de dúvida de que a igreja apostólica considerava o sábado um dia sagrado, bem como todos os outros preceitos da lei moral. Esse fato é comprovado não somente porque os primeiros cristãos não eram acusados por seus inimigos mais inveterados de transgredir a lei, ou porque criam que o pecado era a transgressão da lei, ou porque aceitavam essa lei como o grande padrão que revela o pecado e por meio do qual o pecado se torna verdadeiramente mau. (Romanos 7:12,13) Tais pontos certamente são evidências muito conclusivas de que a igreja apostólica guardava o quarto mandamento. O testemunho de Tiago acerca dos dez mandamentos, segundo o qual aquele que viola um deles se torna culpado de todos, também é uma forte evidência de que a igreja primitiva considerava sagrada toda a lei de Deus. (Tiago 2:8-12) Contudo, além desses fatos, temos uma garantia muito específica de que o sábado do Senhor não foi esquecido pela igreja apostólica. A oração que nosso Senhor ensinou a Seus discípulos -- de que a fuga da Judeia não caísse no sábado -- tinha o objetivo, conforme vimos, de gravar profundamente na mente deles a santidade desse dia, e certamente alcançou esse resultado. (Ver o capítulo 10) Na história da igreja primitiva, encontramos várias referências importantes ao sábado. A primeira é a seguinte: "Mas eles, atravessando de Perge para a Antioquia da Pisídia, indo num sábado à sinagoga, assentaram-se." (Atos 13:14) Convidado pelos líderes da sinagoga, Paulo fez um longo pronunciamento, provando que Jesus era o Cristo. No decorrer de sua argumentação, ele usou a seguinte linguagem: "Pois os que habitavam em Jerusalém e as suas autoridades, não conhecendo Jesus nem os ensinos dos profetas que se leem todos os sábados, quando o condenaram, cumpriram as profecias." (Versículo 27) Na conclusão do discurso de Paulo, lemos: E, saídos os judeus da sinagoga, os gentios rogaram que no sábado seguinte[1] lhes fossem ditas as mesmas coisas. E, despedida a sinagoga, muitos dos judeus e dos prosélitos religiosos seguiram Paulo e Barnabé, os quais, falando-lhes, os exortavam a que permanecessem na graça de Deus. E, no sábado seguinte, ajuntou-se quase toda a cidade a ouvir a palavra de Deus." (Atos 13:42-44) Esses textos mostram o seguinte: 1. O termo "sábado" no livro de Atos se refere ao dia no qual o povo judeu se reunia na sinagoga para ouvir a voz dos profetas; 2. Como esse discurso foi proferido 14 anos depois da ressurreição de Cristo e o relato de Lucas foi escrito cerca de 30 anos após esse evento, conclui-se que a suposta mudança do sábado, por ocasião da ressurreição de Cristo, não havia chegado ao conhecimento de Lucas, nem de Paulo, mesmo depois de muitos anos; 3. Essa seria uma oportunidade excelente para mencionar a mudança do sábado para o domingo, caso fosse verdade que isso havia ocorrido em honra à ressurreição de Cristo. Quando Paulo recebeu o convite para pregar as mesmas palavras no sábado seguinte, ele poderia ter respondido que o dia seguinte [o domingo] era agora o dia apropriado para adorar a Deus. E Lucas, ao fazer o registro desse incidente, não poderia deixar de lado a menção ao novo dia, caso fosse verdade que outro dia havia se tornado o sábado do Senhor; 4. Uma vez que essa segunda reunião dizia respeito quase que exclusivamente aos gentios, não se pode dizer, neste caso, que Paulo pregou no dia de sábado por consideração aos judeus. Pelo contrário, a narrativa revela fortemente a consideração de Paulo pelo sábado como dia apropriado para o culto divino; 5. Também não se pode negar que o sábado era bem aceito pelos gentios nessa cidade, e que eles tinham certo grau de estima pelo dia, fato apoiado por outros textos. Muitos anos depois, os apóstolos se reuniram em Jerusalém para ponderar a questão da circuncisão. (Atos 15) "Alguns indivíduos que desceram da Judeia", ao encontrar os gentios incircuncisos, "ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos". Caso houvessem encontrado os gentios negligenciando o sábado, essa teria sido, sem dúvida, a primeira repreensão. É verdadeiramente digno de nota que não havia, naquela época, nenhuma disputa na igreja acerca da observância do sábado, pois nada do tipo foi levado a esse concílio dos apóstolos. Caso fosse verdade que a mudança do sábado era defendida na época, ou que Paulo ensinava os gentios a negligenciar o sábado, sem dúvida aqueles que levantaram a questão da circuncisão teriam insistido, com zelo ainda maior, na questão do sábado. Vários fatos conclusivos evidenciam que a lei de Moisés, cuja observância foi discutida nesse concílio, não se refere aos dez mandamentos: 1. Pedro chama o código em análise de jugo que nem os pais, nem eles próprios conseguiam suportar. Tiago, porém, chama a lei régia, que, segundo ele próprio mostra, engloba os dez mandamentos, de lei da liberdade; 2. A posição desse concílio foi contrária à autoridade da lei de Moisés; contudo, Tiago, participante do evento, ratificou solenemente alguns anos depois, a obediência aos mandamentos, afirmando que quem violava um deles era culpado de todos; (Atos 15:10,28,29; Tiago 2:8-12) 3. O principal aspecto da lei de Moisés em debate aqui era a circuncisão. (Atos 15:1,5) Mas a circuncisão não fazia parte dos dez mandamentos; e caso fosse verdade que a lei de Moisés incluía esses mandamentos, a circuncisão não seria um aspecto proeminente dessa lei; 4. Finalmente, os preceitos que o concílio declarou que ainda eram obrigatórios também não pertenciam aos dez mandamentos propriamente ditos. Eram os seguintes: primeiro, a proibição de comer carnes sacrificadas a ídolos; segundo, de comer sangue; terceiro, de ingerir animais sufocados; e quarto, a abstenção da fornicação, ou relações sexuais ilícitas. (Atos 15:29; 21:25) Todos esses preceitos podem ser encontrados com frequência nos livros de Moisés. (Êxodo 34:15,16; Números 25:2; Levítico 17:13,14; Gênesis 9:4; Levítico 3:17; Gênesis 34; Levítico 19:29) O primeiro e o último se enquadram no segundo e no sétimo mandamento, respectivamente. Mas cada um deles só abrange parte daquilo que é proibido nesses mandamentos. Fica claro, portanto, que a autoridade dos dez mandamentos não estava em discussão nesse concílio, e que a decisão da assembleia não teve nenhuma relação com esses preceitos. Caso contrário, os apóstolos teriam liberado os gentios de toda obrigação relacionada a oito dos dez mandamentos, e das proibições maiores contidas nos outros dois. O grande erro daqueles que defendem que os gentios foram liberados da guarda do sábado nessa assembleia é evidente. A questão não foi apresentada aos apóstolos nessa ocasião, o que representa um prova forte de que os gentios não haviam sido ensinados a negligenciar o sábado, apenas a abandonar a circuncisão -- motivo este que fez com que fossem levados perante os apóstolos em Jerusalém. O sábado, porém, foi mencionado nesse mesmo concílio como uma instituição existente -- uma menção feita, a propósito, em conexão com os cristãos gentios. Assim, quando Tiago pronunciou a decisão acerca do questionamento, usou as seguintes palavras: "Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue. Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados." (Atos 15:19-21) O último fato é apresentado, por Tiago, como justificativa para o rumo de ações proposto para os irmãos gentios. "Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados." Essa declaração deixa claro que o antigo costume de adorar a Deus no sábado não foi somente preservado pelo povo judeu e levado por eles a todas as cidades dos gentios, mas também que os cristãos gentios de fato frequentavam tais reuniões. Caso contrário, o motivo expresso por Tiago perderia toda a força e não se aplicaria a esse caso. A frequência deles à sinagoga é uma grande evidência de que o sábado era o dia de adoração a Deus nas igrejas gentílicas. O fato de que o sábado do Senhor não havia sido anulado nem mudado antes dessa reunião dos apóstolos é fortemente comprovado pela natureza da disputa que foi resolvida no concílio. O fim da assembleia contemplou a permanência do sábado bíblico no trono sagrado da fortaleza do quarto mandamento. Depois disso, em uma visão noturna, Paulo foi chamado a visitar a Macedô- nia. Obedecendo ao chamado, dirigiu-se a Filipos, principal cidade daquela parte da Macedônia. Lucas registra a visita da seguinte forma: "Nesta cidade, permanecemos alguns dias. No sábado, saímos da cidade para junto do rio, onde nos pareceu haver um lugar de oração; e, assentando-nos, falamos às mulheres que para ali tinham concorrido. Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia." (Atos 16:12-14) Não parece se tratar de uma reunião de judeus, mas, sim, de gentios, que, assim como Cornélio, adoravam o Deus verdadeiro. Vê-se, portanto, que a igreja dos filipenses surgiu de uma assembleia piedosa de gentios guardadores do sábado. É provável que Lídia e seus funcionários, que evidentemente guardavam o sábado, tenham sido os instrumentos usados para introduzir o evangelho em sua cidade, Tiatira. "Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu costume,[2] foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras, expondo e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e Este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. Alguns deles foram persuadidos e unidos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas distintas mulheres." (Atos 17:1-4) Essa foi a origem da igreja de Tessalônica. Não há dúvida de que, em seus primórdios, era uma assembleia de guardadores do sábado, pois, além dos poucos judeus que aceitaram o evangelho pelos esforços de Paulo, havia uma grande multidão de gregos devotos -- isto é, de gentios que se haviam unido aos judeus em adoração a Deus, no sábado. Temos fortes provas de que eles continuaram a guardar o sábado depois de aceitarem o evangelho, com base nas seguintes palavras de Paulo, dirigidas a eles como igreja de Cristo: "Tanto é assim, irmãos, que vos tornastes imitadores das igrejas de Deus existentes na Judeia em Cristo Jesus." (1 Tessalonicenses 2:14) As igrejas da Judeia, conforme vimos, guardavam o sábado do Senhor. Os primeiros conversos tessalonicenses, antes de aceitarem o evangelho, guardavam o sábado e, quando se tornaram cristãos, adotaram as igrejas da Judeia como exemplos corretos. E essa igreja foi adotada como exemplo das igrejas da Macedônia e Acaia. Entre elas, encontravam-se as igrejas de Filipos e Corinto. Assim escreve Paulo: "Com efeito, vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, tendo recebido a palavra, posto que em meio de muita tribulação, com alegria do Espírito Santo, de sorte que vos tornastes o modelo para todos os crentes na Macedônia e na Acaia. Porque de vós repercutiu a palavra do Senhor não só na Macedônia e Acaia, mas também por toda parte se divulgou a vossa fé para com Deus, a tal ponto de não termos necessidade de acrescentar coisa alguma." (1 Tessalonicenses 1:6-8) Depois dessas coisas, Paulo foi para Corinto. Ali, encontrou Áquila e Priscila pela primeira vez. "E, posto que eram do mesmo ofício, passou a morar com eles e ali trabalhava, pois a profissão deles era fazer tendas. E todos os sábados discorria na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos." (Atos 18:3,4) Nesse local também, Paulo encontrou, tanto gentios quanto judeus, adorando a Deus no sábado. Os primeiros membros da igreja de Corinto eram, portanto, guardadores do sábado na época em que aceitaram o evangelho; e, conforme vimos, eles adotaram o costume de guardar o sábado da igreja de Tessalônica, que, por sua vez, seguia a prática das igrejas da Judeia. As primeiras igrejas foram fundadas na Judeia. Todos os seus membros estavam familiarizados, desde a infância, com a lei de Deus, e compreendiam bem o preceito "Lembra-te do dia de sábado, para o santificar". Além desse preceito, todas essas igrejas tinham um lembrete especial sobre o sábado. Elas sabiam, das palavras do próprio Senhor, que estava chegando o momento em que precisariam fugir repentinamente daquela terra. Em vista desse fato, deveriam orar para que o momento da fuga súbita não caísse no sábado. Tal oração tinha o propósito, conforme já vimos, de preservar a santidade do sábado. Portanto, não há dúvida alguma de que as igrejas da Judeia eram compostas por membros que guardavam o sábado. Dentre as igrejas fundadas fora da Judeia, cuja origem está registrada no livro de Atos, quase todas começaram com conversos judeus. Eles eram guardadores do sábado quando aceitaram o evangelho. Os conversos gentios foram enxertados no meio deles. É importante notar que, em um número expressivo de casos, esses gentios são chamados de "gregos piedosos", "prosélitos", pessoas que "adoravam a Deus", "tementes a Deus" e que "oravam a Deus". (Atos 10:2,4,7,30-35; 13:43; 14:1; 16:13-15; 17:4, 10-12) Conforme vimos, na época de sua conversão ao evangelho, esses gentios adoravam a Deus no sábado, junto com os judeus. Quando Tiago propôs o tipo de carta que deveria ser dirigida, pelos apóstolos, aos gentios convertidos, ele especificou o motivo para que a mesma fosse adotada -- motivo cuja força pode agora ser melhor apreciada: "Porque Moisés" -- disse ele -- "tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados". A natureza sabatista das igrejas apostólicas é, assim, claramente confirmada. Em uma carta destinada aos coríntios, escrita cerca de cinco anos depois que eles aceitaram o evangelho, Paulo supostamente contribui com uma quinta coluna para o templo do primeiro dia. Ele escreve: "Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa [by him, na KJV], conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for." (1 Coríntios 16:1,2) Com base nessa passagem, argumenta-se o seguinte a favor do primeiro dia como o dia de descanso cristão: 1. Era uma coleta pública; 2. Logo, o primeiro dia da semana era o dia de adoração pública nas igrejas de Corinto e da Galácia; 3. Por isso, o sábado fora mudado para esse dia. Assim, conclui-se que houve a mudança, com base nessas assembleias públicas em Corinto e na Galácia, do dia de adoração a Deus, do sábado para o primeiro dia. E a existência dessas reuniões no primeiro dia é inferida a partir das palavras de Paulo: "No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa [...]". O que, na verdade, essas palavras ordenam? Uma única resposta pode ser dada: elas ordenam justamente o contrário de uma coleta pública. Cada um deveria separar em sua casa, no primeiro dia da semana, segundo a prosperidade recebida de Deus, para que, quando Paulo chegasse, tivessem o montante pronto. O Sr. J. W. Morton, missionário presbiteriano no Haiti, dá o seguinte testemunho: "Toda a questão gira em torno do sentido da expressão 'by him' [KJV, lit. 'ao lado de si'] e muito me espanta que se possa imaginar que ela signifique 'na caixa de coleta da congregação'. Greenfield, em seu léxico, traduz o termo grego por 'consigo mesmo, isto é, em casa'. Duas versões latinas, a Vulgata e a de Castellio, traduzem por 'apud se', consigo mesmo. Três versões francesas, as de Martin, Osterwald e De Sacy, por 'chez soi', na própria casa, em casa. A tradução de Lutero para o alemão, por 'bei sich selbst', ao lado de si próprio, em casa. O holandês, por 'by hemselven', o mesmo que em alemão. A tradução italiana de Diodati, por 'appresso di se', em sua própria presença, em casa. A versão espanhola de Felippe Scio, 'en su casa', na própria casa. A versão portuguesa de Ferreira [ARA], por 'em casa'. A tradução sueca, 'naer sig self ', perto de si mesmo."[3] O Dr. Bloomfield faz o seguinte comentário sobre o original: "par eauto, 'perto de si, ao lado de si'. No francês, chez lui, 'em casa'".[4] A Bíblia Douay traduz assim: "Cada um de vós ponha de parte consigo mesmo". O Sr. Sawyer traduz: "Cada um de vós separe sozinho". A versão latina de Teodoro de Beza traz: "Apud se", isto é, em casa. O siríaco apresenta: "Cada um de vós separe e guarde em casa". É verdade que um proeminente autor que defende o primeiro dia, Justin Edwards, doutor em divindade, no esforço calculado para provar a mudança do sábado, apresenta esse texto para mostrar que o domingo era o dia de adoração religiosa na igreja primitiva. Ele diz: "Esse ato de pôr de parte não acontecia em casa, pois, se assim fosse, a realização de coletas seria impedida quando Paulo chegasse."[5] Essa é a linguagem usada por um teólogo sobre quem recaiu a difícil tarefa de provar a mudança do sábado, com base na autoridade das Escrituras. Mas em sua obra Notes on the New Testament [Notas sobre o Novo Testamento], na qual se sente livre para falar a verdade, ele contradiz claramente suas próprias palavras citadas acima. Ele comenta o seguinte sobre o mesmo texto: "Ponha de parte em um depósito, em casa. Para que não houvesse coletas e os donativos estivessem prontos quando o apóstolo chegasse."[6] Até mesmo o Dr. Edwards, portanto, assume que a ideia de uma coleta pública não se encontra nesse texto das Escrituras. Pelo contrário, parece que cada indivíduo, em obediência a essa orientação de Paulo, seria encontrado separando algo para a causa de Deus em casa, segundo seus bens materiais permitissem. A mudança do sábado para o domingo, supostamente provada por esse texto, repousa exclusivamente sobre uma ideia que o Dr. Edwards assume não se encontrar na passagem. Vimos que a igreja de Corinto guardava o sábado. É evidente que a mudança do sábado nunca poderia ter sido proposta a eles através desse texto bíblico. Essa é a única passagem em que Paulo chega a mencionar o primeiro dia da semana. Ela foi escrita quase 30 anos depois da suposta mudança do sábado. Contudo, Paulo não utiliza nenhum título de santidade para esse dia, chamando-o simplesmente de primeiro dia da semana, nome que representava um dos dias denominados "seis dias que são de trabalho". (Ezequiel 46:1) Também é digno de nota que esse é o único preceito na Bíblia em que o primeiro dia é mencionado; e esse preceito nada diz com respeito à santidade do dia ao qual se refere; a própria tarefa ordenada tem caráter mais apropriado para um dia secular do que para um tempo santo. Logo depois de escrever sua primeira epístola aos coríntios, Paulo visitou Trôade. No relato dessa visita, ocorreu o último episódio em que o primeiro dia da semana é mencionado no Novo Testamento: "Depois dos dias dos pães asmos, navegamos de Filipos e, em cinco dias,[7] fomos ter com eles naquele porto, onde passamos uma semana. No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até à meia-noite. Havia muitas lâmpadas no cenáculo onde estávamos reunidos. Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante o prolongado discurso de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi levantado morto. Descendo, porém, Paulo inclinou-se sobre ele e, abraçando-o, disse: Não vos perturbeis, que a vida nele está. Subindo de novo, partiu o pão, e comeu, e ainda lhes falou largamente até ao romper da alva. E, assim, partiu. Então, conduziram vivo o rapaz e sentiram-se grandemente confortados. Nós, porém, prosseguindo, embarcamos e navegamos para Assôs, onde devíamos receber Paulo, porque assim nos fora determinado, devendo ele ir por terra." (Atos 20:6-13) Esse texto bíblico forneceria, supostamente, a sexta coluna do templo do primeiro dia. O argumento que os defensores do domingo fazem pode ser expresso resumidamente da seguinte forma: esse testemunho mostra que o primeiro dia da semana foi reservado, pela igreja apostólica, como um momento de reunião para partir o pão em honra à ressurreição de Cristo; portanto, é razoável concluir que esse dia havia se tornado o sábado cristão. Se essa proposição [de partir o pão aos domingos] pudesse ser comprovada como verdade indubitável, a mudança do sábado para o domingo não se seguiria como uma conclusão necessá- ria. Mesmo nesse caso, não passaria de uma conjectura plausível. Os fatos a seguir nos ajudarão a julgar a veracidade do argumento que defende a mudança do sábado: 1. Esse é o único caso de reunião religiosa no primeiro dia da semana registrado no Novo Testamento; 2. Não é possível dar ênfase à expressão "estando nós reunidos" [quando os discípulos se reuniram, na KJV] como se ela pudesse provar que havia reuniões com o propósito de partir o pão em todos os primeiros dias da semana. Não há nada no original que corresponda à conjunção "quando", conforme consta na Versão King James. A frase inteira da versão inglesa foi traduzida a partir de três palavras do original: s????µ???? [synegmenon], o particípio passivo perfeito, "estando reunidos", e [ton matheton], "os discípulos"; ou seja, o autor sagrado apenas afirmou que os discípulos estavam reunidos naquela ocasião;[8] 3. A ordenança de partir o pão não foi estabelecida para celebrar a ressurreição de Cristo, mas para manter na memória Sua morte na cruz. (1 Coríntios 11:23-26) O ato de partir o pão no primeiro dia da semana não é, portanto, uma comemoração da ressurreição de Cristo; 4. Visto que o partir do pão celebra a crucifixão de nosso Senhor, e que o mesmo foi instituído na noite que deu início ao dia em que ocorreu tal crucifixão -- ocasião esta em que o próprio Jesus e todos os apóstolos estavam presentes --, (Mateus 26) fica evidente que o dia da crucifixão tem mais justificativa para ser celebrado pelo partir do pão do que o dia da ressurreição; 5. Mas como nosso Senhor não designou nenhum dia para a celebração dessa ordenança, e como há registro de que a igreja apostólica em Jerusalém chegou a celebrá-la diariamente, (Atos 2:42-46) é presunção justificar a mudança do sábado para o domingo com base em um único caso do partir do pão no primeiro dia da semana; 6. Essa incidência do partir do pão no primeiro dia da semana foi uma referência clara à partida imediata e final de Paulo; 7. É notável o fato de que este único exemplo de reunião religiosa no primeiro dia da semana, registrado no Novo Testamento, tenha sido uma reunião noturna. Isso se prova pelas muitas luzes acesas na assembleia e por Paulo ter pregado até a meia-noite; 8. E desse fato, segue-se a importante implicação de que essa reunião do primeiro dia aconteceu num sábado à noite.[9] Como os dias da semana eram contados de uma tarde a outra tarde, ou seja, de um anoitecer a outro, e a noite começava ao pôr do sol, (Ver a conclusão do capítulo 8) vê-se que o primeiro dia da semana começa no sábado à noite, ao pôr do sol, e termina no pôr do sol de domingo. Logo, um encontro noturno no primeiro dia da semana só poderia ocorrer no sábado à noite; 9. Portanto, Paulo pregou até a meia-noite da noite de sábado -- numa reunião realizada à noite, após o término do sábado, já que o apóstolo partiria na manhã seguinte --, e a reunião foi interrompida pela queda de um jovem. Paulo então desceu, curou o rapaz e subiu novamente para partir o pão. Ao raiar do dia, na manhã de domingo, ele partiu; 10. Assim, temos evidências conclusivas de que Paulo e seus companheiros retomaram a viagem para Jerusalém na manhã do primeiro dia da semana. Os companheiros foram de navio para Assôs e Paulo prosseguiu por terra. Tal fato consiste em uma prova implícita da consideração de Paulo pelo sábado, pois ele esperou que esse dia terminasse antes de seguir viagem. É também uma prova positiva de que ele nada sabia acerca daquilo que é chamado de sábado cristão nos tempos modernos; 11. Esta narrativa foi escrita por Lucas pelo menos 30 anos após a suposta mudança do sábado para o domingo. É digno de nota o fato de Lucas omitir todos os títulos de santidade da menção desse dia, chamando-o simplesmente de primeiro dia da semana. Isso se harmoniza admiravelmente com o fato de que Lucas, em seu evangelho, ao registrar o próprio evento que, conforme se alega, teria ocasionado a mudança do sábado, não só omite toda e qualquer insinua- ção de mudança, mas também chama o dia da ressurreição por seu nome secular, primeiro dia da semana, ao passo que chama o dia anterior de sábado segundo o mandamento. (Lucas 23:56; 24:1) No mesmo ano em que Paulo visitou Trôade, ele escreveu o seguinte à igreja de Roma: "Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões. Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes; quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu. Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, porque o Senhor é poderoso para o suster. Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus." (Romanos 14:1-6) Essas palavras são muito citadas para mostrar que a observância do quarto mandamento é agora uma questão insignificante, e que cada indivíduo é livre para agir, nessa questão, conforme lhe agradar. Uma doutrina tão inusitada deve ser completamente testada antes de ser aceita. Pois, se aprouve a Deus ordenar o sábado antes da queda do homem e lhe dar um lugar em Seu código dos dez mandamentos, tornando-o, assim, parte integrante da lei com a qual a grande expiação se relaciona; se o Senhor Jesus, durante Seu ministério, dedicou tanto tempo explicando o propó- sito misericordioso desse dia, e cuidou de impedir sua profanação durante a fuga de Seu povo da terra da Judeia, algo que ocorreu dez anos depois que Paulo escreveu as palavras do texto acima; se o próprio quarto mandamento é expressamente reconhecido após a crucifixão de Cristo; e se, mediante tais circunstâncias, pudéssemos supor que é compatível com a verdade o Altíssimo anular o sábado, certamente deveríamos esperar que tal fato fosse expresso em linguagem explícita. Contudo, nem o sábado, nem o quarto mandamento são mencionados aqui. Os motivos a seguir demonstram que a linguagem de Paulo não faz referência a eles: 1. Tal ponto de vista tornaria a observância de um dos dez mandamentos uma questão indiferente, ao passo que Tiago mostra que a violação de um deles corresponde à transgressão de todos. (Tiago 2:8-12) 2. Trata-se de uma contradição direta do que Paulo havia escrito até então nesta epístola, pois, ao falar sobre a lei dos dez mandamentos, ele a caracteriza como santa, espiritual, justa e boa, e afirma que o pecado -- a transgressão da lei --, pelo mandamento, se torna "sobremaneira maligno". (Romanos 7:12-14; 1 João 3:4,5) 3. Na mesma epístola, Paulo assegura a perpetuidade da lei que levou nosso Senhor a entregar a própria vida por homens pecadores, (Romanos 3) lei esta que já vimos se tratar dos dez mandamentos. 4. Neste caso, além de não mencionar por nome o sábado e o quarto mandamento, Paulo certamente não estava se referindo à lei moral. 5. O assunto em consideração, que o leva a falar sobre os dias da maneira que o faz, era a ingestão de todos os tipos de alimento, ou a abstinência de certas coisas. 6. O quarto mandamento não estava associado a preceitos dessa natureza, mas exclusivamente às leis morais. (Êxodo 20) 7. Na lei cerimonial, juntamente com os preceitos referentes a alimentos, havia um grande número de festas, totalmente distintas do sábado do Senhor. (Levítico 23. Elas são listadas de maneira específica em Colossenses 2, conforme já observamos no capítulo 7 e na conclusão do capítulo 10) 8. A igreja de Roma, provavelmente fundada pelos judeus romanos que estavam presentes no dia do Pentecostes, contava com muitos membros judeus em sua comunhão, conforme a pró- pria epístola evidencia; (Atos 2:1-11; Romanos 2:17; 4:1; 7:1) eles, portanto, estariam profundamente interessados na decisão dessa questão relativa à lei cerimonial, pois os membros judeus sentiam, em sua consciência, o dever de observar essas ordenanças, ao passo que os membros gentios não tinham tais escrúpulos. Daí o admirável conselho de Paulo, atendendo, com exatidão, às necessidades de ambas as classes. 9. Tampouco se pode provar, de forma conclusiva, que a expressão "todos os dias" incluía o sábado do Senhor. Quando o sábado foi formalmente confiado aos hebreus, expressões exatamente iguais eram utilizadas, contudo, para se referir somente aos seis dias de trabalho. Assim lemos: "O povo sairá e colherá diariamente a porção para cada dia". E a narrativa continua: "Colhiam-no, pois, manhã após manhã". No entanto, quando alguns saíram para colher o maná no sábado, Deus questionou: "Até quando recusareis guardar os Meus mandamentos e as Minhas leis?". (Êxodo 16:4,21,27,28) Sendo o sábado uma grande verdade, declarada com clareza e repetida muitas vezes, dois pontos ficam claros ao Paulo usar a expressão "todos os dias": (1) a expressão se refere aos seis dias de trabalho em que poderiam ocorrer as festas judaicas, que cerimonialmente faziam distinção entre um dia e outro, e durante as quais havia também distinções entre alimentos; (2) a expressão definitivamente não inclui o dia que, desde o início, Deus reservou para Si. O mesmo ocorre quando Paulo cita as palavras de Davi, aplicando-as a Jesus: "Todas as coisas sujeitou debaixo dos pés", mas acrescenta: "E, quando diz que todas as coisas Lhe estão sujeitas, certamente, exclui Aquele que tudo Lhe subordinou". (1 Coríntios 15:27; Salmos 8) 10. Por fim, nas palavras de João, "Achei-me em espírito, no dia do Senhor", (Apocalipse 1:10) escritas muitos anos depois desta epístola de Paulo, temos prova absoluta de que, na dispensação evangélica, um dia ainda é reivindicado pelo Altíssimo como pertencendo a Si próprio.[10] Dez anos depois que essa epístola foi escrita, ocorreu a memorável fuga de todo o povo de Deus que se encontrava na terra da Judeia. Não foi no inverno, pois ocorreu logo depois da Festa dos Tabernáculos, em algum momento de outubro. E não ocorreu no sábado, pois Josefo, ao falar da súbita retirada do exército romano, que, depois de ter cercado a cidade, deu o sinal de fuga que o Senhor havia prometido a Seu povo, nos conta que os judeus saíram correndo da cidade, em busca dos romanos que se retiravam; e foi nesse exato momento que a ordem de fuga imediata, feita por nosso Senhor, se tornou imperativa para os discípulos. O historiador não afirma que os judeus perseguiram os romanos no sábado, embora mencione cuidadosamente o fato de que, alguns dias antes desse acontecimento, em sua raiva, eles haviam se esquecido completamente do sábado e se apressado para lutar contra os romanos nesse dia. Essas circunstâncias providenciais para a fuga dos discípulos, sendo condicionais ao fato de eles terem pedido tal intervenção da parte de Deus, evidenciam que os discípulos não se esqueceram da oração ensinada pelo Salvador a respeito desse evento; evidenciam também, consequentemente, que o sábado do Senhor não foi esquecido por eles. Assim, o Senhor Jesus, em Seu terno e vigilante cuidado por Seu povo e em prol do sábado, mostrou que era, tanto Senhor de Seu povo, quanto Senhor do sábado. (Ver o capítulo 10) Vinte e seis anos depois da destruição de Jerusalém, o livro do Apocalipse foi confiado ao discípulo amado. O livro traz uma introdução extremamente interessante quanto ao lugar e ao momento em que foi revelado: "Eu, João, irmão vosso e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Achei-me em espírito, no dia do Senhor, e ouvi, por detrás de mim, grande voz, como de trombeta, dizendo: O que vês escreve em livro." (Apocalipse 1:9-11) Esse livro foi escrito na ilha de Patmos, no dia do Senhor. O lugar, o dia e o autor têm existência real, não meramente simbólica ou mística. Assim, João, quase no fim do primeiro século, e muito tempo depois de terem sido escritos os textos que são agora usados para provar que não existe distinção entre dias, mostra que o dia do Senhor tem existência tão real quanto a ilha de Patmos, ou quanto o próprio discípulo amado. A que dia, então, João faz referência com essa designação? Várias respostas já foram dadas a essa pergunta: (1) a dispensação evangélica; (2) o dia do juízo; (3) o primeiro dia da semana; (4) o sábado do Senhor. A primeira resposta não pode ser a verdadeira, pois, além de transformar o dia em um termo místico, implica no absurdo de apresentar João escrevendo para os cristãos 65 anos depois da morte de Cristo, e dizendo que a visão que ele acabara de ter fora recebida na dispensação evangélica, como se eles fossem ignorantes de que, se ele de fato tivera uma visão, precisaria recebê-la na dispensação existente. A segunda resposta também não pode ser admitida como a verdadeira; pois, embora seja verdade que João teve uma visão sobre o dia do juízo, é impossível que ele a tenha recebido nesse dia, que ainda estava no futuro. Se é um absurdo apresentar João recebendo sua visão na ilha de Patmos na dispensação evangélica, torna-se uma inverdade patente que ele tenha dito que estava em visão, em Patmos, no dia do juízo. A terceira resposta, de que o dia do Senhor corresponde ao primeiro dia da semana, é hoje quase que universalmente aceita como verdade. O texto em análise é apresentado com ar de triunfo para concluir o templo da santidade do primeiro dia, como se provasse, sem sombra de dúvida, que esse dia é de fato o domingo, chamado de sábado cristão. Contudo, com base nas cuidadosas e precisas investigações feitas até o momento sobre esse templo, já descobrimos que seu alicerce não passa de fruto da imaginação; e que as colunas que o apoiam só existem na mente daqueles que adoram diante de seu altar. Resta-nos descobrir se a cúpula que essa passagem supostamente fornece ao templo é mais real do que as colunas sobre as quais ela se apoia. O primeiro dia da semana não tem nenhum direito ao título de dia do Senhor, conforme demonstram os fatos a seguir: 1. Como esta passagem não define o termo "dia do Senhor", precisamos procurar, em outras partes da Bíblia, evidências que mostrem que o primeiro dia merece receber tal designação; 2. Mateus, Marcos, Lucas, Paulo e outros autores sagrados que mencionam o dia não usam para o mesmo outra designação além de "primeiro dia da semana", um nome que, por direito, o coloca entre um dos seis dias de trabalho. No entanto, três dos autores o mencionam bem na época em que se afirma que ele se tornou o dia do Senhor; e dois escritores o mencionam cerca de 30 anos depois; 3. Embora se afirme que o Espírito de inspiração simplesmente guiou João a usar o termo "dia do Senhor" com a expressa intenção de fazer dele o título adequado do primeiro dia da semana -- apesar de João de modo algum estabelecer tal associação --, é impressionante constatar que João escreveu seu evangelho depois de sair da ilha de Patmos,[11] e mencionou ali o primeiro dia da semana por duas vezes; todavia, em cada um dos casos em que ele trata, com certeza, do primeiro dia, não é usada nenhuma outra designação além do mero "primeiro dia da semana". Trata-se de uma prova mais que convincente de que João não considerava o primeiro dia da semana merecedor de tal título, nem de qualquer outro que expressasse sua santidade; 4. O que define ainda mais a questão contra o primeiro dia da semana é o fato de que, nem o Pai, nem o Filho, exaltaram o primeiro dia acima de qualquer um dos outros seis dias dados ao ser humano para trabalhar; 5. Finalmente, o que completa a cadeia de evidências contra a reivindicação desse título para o primeiro dia é o fato de que, o testemunho, citado pelos defensores do primeiro dia para provar que ele foi adotado pelo Altíssimo no lugar do dia que Ele, no passado, afirmara ser Seu, depois de examinado, se mostra destituído desse significado ou intenção. Ao descartarmos a terceira resposta, por também não condizer com a verdade, o primeiro dia da semana pode ser apropriadamente repudiado por não merecer nossa consideração como instituição bíblica.[12] Há provas claras e definitivas de que o dia do Senhor é o sábado bíblico. O argumento é o seguinte: quando Deus deu ao ser humano seis dias da semana para trabalhar, Ele reservou expressamente o sétimo para Si, colocando sobre o mesmo Sua bênção, em memória de Seu próprio ato de descansar nesse dia; e daí em diante, ao longo de toda a Bíblia, Ele sempre o classificou como Seu dia santo. E como Deus nunca descartou esse dia sagrado nem escolheu outro, o sábado do Senhor é, ainda, Seu dia santo. Tais fatos podem ser encontrados nos textos bíblicos que serão citados a seguir. Ao fim do descanso do Criador, declara-se: "E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera." (Gênesis 2:3) Depois que os filhos de Israel chegaram ao deserto de Sim, no sexto dia Moisés lhes disse: "Amanhã é repouso, o santo sábado do Senhor." (Êxodo 16:23) Ao entregar os dez mandamentos, o Legislador declarou Seu direito sobre esse dia da seguinte forma: "O sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; [...] porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou." (Êxodo 20:8-11) Ele deu ao ser humano os seis dias nos quais Ele próprio havia trabalhado; e reservou como Seu o dia no qual descansou de toda Sua obra. Cerca de 800 anos depois, Deus falou o seguinte por intermédio de Isaías: "Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no Meu santo dia, [...] então, te deleitarás no Senhor. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra." (Isaías 58:13,14) Esse testemunho é absolutamente explícito. O dia do Senhor é o antigo sábado da Bíblia. O Senhor Jesus fez a seguinte reivindicação: "O Filho do Homem é Senhor também do sábado." (Marcos 2:27,28) Logo, quer o título se refira ao Pai quer ao Filho, o único dia que pode ser chamado de "dia do Senhor" é o sábado do grande Criador.[13] E aqui, no final da história bíblica do sábado, dois fatos extremamente interessantes são apresentados: (1) João reconhecia expressamente a existência do dia do Senhor no fim do primeiro século; (2) aprouve ao Senhor do sábado colocar um sinal de honra em Seu dia, ao escolhê-lo para, nele, transmitir a João a revelação que só Ele fora digno de receber do Pai. Notas: 1. O Dr. Bloomfield faz a seguinte observação acerca dessa passagem: "Muitos comentaristas supõem que as palavras [no sábado seguinte] significam 'em algum dia do meio da semana'. Mas o versículo 44 refuta essa ideia, e, sem dúvida, o significado expresso em nossa versão comum é o verdadeiro. Ele é adotado pelos melhores comentaristas recentes e é confirmado pelas versões antigas" (Greek Testament with English Notes, vol. 1, p. 521). O professor Hacket faz uma nota semelhante em Commentary on Acts, p. 233. 2. O costume de Paulo é exemplificado nos textos a seguir, que parecem mostrar que as reuniões mencionadas ocorreram no sábado: Atos 13:5; 14:1; 17:10, 17; 8:19; 19:8. 3. Vindication of the True Sabbath, Battle Creek, p. 51, 52. 4. Greek Testament with English Notes, vol. 2, p. 173. 5. Sabbath Manual of the American Tract Society, p. 116. 6. Family Testament of the American Tract Society, p. 286. 7. O professor Hacket comenta sobre a duração dessa viagem: "O mesmo trajeto feito por Paulo em sua primeira viagem à Europa durou apenas dois dias (ver capítulo 16:11). Ventos contrários ou calmarias eram prováveis em qualquer época do ano, o que explica essa variação" (Commentary on Acts, p. 329). Isso mostra quão frágil é o fundamento que sustenta a alegação de que Paulo transgrediu o sábado nessa viagem. Havia tempo suficiente para chegar a Trôade antes do sábado, quando partiu de Filipos, caso ele não houvesse sido providencialmente impedido. 8. O professor Whiting traduz a expressão dessa forma: "Estando os discípulos reunidos". E Sawyer diz: "Estando nós reunidos". A ARA em português segue o mesmo padrão. 9. Tal fato já foi reconhecido por muitos comentaristas defensores do primeiro dia. O professor Hacket, por exemplo, comenta o seguinte acerca dessa passagem: "Os judeus contavam o dia da noite para a manhã e, segundo esse princípio, a noite do primeiro dia da semana seria nosso sábado à noite. Se Lucas usou esse sistema aqui, conforme supõem muitos comentaristas, então o apóstolo esperou o fim do sábado judaico e realizou o último culto com os irmãos de Trôade no início do sábado cristão [o domingo], isto é, no sábado à noite e, consequentemente, retomou a viagem no domingo de manhã" (Commentary on Acts, p. 329, 330). Ele, porém, tenta proteger o sábado do primeiro dia desse reconhecimento fatal ao sugerir que Lucas provavelmente contou o tempo de acordo com o método pagão, em vez de seguir aquilo que está ordenado nas Escrituras! Kitto, ao constatar o fato de que era uma reunião noturna, disse o seguinte: "Com base nessa última circunstância, tem-se concluído que a reunião começou depois do pôr do sol do sábado, em cujo instante começava o primeiro dia da semana, de acordo com a contagem judaica [Jahn's Bibl. Antiq., seção 398], algo que dificilmente harmonizaria com a ideia de comemoração da ressurreição" (Cyclopedia of Biblical Literature, artigo "dia do Senhor"). E Pryne, cujo testemunho acerca do argumento da redenção, em favor da mudança do sábado para o domingo, já foi citado, afirma o seguinte sobre esse ponto: "Como o texto diz que havia muitas luzes no local onde estavam reunidos e que Paulo pregou desde o momento em que se reuniram até a meia-noite, [...] essa reunião dos discípulos em Trôade e a pregação de Paulo a eles começou de noite. A única dúvida é em qual noite [...]. De minha parte, concebo claramente que foi no sábado à noite, conforme erroneamente chamamos, e não na noite seguinte, de domingo. [...] São Lucas registra que era o primeiro dia da semana quando a reunião ocorreu [...]; portanto, necessariamente foi no sábado à noite, não no nosso domingo à noite, já que o domingo à noite, na contagem dos dias segundo São Lucas e as Escrituras, não fazia parte do primeiro dia, mas, sim, do segundo, pois os dias sempre começavam e terminavam no início da noite". Prynne comenta sobre a objeção, extraída da expressão "seguir viagem no dia imediato" ["no dia seguinte", ARC], de que o texto indica que essa partida não ocorreu no mesmo dia da semana na qual ocorreu a reunião noturna. O cerne de sua resposta é este: mantendo-se em mente que os dias da semana são contados de um pôr do sol ao outro, os textos a seguir, nos quais a manhã é mencionada como o dia posterior à noite, demonstrarão imediatamente que a frase em questão não teve a intenção de fazer menção a outro dia: 1 Samuel 19:11; Ester 2:14; Sofonias 3:3; Atos 23:31, 32 (Diss. on Lord's Day Sab., p. 36--41, 1633). 10. Com frequência, a fim de provar que Paulo considerava perigosa a observância do sábado, cita-se Gálatas 4:10. Todavia, os mesmos indivíduos afirmam que Romanos 14:1--6 prova que ela era facultativa, ou uma questão completamente sem importância, não vendo que isso faria Paulo se contradizer. Contudo, se analisarmos o contexto desde o versículo 8 até o 11, veremos que, antes da conversão, os gálatas não eram judeus, mas, sim, pagãos, e que aqueles dias, meses, tempos e anos não se referem à lei levítica, mas àquelas leis que eles haviam guardado com supersticiosa reverência enquanto pagãos. Observe o destaque que Paulo dá às palavras "outra vez", no versículo 9. E quantos dos que professam a religião de Cristo, no presente, consideram certos dias como sendo "de sorte" ou "de azar", embora tais noções derivem tão somente de crenças pagãs! 11. O Dr. Bloomfield, embora mantenha uma opinião diferente, diz o seguinte acerca da opinião de outros sobre a data em que o evangelho de João foi escrito: "O ponto de vista geral, tanto de pesquisadores antigos quanto modernos, é que foi publicado por volta do fim do primeiro século" (Greek Testament with English Notes, vol. 1, p. 328). Morer afirma que João "escreveu seu evangelho dois anos depois do Apocalipse e após seu retorno de Patmos, como afirmam Santo Agostinho, São Jerônimo e Eusébio" (Dialogues on the Lord's Day, p. 53, 54). A Paragraph Bible da London Religious Tract Society, no prefácio ao livro de João, diz o seguinte: "De acordo com o testemunho geral de escritores antigos, João escreveu seu evangelho em Éfeso, por volta do ano 97". Em apoio ao mesmo ponto de vista, ver também Religious Encyclopedia, Barnes' Notes (evangelho), Bible Dictionary, Cottage Bible, Domestic Bible, Mine Explored, Union Bible Dictionary, Comprehensive Bible, Dr. Hales, Horne, Nevins, Olshausen, etc. 12. A Enciclopédia Britânica, em seu artigo referente ao sábado, procura provar que a "observância religiosa do primeiro dia da semana foi instituída pelos apóstolos". Depois de citar e comentar todas as passagens que poderiam ser usadas como prova, ela faz uma franca confissão: "Mesmo assim, porém, deve-se admitir que essas passagens não são suficientes para provar a instituição apostólica do dia do Senhor, nem que eles de fato o observaram". A ausência de qualquer testemunho bíblico acerca da mudança do sábado é explicada, por alguns defensores dessa teoria, não por meio de uma franca admissão de que o dia do Senhor nunca foi mudado, mas pela menção de João 21:25. Eles presumem que a mudança do sábado é uma verdade indubitável, mas que foi deixada de fora da Bíblia para que o livro não ficasse longo demais! Eles creem, portanto, que devemos recorrer à história eclesiástica para aprender sobre esse aspecto do nosso dever. No entanto, visto que o quarto mandamento permanece na Bíblia sem ter sido revogado ou alterado, eles deixam de perceber que, ao reconhecerem que tal mudança deve ser sustentada por bases totalmente extrabíblicas, eles também aceitam que a observância do primeiro dia é uma tradição que anula o mandamento de Deus. Os capítulos seguintes desta obra analisarão, com paciência, o argumento da observância do primeiro dia com base na história eclesiástica. 13. Um oponente qualificado da observância do sábado disse o seguinte acerca da expressão "dia do Senhor" em Apocalipse 1:10: "Se a intenção era se referir a um dia semanal, o único que caberia em tal definição, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, é o sábado, o sétimo dia da semana" (W. B. Taylor, The Obligation of the Sabbath, p. 296). Capítulo 12 A Apostasia Já no Início da Igreja Cristã Olivro de Atos é um relato inspirado da história da igreja. Durante o período que esse registro abrange, os apóstolos e seus co-obreiros estavam no palco de ação, e, por meio de sua vigilância, as igrejas de Cristo preservaram, em grande medida, sua pureza de vida e doutrina. Essas igrejas apostólicas são apresentadas como exemplos apropriados para os tempos vindouros. O livro faz uma conexão adequada entre a narrativa dos quatro evangelistas e as epístolas apostólicas, unindo, desse modo, todo o Novo Testamento. Mas quando deixamos a época coberta pela história inspirada, bem como as igrejas que foram fundadas e administradas por homens inspirados, entramos em um período completamente diferente. É triste admitir que há muita verdade nas duras palavras de Gibbon: "O teólogo pode se deleitar na agradável tarefa de descrever a religião conforme ela desceu do Céu, envolta por pureza original. Ao historiador se impõe um dever mais melancólico. Ele deve expor a inevitável mistura de erro e corrupção que ela contraiu em sua longa permanência na Terra, em meio a uma raça de seres fracos e degenerados."[1] O que diz o livro de Atos acerca da época imediatamente posterior aos esforços de Paulo? Dirigindo-se aos anciãos da igreja de Éfeso, Paulo disse: "Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles." (Atos 20:29,30) Conclui-se, com base nesse testemunho, que não somos autorizados a aceitar o ensino de qualquer pessoa simplesmente por ela ter vivido logo depois da era apostólica, ou até mesmo nos dias dos apóstolos. Lobos vorazes penetrariam no meio do povo de Deus e, de entre o próprio povo, se levantariam homens falando coisas pervertidas. Caso alguém se pergunte como pode diferenciar tais indivíduos dos verdadeiros servos de Deus, a resposta apropriada é esta: aqueles que falaram e agiram de acordo com os ensinos dos apóstolos eram homens de Deus; mas, os que ensinaram de outra forma, faziam parte do grupo que falaria coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles. O que as epístolas apostólicas dizem acerca dessa apostasia? Aos tessalonicenses, foi escrito: "Ninguém, de nenhum modo, vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus. [...] Com efeito, o mistério da iniquidade já opera e aguarda somente que seja afastado aquele que agora o detém; então, será, de fato, revelado o iníquo, a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de Sua boca e o destruirá pela manifestação de Sua vinda." (2 Tessalonicenses 2:3,4,7,8) A Timóteo, de maneira semelhante, Paulo disse: "Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas." (2 Timóteo 4:2-4; 2 Pedro 2; Judas 4; 1 João 2:18) Esses textos são os que mais explicitamente profetizam uma grande apostasia dentro da igreja, declarando que a mesma já havia começado. A igreja romana, a mais antiga em apostasia, se orgulha de seu caráter apostólico. Usando as palavras já citadas de Paulo aos tessalonicenses, esse grande corpo anticristão pode, de fato, justificar a reivindicação de ter-se originado nos tempos apostólicos, mas seu caráter apostólico é terminantemente negado. Aqui se encontra uma ilustra- ção marcante de que algo ruim não se torna bom pela circunstância acidental de ter surgido nos dias dos apóstolos. Tudo, em seu início, já demonstra se é certo ou errado. Se for certo, tal fato será conhecido por estar de acordo com o padrão divino. Se for errado em sua origem, nunca deixará de o ser. A grande falsidade de Satanás, que mergulhou nossa raça em ruína, ainda não se transformou em verdade, muito embora seis mil anos tenham se passado desde que foi proferida. Pensem nisso, vocês que adoram no altar do venerável erro. Quando as fábulas de homens tomaram o lugar da verdade de Deus, Ele foi desonrado. Como, então, poderia Ele aceitar a obediência a elas como parte da devoção pura que requer de nossas mãos? Os que adoram a Deus devem fazê-lo em Espírito e em verdade. Quantas eras devem se passar até que as fábulas humanas se transformem em verdade divina? O cumprimento dessas predições, contidas no Novo Testamento, acerca da grande apostasia da igreja, é comprovado amplamente pelas páginas da história eclesiástica. Dowling, em History of Romanism [História do Romanismo], dá o seguinte testemunho: "Poucas coisas chamam mais a atenção daquele que estuda com cuidado a história eclesiástica antiga, e lhe causam mais surpresa, do que o período relativamente precoce em que surgiram muitas das corrupções do cristianismo, as quais foram incorporadas ao sistema romano. Contudo, não se deve supor que, quando os originadores de muitas dessas noções e práticas antibíblicas plantaram suas sementes de corrupção, eles previram ou imaginaram que elas se transformariam em um sistema tão vasto e horrendo de superstição e erro como o que se vê no papado. [...] Cada uma das grandes corrupções das eras posteriores surgiu de uma forma que pareceria severo demais dizer que merecia forte repreensão. [...] A adoração de imagens, a invocação de santos e a superstição das relíquias não passaram de expansões dos sentimentos naturais de veneração e afeto, nutridos em memória daqueles que haviam sofrido e morrido pela verdade."[2] Robinson, autor de History of Baptism [História do Batismo], dá o seguinte testemunho: "Já quase no final do segundo século, a maioria das igrejas assumiu uma nova forma. A simplicidade inicial desapareceu. De maneira gradual e quase imperceptível, à medida que os antigos discípulos desciam à sepultura, seus filhos, junto com os novos conversos, tanto judeus quanto gentios, tomaram a frente e remodelaram a causa."[3] A obra do mistério da iniquidade, nos primeiros séculos da igreja cristã, é descrita da seguinte forma por um escritor recente: "Durante esses séculos, as principais corrupções do papado ou foram introduzidas em princípio, ou suas sementes foram lançadas, com tamanha eficácia, que vieram a produzir naturalmente aqueles frutos nocivos tão abundantes em período posterior. Na época de Justino Mártir, 50 anos depois da era apostólica, o vinho era misturado com água, e uma porção dessa mistura era enviada para os ausentes. O pão, que inicialmente só era enviado para os enfermos, passou, na época de Tertuliano e Cipriano, a ser levado para casa pelas pessoas, e trancado como tesouro divino para uso pessoal. Além disso, nessa época, a ordenança da ceia era dada a crianças da mais tenra idade, e era chamada de sacrifício do corpo de Cristo. Tertuliano declara que o costume de orar pelos mortos era comum no segundo século, e se tornou a prática universal das eras seguintes, a ponto de, no quarto século, ser considerado uma forma de heresia negar a eficácia desse tipo de prece. Nessa época, a invocação de santos, o uso supersticioso de imagens, do sinal da cruz e do óleo consagrado haviam se tornado práticas estabelecidas, e falsos milagres eram confiantemente citados como prova de sua suposta eficácia. Foi assim que o mistério da iniquidade, que já estava atuando na época dos apóstolos, disseminou suas corrupções entre os que professavam o cristianismo, logo após a morte dos apóstolos."[4] Neander afirma o seguinte acerca da rápida introdução da adoração a imagens: "E contudo, as imagens religiosas foram levadas do ambiente doméstico para as igrejas já no fim do terceiro século; e as paredes das igrejas eram pintadas da mesma maneira."[5] A precoce apostasia da igreja professamente [cristã] é um fato confirmado tanto pela autoridade da inspiração quanto pela história eclesiástica. "O mistério da iniquidade já opera" -- disse Paulo. Ficamos pasmos ao constatar que uma parte tão grande do povo de Deus se afastou tão rapidamente de Sua graça, seguindo outro evangelho. O que dizer daqueles que consultam esse período da história da igreja e até épocas posteriores para corrigir a Bíblia? Paulo disse que surgiriam homens dentre os líderes da igreja apostólica, os quais falariam coisas perversas, levando pessoas a desviar os ouvidos da verdade e se voltar às fábulas. Será que as tradições desse período têm importância suficiente para anular a Palavra de Deus? O culto historiador dos papas, Archibald Bower, usa esta linguagem enfática: "Para evitarmos ser enganados, deveríamos tratar a tradição como lidamos com um mentiroso notório e conhecido, a quem não damos crédito algum, a menos que aquilo que ele diz nos seja confirmado por alguém de veracidade indubitável. [...] Tradições falsas e mentirosas remontam a datas antigas, e os mais notáveis homens, motivados por uma credulidade piedosa, permitiram-se enganar por elas."[6] Dowling dá um testemunho semelhante: "'A Bíblia, repito, a Bíblia somente é a religião dos protestantes!' O protestante genuíno não leva em conta quão antiga é a origem de uma doutrina, se ela não se encontra na Bíblia. Ele é informado pelo próprio Novo Testamento que havia erros na época dos apóstolos, e que estes, com frequência, usavam a pena para combatê-los. Portanto, se uma doutrina for proposta para que o protestante a aceite, ele pergunta: ela se encontra na Palavra inspirada? Foi ensinada pelo Senhor Jesus Cristo e por Seus apóstolos? [...] Além disso, vale acrescentar, mesmo que se demonstre que Cipriano, Jerônimo e Agostinho, ou até mesmo os pais de eras anteriores, como Tertuliano, Inácio e Irineu, ensinavam as doutrinas extrabíblicas e dogmas do papado, fato que ninguém admite, ainda assim o protestante coerente simplesmente perguntaria: esta doutrina se encontra na Bíblia? Foi ensinada por Cristo e Seus apóstolos? [...] Aquele que recebe uma única doutrina com base na mera autoridade da tradição, não importa o título que ele tenha, ao fazê-lo, tira o pé de sobre a rocha protestante e cruza a linha que separa o protestantismo do papado; sendo incapaz de apresentar qualquer motivo válido para não receber também todas as outras antigas doutrinas e cerimônias do romanismo com base na mesma autoridade."[7] O Dr. Cumming de Londres fala o seguinte sobre a autoridade dos pais da igreja primitiva: "Alguns deles se distinguiam pela inteligência, outros pela eloquência, alguns pela piedade e muitos pelo fanatismo e pela superstição. O Dr. Delahogue (que foi professor na faculdade católica romana de Maynooth), com base na autoridade de Eusébio, relatou que aqueles pais primitivos que estavam mais aptos para servir de luminares para a era em que viviam estavam tão ocupados preparando seus rebanhos para o martírio, que não tinham tempo de se dedicar à escrita; por conseguinte, conforme admite esse clérigo católico romano, não temos uma exposição completa e justa dos pontos de vista de todos os pais dos primeiros séculos, mas somente dos mais ambiciosos pela distinção literária e menos atentos a seus deveres. [...] Os pais mais devotos e piedosos estavam ocupados ensinando o rebanho; os mais vaidosos e cheios de ambição gastavam seu tempo preparando tratados. Se todos os pais que marcaram aquela era houvessem colocado seus pontos de vista no papel, teríamos uma representação justa da teologia da igreja desses pais. No entanto, como somente alguns o fizeram (e muitos de seus escritos se encontram até mesmo mutilados ou perdidos), e estes não eram os mais devotos e espirituais, argumento que seria tão injusto julgar a teologia dos primeiros séculos pelos escritos dos poucos pais, os únicos representantes que nos restam para expô-la, quanto seria julgar a teologia do século 19 pelos sermões do Sr. Newman, os discursos do Dr. Candlish ou as diversas obras do falecido Edward Irving."[8] Adam Clarke dá um testemunho decisivo sobre o assunto: "Mas a respeito deles [os pais da igreja], podemos seguramente declarar que não existe nenhuma verdade, nem no mais ortodoxo dos credos, que não possa ser provada pela autoridade deles; nem alguma heresia que tenha trazido desgraça à igreja romana que não os confronte como instigadores dela. Em termos de doutrina, a autoridade deles é, para mim, equivalente a nada. Somente a Palavra de Deus contém meu credo. Posso recorrer aos pais gregos ou latinos da igreja, em diversos pontos, para saber no que eles acreditavam e no que as pessoas de suas respectivas comunidades criam. Depois de tudo isso, porém, devo voltar para a Palavra de Deus a fim de saber no que Ele deseja que eu creia."[9] Em sua autobiografia, ele usa estas fortes palavras: "Devemos prestar atenção em como citamos os pais a fim de provar as doutrinas do evangelho; pois aqueles que os conhecem bem sabem que, em muitos desses assuntos, eles são vacilantes."[10] Os testemunhos abaixo explicam, em parte, a natureza não confiável dos pais. Ephraim Pagitt afirma: "A igreja de Roma, consciente de seus erros e de suas corrupções, tanto na fé quanto nas práticas, diversas vezes pareceu querer empreender reformas; no entanto, seu grande orgulho e o lucro infinito, proveniente do purgatório, de indulgências e de coisas semelhantes, impediu que tais reformas fossem realizadas. Assim, para manter sua grandeza, seus erros e novos pontos de fé, ela (1) corrompeu muitos dos antigos pais e reimprimiu seus escritos, fazendo-os falar conforme o desejo dela [...], e (2) escreveu muitos livros em nome desses antigos escritores e forjou diversos decretos, cânones e concílios que dão falso testemunho contra eles."[11] E William Reeves testifica do mesmo fato: "A igreja de Roma teve todas as oportunidades de tempo, lugar e poder para fundar o reino das trevas; e não poupou esforços ao manipular, cortar e retocar os registros primitivos a seu bel-prazer, conforme fica notoriamente claro."[12] As tradições da igreja primitiva são consideradas, por muitos, tão confiáveis quanto as palavras das Sagradas Escrituras. Mas um único exemplo extraído da Bíblia ilustrará o caráter da tradição, demonstrando o quanto se pode confiar nela: "Então, Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava, o qual na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor? Vendo-o, pois, Pedro perguntou a Jesus: E quanto a este? Respondeu-lhe Jesus: Se Eu quero que ele permaneça até que Eu venha, que te importa? Quanto a ti, segue-Me. Então, se tornou corrente entre os irmãos o dito de que aquele discípulo não morreria. Ora, Jesus não dissera que tal discípulo não morreria, mas: Se Eu quero que ele permaneça até que Eu venha, que te importa?" (João 21:20-23) Este é o relato de uma tradição que se originou dentro do seio da igreja apostólica, mas que acabou transmitindo um erro crasso às gerações seguintes. Observe como a palavra de Deus corrige esse erro com cuidado. Na realidade, duas regras de fé estão presentes em todo o mundo cristão. Uma delas é a Palavra de Deus apenas; a outra é a Palavra de Deus somada às tradições da igreja. Aqui estão elas: I. A REGRA DO GENUÍNO PROTESTANTE: A BÍBLIA SOMENTE "Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra." (2 Timóteo 3:16,17) II. A REGRA DO CATÓLICO ROMANO: A BÍBLIA E A TRADIÇÃO "Se quisermos ter toda a regra de fé e prática cristã, não devemos nos contentar com essa Escritura que Timóteo conhecia desde a infância, isto é, com o Antigo Testamento somente; nem ainda com o Novo Testamento, sem associar a ele as tradições dos apóstolos e a interpretação da igreja, à qual os apóstolos confiaram tanto o livro quanto o seu verdadeiro significado."[13] Sem dúvida, a usurpação, pelo primeiro dia, do lugar do sábado, não se sustenta pela primeira dessas regras, pois a Palavra de Deus nada diz a respeito de tal instituição. A segunda regra é necessariamente adotada por todos aqueles que defendem a santidade do primeiro dia da semana, pois os escritos dos pais e as tradições da igreja fornecem todo o testemunho que pode ser usado para apoiar tal dia. A adoção da primeira regra significa condenar a guarda do domingo por ser uma instituição humana. A aceitação da segunda regra significa, para todos os efeitos, reconhecer que os católicos romanos estão certos, pois é por meio dessa regra que eles conseguem defender seus dogmas não-bíblicos. W. B. Taylor, competente escritor antissabatista, reforça essa ideia com grande clareza: "O triunfo do católico romano coerente sobre todos os observadores do domingo que se denominam protestantes é, de fato, completo, sem deixar espaço para réplicas. [...] Um assunto que deveria ser seriamente considerado por parte dos cristãos das denominações reformadas e evangélicas, é o de não ser possível encontrar um único argumento sequer, ou qualquer sugestão em favor da guarda do domingo, que não se aplique com igual força e com total extensão à defesa dos vários outros 'dias santos' instituídos pela 'igreja'."[14] Leia o argumento apresentado por um católico romano: "A Palavra de Deus ordena que o sétimo dia seja o sábado do Senhor e seja santificado. Vocês [protestantes], sem nenhum preceito das Escrituras, mudam o sábado para o primeiro dia da semana, o qual é autorizado somente por nossas tradições [católicas]. Diversos puritanos ingleses se opõem a esse ponto, afirmando que a guarda do primeiro dia é provada pelas Escrituras nos textos que fazem referência ao 'primeiro dia da semana'. (Atos 20:7; 1 Coríntios 16:2; Apocalipse 1:10) Será que eles não criaram uma bela trama ao citar essas passagens? Se [como católicos] não tivéssemos melhor justificativa para o purgatório, as orações aos mortos, a invocação dos santos e assim por diante, eles, de fato, teriam bons motivos para caçoar de nós; pois, onde está escrito que os dias em que essas reuniões se realizaram eram considerados dias de descanso? Ou onde está ordenado que estes dias deveriam ser sempre observados? Ou, em resumo, onde está declarado que a guarda do primeiro dia deveria anular a santificação do sétimo dia, que Deus ordenou que fosse santificado eternamente? Nada disso se encontra expresso na Palavra escrita de Deus."[15] Portanto, todo aquele que entrar no grupo de observadores do domingo em lugar do sábado, necessariamente o faz -- embora talvez sem consciência do fato -- sob o estandarte da Igreja de Roma. Notas: 1. Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 15. 2. Livro 2, cap. 1, seção 1. 3. Eccl. Researches, cap. 6, p. 51, ed. 1792. 4. The Modern Sabbath Examined, p. 123, 124. 5. Rose's Neander, p. 184. 6. Hist. of the Popes, vol. 1, p. 1, ed. Phila., 1847. 7. History of Romanism, livro 2, cap. 1, seções 3 e 4. 8. Lectures on Romanism, p. 203. 9. Commentary on Proverbs 8. 10. Autobiography of Adam Clarke, LL.D., p. 134. 11. Christianography, parte 2, p. 59, Londres, 1636. 12. Translation of the Apologies of Justin Martyr, Tertullian, and others, vol. 2, p. 375. 13. Nota da Bíblia Douay sobre 2 Timóteo 3:16, 17. 14. Obligation of the Sabbath, p. 254, 255. 15. A Treatise of Thirty Controversies. Capítulo 13 A Origem do Domingo como Dia do Senhor Não Pode Ser Traçada Até os Apóstolos Os pais antenicenos[1] são os autores cristãos que surgiram após o período dos apóstolos e antes do Concílio de Niceia, em 325 d.C. Os que pautam sua vida pelas Escrituras inspiradas, não reconhecem nesses pais nenhuma autoridade que lhes dê o direito de mudar qualquer preceito do livro sagrado, ou de acrescentar preceitos novos. Mas aqueles cuja regra de vida é a Bíblia conforme modificada pela tradição, consideram que os primeiros pais da igreja têm autoridade muito parecida, ou igual, à dos escritores inspirados. Eles alegam que os pais conversaram com os apóstolos; ou, quando não, conversaram com pessoas que haviam visto alguns dos apóstolos; ou, pelo menos, viveram poucas gerações depois deles e, assim, aprenderam pela tradição, que envolveu poucas transmissões de pai para filho, qual era a verdadeira doutrina dos apóstolos. Assim, em absoluta certeza, eles suprem a falta de testemunho inspirado a favor do suposto sábado cristão com numerosas citações dos primeiros pais. Que importa se não houver nenhuma menção à mudança do sábado no Novo Testamento? E se não houver nenhum mandamento que ordene descansar do trabalho no primeiro dia da semana? E se não houver nenhum método revelado na Bíblia pelo qual o primeiro dia da semana possa ser imposto usando o quarto mandamento? Eles suprem essas graves omissões das Escrituras com os testemunhos que, segundo eles afirmam, foram escritos por homens que viveram nos 300 anos que se seguiram à época dos apóstolos. Usando essa autoridade, multidões ousam mudar o sábado ordenado no quarto mandamento. Mas junto ao engano em que os homens são enlaçados quando creem que a Bíblia pode ser corrigida pelos pais da igreja, está o engano relacionado àquilo que esses pais, de fato, ensinam. Afirma- -se que os pais dão testemunho claro de que a mudança do sábado por Cristo é um fato histórico, e que eles sabiam que isso era verdade porque haviam conversado com os apóstolos, ou com alguns que tinham falado com eles. Também se declara que os pais chamavam o primeiro dia da semana de "sábado cristão", e que eles não trabalhavam nesse dia em obediência ao quarto mandamento. Todavia, é surpreendente o fato de que cada uma dessas afirmações é falsa. As pessoas que confiam na autoridade dos pais para se afastar do mandamento divino estão tristemente enganadas quanto àquilo que os pais ensinaram. 1. Os pais estão tão longe de testemunhar que os apóstolos lhes disseram que Cristo mudou o sábado, que nem sequer um dentre eles menciona tal mudança. 2. Nenhum deles jamais chamou o primeiro dia de "sábado cristão", aliás, eles nunca o chamaram de "sábado" de qualquer tipo que seja. 3. Eles nunca falaram do domingo como um dia no qual o trabalho comum era pecado, nem defenderam a observância do domingo como um ato de obediência ao quarto mandamento. 4. Logo, a doutrina moderna de que o sábado foi mudado era absolutamente desconhecida nos primeiros séculos da igreja cristã.[2] Todavia, embora nenhuma declaração sobre a mudança do sábado possa ser encontrada nos escritos dos pais dos três primeiros séculos, alega-se que o testemunho deles fornece provas decisivas de que o primeiro dia da semana é o "dia do Senhor" de Apocalipse 1:10. O argumento bíblico de que o dia do Senhor é o sétimo dia e nenhum outro -- pelo fato de que unicamente esse dia é reivindicado nas Sagradas Escrituras como pertencendo, de maneira peculiar, ao Pai e ao Filho -- se encontra no capítulo 11 deste livro, e é absolutamente decisivo. Mas tal argumento é posto de lado sem resposta, e a pretensão do primeiro dia da semana a essa distinta honra de ser o dia do Senhor é justificada usando os escritos dos pais antenicenos da seguinte maneira: Alega-se que o uso do termo "dia do Senhor" em referência ao primeiro dia da semana possa ser traçado retroativamente ao longo dos primeiros três séculos, começando pelos pais que viveram perto do fim do terceiro século, passando aos que os precederam imediatamente e mencionam o primeiro dia, retrocedendo, assim, por passos sucessivos, até chegar àquele que viveu nos tempos de João e foi seu discípulo; e esse discípulo de João chama o primeiro dia da semana de dia do Senhor. Conclui-se, então, que João, ao usar o termo "dia do Senhor", quis se referir ao primeiro dia da semana, mas não definiu seu significado, pois esse dia já era familiarmente conhecido por esse nome na época. Desse modo, usando a história, prova-se que o primeiro dia da semana era o "dia do Senhor" de Apocalipse 1:10; então, por meio de Apocalipse 1:10, comprova-se que o primeiro dia da semana é o dia santo desta dispensação, pois o Espírito da inspiração, mediante o qual João escreveu, não teria chamado o primeiro dia por esse nome caso o mesmo fosse apenas uma instituição humana, e caso o sétimo dia ainda fosse separado por Deus como o dia santo do Senhor. Essa é uma explanação concisa do argumento mais forte em defesa da santidade do primeiro dia que se pode extrair da história eclesiástica. É o argumento usado pelos defensores do primeiro dia, em seus escritos, para provar que o domingo é o dia que João chamou de dia do Senhor. Ele se baseia na declaração de que o termo "dia do Senhor", como expressão para o domingo, começou a ser usado na época dos discípulos de João, e de que esse é o nome pelo qual o dia era comumente conhecido nos tempos de João. Mas essa declaração inteira é falsa. A verdade é que nenhum escritor do primeiro século, nem do segundo século, até 194 d.C., que fala acerca do primeiro dia da semana, chamou-o de dia do Senhor! No entanto, o primeiro dia é mencionado sete vezes pelos autores da Bíblia antes da visão de João em Patmos no dia do Senhor, duas vezes por João em seu evangelho, escrito após seu retorno da ilha, e citado também cerca de 16 vezes por autores eclesiásticos do segundo século antes de 194 d.C.; e não há registro de um único caso sequer em que ele seja chamado de dia do Senhor! Apresentamos, a seguir, todas as menções encontradas na Bíblia. Moisés, no princípio, por inspiração divina, deu ao dia seu nome específico, e, embora se afirme que a ressurreição de Cristo o transformou em dia do Senhor, todos os autores sagrados que se referem ao dia, após esse evento, continuam aderindo ao simples nome de "primeiro dia da semana". Aqui estão todos os textos em que os escritores inspirados mencionam esse dia: Moisés, 1490 a.C.: "Houve tarde e manhã, o primeiro dia" (Gênesis 1:5). Mateus, 41 d.C.: "No findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana" (Mateus 28:1). Paulo, 57 d.C..: "No primeiro dia da semana" (1 Coríntios 16:2). Lucas, 60 d.C.: "Mas, no primeiro dia da semana" (Lucas 24:1). Lucas, 63 d.C.: "No primeiro dia da semana" (Atos 20:7). Marcos, 64 d.C.: "E, muito cedo, no primeiro dia da semana" (Marcos 16:2). "Havendo Ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana" (versículo 9). Após a ressurreição de Cristo e antes da visão de João, em 96 d.C., o dia é mencionado seis vezes por homens inspirados, e, em todos os casos, simplesmente como primeiro dia da semana. Certamente, o primeiro dia da semana não era normalmente conhecido como dia do Senhor antes da época da visão de João. Para dizer a verdade, não era de modo algum chamado por esse nome, nem por nenhum outro equivalente, tampouco existe qualquer registro de que tenha sido separado por autoridade divina como tal. Mas no ano 96, João diz: "Achei-me em espírito, no dia do Senhor" (Apocalipse 1:10). Fica claro que esse deve ser o dia que o Senhor separou para Si e reivindicou como Seu. Essas características verdadeiramente se aplicam ao sétimo dia, mas de modo algum se aplicam ao primeiro dia. Portanto, João não poderia chamar o primeiro dia de dia do Senhor, pois ele não o era. Contudo, se o Espírito de Deus tivesse o propósito, a essa altura, de criar uma nova instituição e chamar um determinado dia de dia do Senhor, que antes nunca havia sido assim designado por Deus, seria necessário que Ele especificasse qual seria esse novo dia. Ele não definiu o termo, provando que não estava dando um nome sagrado a uma nova instituição, mas, sim, falando de um dia bem conhecido e designado por Deus. Mas depois de voltar de Patmos, João escreveu seu evangelho,[3] e nele mencionou o primeiro dia da semana por duas vezes. Vejamos se ele adere ao modo como os outros escritores sagrados se referiram ao dia ou se, ao mencionar o primeiro dia, ele lhe atribui algum nome sagrado. João, em 97 d.C., diz: "No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada" ( João 20:1). "Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana" (versículo 19). Esses textos completam o registro bíblico do primeiro dia da semana. Eles apresentam evidências conclusivas de que, na visão em Patmos, João não recebeu nova luz ordenando-lhe que chamasse o primeiro dia da semana de dia do Senhor. Esse fato, em conjunto com todos os casos anteriores, constitui uma demonstração clara de que o primeiro dia não era nem familiar, nem de modo algum, conhecido como dia do Senhor na época de João. Vejamos agora se o uso do termo "dia do Senhor" como título para o primeiro dia pode ser traçado até João por meio dos escritos dos pais da igreja. Apresentamos a seguir uma explanação concisa do testemunho pelo qual tenta-se fazer que os pais provem que João usou o termo "dia do Senhor" para se referir ao primeiro dia da semana. Uma corrente de sete testemunhas sucessivas, começando com um discípulo de João e se estendendo através de várias gerações, é feita para conectar e identificar o "dia do Senhor" de João com o "dia do Senhor" em referência ao domingo, usado em eras posteriores. Seguem as testemunhas: 1. Afirma-se que Inácio, o discípulo de João, normalmente se referia ao primeiro dia como o dia do Senhor. Ele seria a conexão direta entre os pais e os apóstolos. 2. A epístola de Plínio, 104 d.C., em conexão com Atos dos Mártires, é citada para provar que os mártires, a partir de sua época, eram testados no que se refere à observância do domingo. A pergunta era: "Você guarda o dia do Senhor?" 3. Em seguida, alega-se que Justino Mártir, 140 d.C., falou do domingo como o dia do Senhor. 4. Depois disso, o testemunho de Teófilo de Antioquia, 168 d.C., é destacado como uma poderosa defesa do domingo como dia do Senhor. 5. Então, alega-se que Dionísio de Corinto, 170 d.C., teria dito o mesmo. 6. Em seguida, Melito de Sardes, 177 d.C., teria confirmado o que os outros disseram. 7. Finalmente, Irineu, 178 d.C., que fora discípulo de Policarpo, e este, discípulo do apóstolo João, é citado como um testemunho decisivo a favor do domingo como o dia do Senhor e o sábado cristão. Essas são as sete primeiras testemunhas mencionadas para provar que o domingo é o dia do Senhor. Elas nos levam para perto do fim do segundo século, e formam a corrente de testemunhos que identificam o "dia do Senhor" do apóstolo João com o "dia do Senhor" dominical em tempos posteriores. Autores que defendem o primeiro dia apresentam tais testemunhos como provas definitivas de que o domingo é o "dia do Senhor" das Escrituras; e a igreja cristã aceita esse testemunho, mesmo na ausência do testemunho dos autores inspirados. Mas a insensatez do povo e a perversidade daqueles que o lideram podem ser expressas em uma só frase: o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto e o sétimo desses testemunhos são fraudes indesculpáveis, ao passo que o quinto e o sexto não têm nenhum peso decisivo sobre o caso. Eis os argumentos: 1. Afirma-se que Inácio, a primeira testemunha, deve ter conhecido o domingo como o dia do Senhor, pois ele o chama por esse nome, havendo conversado com o apóstolo João. Contudo, em todos os escritos desse pai, o termo "dia do Senhor" não ocorre nenhuma vez. Além disso, não há nenhuma menção sequer ao primeiro dia da semana! O leitor encontrará uma análise crítica das epístolas de Inácio no capítulo 14 deste livro. 2. A história de que os mártires da época de Plínio, por volta de 104 d.C., e a partir de então, eram testados pela pergunta "Você guarda o [domingo como o] dia do Senhor?" é pura invenção. Nenhuma pergunta semelhante a essa é encontrada nas palavras dos mártires até chegarmos ao quarto século. Mesmo então, a referência não é, de modo nenhum, ao primeiro dia da semana. Tal fato é demonstrado em detalhes no capítulo 15. 3. A obra Bible Dictionary of the American Tract Society [Dicionário Bíblico da Sociedade Norte-Americana de Folhetos], página 379, apresenta a terceira testemunha de que o domingo seria o dia do Senhor na pessoa de Justino Mártir, 140 d.C. Afirma-se que ele chamou o domingo de dia do Senhor citando-o da seguinte maneira: "Justino Mártir observa que 'no dia do Senhor todos os cristãos das cidades ou do campo se reúnem, pois este é o dia em que nosso Senhor ressuscitou'." Mas Justino nunca deu ao domingo o título de "dia do Senhor", nem nenhum outro título sagrado. Estas são suas palavras citadas da maneira correta: "E no dia chamado domingo, todos aqueles que vivem nas cidades ou no campo se reúnem em um lugar, e as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas são lidos enquanto o tempo permitir."[4] Justino fala do dia chamado domingo. Mas para que ele possa ajudar a consolidar o título "dia do Senhor" para o domingo, suas palavras são deliberadamente alteradas. Dessa forma, a terceira testemunha do domingo como dia do Senhor, assim como a primeira e a segunda, é confeccionada por meio de fraude. A quarta fraude, porém, é ainda pior do que as três anteriores. 4. O quarto testemunho em favor do domingo como dia do Senhor aparece em Sabbath Manual [Manual do Sábado], do Dr. Justin Edwards, p. 114: "Teófilo, bispo de Antioquia, disse por volta de 162 d.C.: 'Tanto o costume quanto a razão nos desafiam a honrar o dia do Senhor, uma vez que foi nesse dia que nosso Senhor Jesus completou Sua ressurreição dos mortos'." Mas o Dr. Edwards não se dá ao trabalho de dizer em que lugar se encontram tais palavras nos escritos de Teófilo. Após examinar cuidadosa e minuciosamente cada parágrafo dos escritos de Teófilo por diversas vezes, declaro com toda ênfase que nada do tipo pode ser encontrado em seus escritos. Ele nunca usou a expressão "dia do Senhor" e nem sequer se refere ao primeiro dia da semana. Tais palavras, que foram tão bem formuladas a fim de dar a impressão de que o domingo como dia do Senhor é uma instituição apostólica, foram colocadas em sua boca pela falsidade de alguém. Aí estão quatro fraudes -- os quatro primeiros exemplos do suposto uso do termo "dia do Senhor" com referência ao domingo. Todavia, é exatamente por meio dessas fraudes que o domingo como "dia do Senhor", de eras posteriores, é identificado com o "dia do Senhor" bíblico. Alguém as inventou. O uso que se faz delas revela com clareza o propósito de sua criação, a saber, provar que o título "dia do Senhor" está ligado ao domingo por meio da autoridade apostólica. Com esse propósito em mente, essas fraudes se tornaram uma necessidade. O caso do domingo como dia do Senhor pode ser adequadamente ilustrado pelo mesmo método usado para estabelecer a longa sucessão papal. A autoridade apostólica dos papas como sendo a cabeça da igreja católica depende da possibilidade de identificar Pedro como o primeiro papa, e de comprovar de que a autoridade do apóstolo lhes foi transmitida. Não é difícil remontar sua linhagem a eras antigas, muito embora os primeiros bispos romanos fossem homens modestos, despretensiosos, totalmente diferentes dos papas de tempos posteriores. Mas no que se refere a fazer de Pedro o primeiro de sua linhagem, ligando a autoridade do apóstolo à deles, isso só é possível por meio de testemunhos fraudulentos. O mesmo ocorre com a observância do primeiro dia. Ela pode ser reconhecida como uma festividade já na época de Justino Mártir, 140 d.C., mas, nesse período, o dia não tinha nenhum nome santo, nem reivindicava autoridade apostólica para si. Contudo, como essas prerrogativas precisavam ser obtidas a qualquer custo, a origem do título "dia do Senhor" é ligada ao apóstolo João por meio de uma série de testemunhos fraudulentos, assim como a origem da autoridade dos papas é atribuída ao apóstolo Pedro. 5. O quinto testemunho dessa série vem de Dionísio de Corinto, 170 d.C. Ao contrário dos quatro que já foram examinados, Dionísio realmente usa a expressão "dia do Senhor", embora não diga nada quanto a sua identificação com o primeiro dia da semana. Suas palavras são as seguintes: "Hoje passamos o dia santo do Senhor, no qual lemos sua epístola. Ao lê-la, sempre encheremos a mente de admoestações, e o mesmo ocorrerá quando lermos a que nos foi escrita antes por Clemente."[5] A epístola de Dionísio a Sóter, bispo de Roma, da qual esta frase foi extraída, não se encontra mais disponível. Eusébio, que escreveu no quarto século, nos preservou essa afirmação, mas não temos conhecimento de seu contexto. Os autores que defendem o primeiro dia citam Dioní- sio como a quinta testemunha de que o domingo é o dia do Senhor. Eles afirmam que o domingo era tão familiarmente conhecido como o dia do Senhor nessa época, que Dionísio o chama por esse nome sem sentir a necessidade de parar para explicar o que ele significava. Porém, não é honesto apresentar Dionísio como testemunha do domingo como dia do Senhor, pois ele não faz nenhuma aplicação do termo. Mas alega-se que ele certamente se referiu ao domingo, pois este era o nome comum do dia em sua época, comprovado ainda mais pelo fato de Dionísio não ter se dado ao trabalho de definir o termo que utilizou. E como se sabe que o "dia do Senhor" era o nome corriqueiro do domingo na época de Dionísio? Tudo o que temos à disposição para comprovar esse fato são as quatro testemunhas já analisadas, pois não há nenhum escritor por quase 30 anos após Dionísio que chame o domingo de "dia do Senhor". Portanto, para os defensores do domingo, Dionísio constitui a quinta testemunha em favor do primeiro dia como sendo o dia do Senhor, devido ao fato de que as primeiras quatro testemunhas teriam provado que, em sua época, "dia do Senhor" era o nome comum para o primeiro dia da semana. Entretanto, essas quatro primeiras testemunhas não dão testemunho algum sobre esse fato, a menos que palavras fraudulentas sejam colocadas em sua boca! Dionísio só pode ser uma testemunha a favor do domingo como dia do Senhor se o significado de suas palavras for definido à luz dos quatro testemunhos fraudulentos das gerações anteriores! Alega-se que a expressão "dia do Senhor" deve ter sido muito comumente usada para se referir ao primeiro dia da semana, visto que Dionísio nem mesmo definiu o termo! Porém, aqueles que dizem isso sabem que apenas uma frase de sua epístola permanece até nossos dias, ao passo que o contexto, que certamente determinaria seu significado, desapareceu. Mas Dionísio não usa apenas o termo "dia do Senhor". Ele lança mão de uma expressão ainda mais forte: "o dia santo do Senhor". Mesmo depois de Dionísio, por um longo período, nenhum escritor dá ao domingo o honroso título de "dia santo do Senhor". Todavia, este é justamente o título conferido ao sábado nas Sagradas Escrituras. É também um fato largamente comprovado que, nessa mesma época, o sétimo dia era observado em muitos lugares, sobretudo na Grécia, o país de Dionísio, em um ato de obediência ao quarto mandamento.[6] 6. A sexta testemunha desta notável série é Melito de Sardes, 177 d.C. As quatro primeiras, que nunca usaram o termo "dia do Senhor", são apresentadas por meio de fraude chamando o domingo por esse nome; a quinta, que fala do dia santo do Senhor, é apoiada na força dessas fraudes para fazer referência ao domingo, ao passo que, na sexta, não se pode provar que tenha sido feita alusão a dia algum! Melito escreveu diversos livros, hoje perdidos, cujos títulos nos foram preservados por Eusébio.[7] Um deles intitula-se "On the Lord's Day" [Sobre o Dia do Senhor], conforme consta na tradução de Eusébio para a língua inglesa. É claro que os defensores do primeiro dia afirmam que a obra consiste em um tratado relativo ao domingo, muito embora até aquele momento nenhum escritor houvesse chamado o domingo por esse nome. Contudo, é importante destacar que a palavra dia não faz parte do título do livro de Melito. Tratava-se de um discurso sobre algo relativo ao Senhor -- [ho peri tes kuriakes logos] --, mas a palavra essencial ?µe?a? [hemera], "dia", não aparece. Pode ter sido um tratado sobre a vida de Cristo, pois Inácio relaciona ao título estas palavras: [kuriaken zoen], vida do Senhor. Assim como a frase de Dionísio, a de Melito não pareceria contribuir com a teoria de que o domingo era conhecido como dia do Senhor, se não fosse pela série de fraudes na qual se apoia. 7. A sétima testemunha usada para provar que "dia do Senhor" era o título apostólico para o domingo é Irineu. O Dr. Justin Edwards cita esse escritor da seguinte maneira:[8] "Portanto, Irineu, bispo de Lião, discípulo de Policarpo, que foi companheiro dos apóstolos, em 167 d.C. [deveria ser 178 d.C.], disse que o dia do Senhor era o sábado cristão [o domingo]. Suas palavras são: 'No dia do Senhor, todos nós cristãos guardamos o sábado, meditando na lei e nos regozijando nas obras de Deus'." Esse testemunho é usado com o intuito de dar às palavras de Irineu grande peso e autoridade. Afinal de contas, Irineu foi discípulo do eminente mártir cristão Policarpo, e Policarpo havia sido companheiro dos apóstolos. Logo, muitos consideram o que Irineu diz como algo tão digno de confiança quanto os próprios escritos dos apóstolos. Não é fato que Irineu chamou o domingo de "sábado cristão" e de "dia do Senhor"? Ele não aprendeu essas coisas com Policarpo? E Policarpo não as obteve direto da fonte? Que necessidade temos de mais testemunhas de que o "dia do Senhor" é o nome apostólico para o domingo? Alguém poderia argumentar assim: mesmo que fique comprovado que as seis testemunhas anteriores não são dignas de confiança, não temos aqui alguém que refuta todas as objeções, alguém que recebeu sua doutrina de um homem cuja formação doutrinária proveio diretamente dos apóstolos? Por que, então, essa testemunha não define a autoridade do domingo como dia do Senhor? O primeiro motivo é que nem Irineu, nem ninguém, pode acrescentar ou mudar um preceito da Palavra de Deus por nenhuma razão. Jamais somos autorizados a nos afastar das palavras dos escritores inspirados com base no testemunho de homens que conversaram com os apóstolos, ou melhor, que conversaram com alguém que havia conversado com eles. Mas o segundo motivo é que cada palavra desse suposto testemunho de Irineu é fraudulenta! Além disso, não há nenhuma ocorrência da expressão "dia do Senhor" em suas obras, nem em fragmentos de suas obras preservados por outros autores![9] Com isso, chegamos ao fim das sete testemunhas por meio das quais o "dia do Senhor" da igreja católica é traçado retroativamente e identificado com o "dia do Senhor" da Bíblia! Foi somente em 194 d.C., 16 anos depois do último registro dessas testemunhas, que encontramos o primeiro caso em que o domingo é chamado de dia do Senhor. Em outras palavras, o domingo só é denominado "dia do Senhor" 98 anos depois de João passar por Patmos e 163 anos após a ressurreição de Cristo! Mas será que isso não teria ocorrido devido aos registros desse período terem sido perdidos? De modo nenhum! Pois o dia é mencionado seis vezes, pelos autores inspirados, no período entre a ressurreição de Cristo, em 31 d.C., e a visão de João em Patmos, em 96 d.C., a saber: por Mateus, em 41 d.C., por Paulo, em 57 d.C., por Lucas, em 60 e 63 d.C., e por Marcos, em 64 d.C., e sempre como o "primeiro dia da semana". Após retornar de Patmos, em 97 d.C., João menciona o dia duas vezes e continua a chamá-lo de "primeiro dia da semana". Depois dos tempos de João, o dia é mencionado na assim chamada epístola de Barnabé, provavelmente escrita em 140 d.C., e lá ele é chamado de "o oitavo dia". Em seguida, é mencionado por Justino Mártir em sua Apologia, 140 d.C., uma vez, como "o dia no qual todos nós realizamos nossa assembleia comum", uma vez, como "o primeiro dia, no qual Deus [...] criou o mundo", uma vez, como "o mesmo dia [no qual Cristo] ressuscitou dos mortos"; uma vez, como "o dia depois do de Saturno" e três vezes como "o dia do sol". Em seguida, o dia é mencionado por Justino Mártir em seu Diálogo com Trifão, 155 d.C., no qual ele chama o dia duas vezes de "oitavo dia", uma vez de "o primeiro de todos os dias", uma vez de "o primeiro [...] de todos os dias do ciclo [semanal]" e duas vezes de "o primeiro dia após o sábado". Em seguida, é mencionado por Irineu, 178 d.C., que o chama simplesmente de "o primeiro dia da semana". Depois disso, é citado uma vez por Bardesanes, que o denomina tão somente de "o primeiro da semana". A variedade de nomes usados para mencionar o dia nesse período é impressionante, mas ele nunca é chamado de dia do Senhor, nem designado por nenhum nome santo. Embora o domingo seja mencionado por meio de tantas nomenclaturas diferentes durante o segundo século, é unicamente mais perto do fim daquele século que encontramos o primeiro caso em que ele é chamado de dia do Senhor. Clemente de Alexandria, em 194 d.C., usa esse título com referência ao "oitavo dia". Caso se refira a um dia natural, ele sem dúvida faz alusão ao domingo. Contudo, não fica claro se ele está falando de um dia natural, pois sua explicação dá ao termo um sentido completamente diferente. Suas palavras são as seguintes: "Acerca do dia do Senhor, Platão fala profeticamente no décimo livro da República, usando as seguintes palavras: 'E quando sete dias tiverem se passado para cada um deles na planície, no oitavo dia devem partir e chegar em quatro dias'. A planície deve ser compreendida como a região definida, um local ameno e moderado, a localidade dos piedosos; os sete dias são interpretados como cada movimento dos sete planetas e toda a arte prática que acelera até o ponto final de descanso. Mas após as órbitas vagueantes, a jornada conduz ao Céu, isto é, ao oitavo movimento e dia. E ele diz que almas se vão no quarto dia, destacando a passagem através dos quatro elementos. Mas o sétimo dia é reconhecido como sagrado, não só pelos hebreus, mas também pelos gregos, segundo o qual gira todo o mundo animal e vegetal."[10] Clemente foi originalmente um filósofo pagão, e os estranhos misticismos que ele coloca nas palavras de Platão são apenas modificações de suas antigas crenças pagãs. Embora ele afirme que Platão fala sobre o dia do Senhor, fica claro que ele não considera que seja uma referência a dias literais ou a uma planície literal. Pelo contrário, Clemente interpreta que a planície representa "a região definida, um local ameno e moderado, a localidade dos piedosos", que deve ser uma alusão a sua herança futura. Os sete dias não correspondem a dias literais, mas representam "cada movimento dos sete planetas e toda a arte prática que acelera até o ponto final de descanso". Isso parece representar o período presente de labor que terminará com o descanso dos santos, pois ele acrescenta: "Mas após as órbitas vagueantes (representadas pelos sete dias de Platão), a jornada conduz ao Céu, isto é, ao oitavo movimento e dia". Logo, os sete dias aqui correspondem ao período da peregrinação cristã, e o oitavo dia que Clemente menciona nesta passagem não é o domingo, mas o próprio Céu! Aqui se encontra o primeiro uso de "dia do Senhor" como nome para o oitavo dia, mas esse oitavo dia é místico e simboliza o Céu! No entanto, Clemente usa a expressão "dia do Senhor" mais uma vez, que, nesse caso, representa claramente não um dia literal, mas, sim, todo o período de nossa vida regenerada; pois ele a utiliza ao falar do jejum, e define jejum como a abstinência de prazeres pecaminosos, não apenas de atos, -- usando a distinção que o próprio Clemente faz -- como proibidos pela lei, mas também em pensamentos, segundo a proibição do evangelho. Tal jejum se aplica à vida inteira do cristão. Clemente descreve o que está envolvido na observância desse dever, segundo o evangelho, da seguinte forma: "Em cumprimento ao preceito, de acordo com o evangelho, o indivíduo guarda o dia do Senhor quando abandona uma disposição perversa e assume a do gnóstico, glorificando a ressurreição do Senhor em si mesmo."[11] Essa declaração nos informa não só seu conceito de jejum, mas também o que ele pensava sobre a celebração do dia do Senhor e sobre a glorificação da ressurreição de Cristo. Segundo Clemente, essas celebrações não implicavam em prestar honra especial ao domingo, mas, sim, em abandonar a disposição perversa e assumir a do gnóstico, seita cristã à qual ele pertencia. Fica claro que esse tipo de observância do dia do Senhor não está ligado a nenhum dia específico da semana, mas abrange toda a vida do cristão. O dia do Senhor de Clemente não era um dia literal, mas um dia místico que englobava, de acordo com este segundo uso do termo, toda a vida regenerada do cristão; e, segundo o primeiro uso do termo, envolvia também a vida futura no Céu. Tal ponto de vista é confirmado por sua declaração acerca do contraste entre a seita gnóstica, à qual ele pertencia, e os demais cristãos. Ele diz que o culto dos cristãos gnósticos "não [ocorria] em dias especiais, como fazem alguns, mas realizando tais coisas continuamente ao longo de toda a nossa vida". Ele ainda explica que a adoração do gnóstico acontecia "não em um dia específico, ou em determinado templo, ou em certas festas e em dias predeterminados, mas, sim, ao longo de toda sua vida".[12] Sem dúvida, é digno de nota que o primeiro escritor a fazer referência ao dia do Senhor como o oitavo dia não use a expressão para aludir a um dia literal, mas místico. Esse dia não corresponde ao domingo, mas à vida cristã ou ao próprio Céu! Essa doutrina do dia do Senhor perpétuo é encontrada em Tertuliano, e é claramente defendida por Orígenes, os próximos dois escritores a usar o termo "dia do Senhor". Mas o dia do Senhor místico ou perpétuo de Clemente mostra que ele não fazia a menor ideia de que João, ao se referir ao dia do Senhor, tinha em mente o domingo, pois, se esse fosse o caso, ele deveria tê-lo reconhecido como o verdadeiro dia do Senhor, e como o dia especial de adoração dos gnósticos. Tertuliano, em 200 d.C., é o próximo autor a usar o termo "dia do Senhor". Ele define seu significado e atrela o nome ao dia da ressurreição de Cristo. Kitto[13] afirma que esse é "o mais antigo caso autêntico" em que o nome é usado com esse significado. Provamos que isso é verdade analisando cada autor, a menos que o leitor consiga descobrir alguma referência ao domingo no oitavo dia místico de Clemente. As palavras de Tertuliano são as seguintes: "Nós, porém (assim como recebemos), somente no dia do Senhor da ressurreição (solo die domínico resurrexionis) devemos nos guardar, não só de nos ajoelhar, mas de toda postura e ocupação de preocupação, pospondo até mesmo nossos negócios, para não darmos lugar ao Diabo. De maneira semelhante também no período do Pentecostes, o qual distinguimos pela mesma solenidade de exultação."[14] Tertuliano usa o termo "dia do Senhor" outras duas vezes, definindo-o mais uma vez, nessa ocasião chamando-o de "oitavo dia". Em cada um desses dois casos, ele coloca o dia do Senhor no mesmo patamar da festa católica do Pentecostes, assim como no exemplo já citado. Como segundo exemplo do uso do termo "dia do Senhor" por Tertuliano, citamos uma parte da repreensão que ele faz a seus irmãos por se misturarem com os pagãos em suas festas: "Oh! Encontramos nas nações melhor fidelidade a suas próprias seitas, que não reivindica para si nenhuma solenidade dos cristãos! Nem no dia do Senhor, nem no Pentecostes, mesmo se os tivessem conhecido, teriam eles tomado parte conosco, pois temeriam se parecer cristãos. Nós, porém, não nos preocupamos se pareceremos pagãos! Sempre que há oportunidade de condescender com a carne, vocês a agarram. Não direi os seus próprios dias, mas outros também; pois para os pagãos, cada dia de festa acontece apenas uma vez por ano; já vocês têm um dia de festa a cada oitavo dia."[15] Sem dúvida, a festa que Tertuliano menciona que ocorria a cada oitavo dia é a que ele havia acabado de chamar de dia do Senhor. Embora em outro texto[16] ele afirme que a festa do domingo era observada pelo menos por parte dos pagãos, aqui ele diz que o dia do Senhor era desconhecido dos pagãos sobre os quais está escrevendo. Trata-se de um forte indício de que a festividade do domingo tinha começado a ser chamada de dia do Senhor havia pouco tempo. Mas ele ainda fala uma outra vez sobre o dia do Senhor: "Com a mesma frequência com que o aniversário ocorre, fazemos ofertas pelos mortos como homenagens natalícias. Consideramos ilícito jejuar ou se ajoelhar em adoração no dia do Senhor. Nós nos alegramos no mesmo privilégio também desde a Páscoa até o Pentecostes. Ficamos contristados quando algum pão ou vinho, mesmo que seja nosso, é lançado ao chão. A cada passo e movimento avante, a cada entrada e saída, quando nos vestimos e nos calçamos, ao tomar banho, ao nos sentar à mesa, ao acender as lâmpadas, ao repousar, ao sentar, em todas as atividades comuns da vida diária, fazemos na testa o sinal [da cruz]. "Se vocês insistirem em encontrar ordens bíblicas claras para estas e outras regras, não acharão nenhuma. A tradição lhes será apresentada como sua originadora, o costume como aquilo que as fortalece, e a fé como o elemento que conduz à sua observância. Que a razão apoiará a tradição, o costume e a fé, vocês mesmos perceberão, ou aprenderão de quem já o percebeu."[17] Essa citação encerra os casos em que Tertuliano usa o termo "dia do Senhor", com exceção de uma mera alusão ao mesmo em seu discurso sobre o jejum. É notável que, em cada um dos três casos, ele o iguale à festa do Pentecostes. Ele também o associa diretamente com as "ofertas pelos mortos" e com o uso do "sinal da cruz". Quando lhe perguntam qual é a autoridade bíblica para tais práticas, ele não diz: "Temos a autoridade de João para o dia do Senhor, mas nada além da tradição para o sinal da cruz e para as ofertas pelos mortos". Pelo contrário, ele diz que não há ordem bíblica para nenhuma delas. Se alguém perguntar: Como o título "dia do Senhor" poderia ter sido dado ao domingo exceto pela tradição derivada dos apóstolos? A resposta apropriada é: Qual foi a origem das ofertas pelos mortos? E como o sinal da cruz passou a ser usado pelos cristãos? O título "dia do Senhor" como nome para o domingo não é mais apostólico do que o sinal da cruz e as ofertas pelos mortos, pois ele, em nenhum sentido, está mais próximo dos tempos dos apóstolos do que esses erros tão claros da grande apostasia. Clemente ensinou sobre um dia do Senhor perpétuo; Tertuliano defendia um ponto de vista semelhante, afirmando que os cristãos deveriam celebrar um sábado perpétuo, não se abstendo do trabalho, mas, sim, do pecado.[18] O método de observância do domingo defendido por Tertuliano será analisado posteriormente. Orígenes, em 231 d.C., é o terceiro escritor antigo a chamar "o oitavo dia" de dia do Senhor. Ele foi discípulo de Clemente, o primeiro escritor a fazer tal aplicação. Portanto, não é de admirar que ele ensine a doutrina de seu mestre sobre o dia do Senhor perpétuo, apresentando-a de maneira mais precisa que o próprio Clemente. Orígenes, depois de afirmar que Paulo ensina que todos os dias são iguais, diz o seguinte: "Caso nos seja dirigida objeção a esse respeito, sob o argumento de que estamos acostumados a observar determinados dias, como por exemplo o dia do Senhor, a Preparação, a Páscoa ou o Pentecostes, preciso responder que, para o cristão perfeito, que em pensamento, palavra e ação está sempre servindo a seu Senhor natural -- Deus, a Palavra --, todos os dias são do Senhor, e ele está sempre guardando o dia do Senhor."[19] Isso foi escrito cerca de 40 anos depois de Clemente propor sua doutrina do dia do Senhor. O cristão imperfeito poderia honrar um "dia do Senhor" que estava no mesmo patamar da Preparação, da Páscoa e do Pentecostes, mas o cristão perfeito observava o verdadeiro "dia do Senhor", que abrangia todos os dias de sua vida regenerada. Orígenes usa o termo "dia do Senhor" para falar de dois dias diferentes: (1) um dia natural, que, em sua opinião, estava no mesmo patamar da Preparação, da Páscoa e do Pentecostes; (2) um dia místico, que, assim como na doutrina de Clemente, corresponde a todo o período da vida do cristão. O dia místico, a seu ver, era o verdadeiro dia do Senhor. Conclui-se, portanto, que ele não cria que o domingo era o dia do Senhor por designação apostólica. Contudo, após a época de Orígenes, o termo "dia do Senhor" se tornou o nome comum para o suposto oitavo dia. Estes três homens, no entanto, a saber, Clemente, Tertuliano e Orígenes, os primeiros a fazer essa aplicação, além de não afirmar que o nome foi dado ao domingo pelos apóstolos, indicam claramente que esse não era o ponto de vista deles. As ofertas pelos mortos e o uso do sinal da cruz são práticas tão distantes dos tempos apostólicos quanto o uso da expressão "dia do Senhor" para designar o domingo. Os três costumes, porém, tiveram uma origem em comum, conforme demonstram as próprias palavras de Tertuliano. O ponto de vista de Orígenes em relação ao sábado e à festa do domingo será apresentado posteriormente. Essa é a história da reivindicação do título de "dia do Senhor" para o domingo. O primeiro exemplo de seu uso, caso se suponha que Clemente se refere ao domingo, só ocorreu quase um século após a visão de João em Patmos. Os primeiros que chamaram o domingo de dia do Senhor não tinham qualquer ideia de que ele tinha sido assim designado por ordem divina ou apostólica, conforme deixam claro. Em contraste marcante com o domingo como dia do Senhor, encontra-se a festa católica da Páscoa. Embora ela não seja ordenada no Novo Testamento, sua origem remonta a homens que disseram ter recebido instruções dos apóstolos a respeito dessa festa! Assim, as igrejas da Ásia Menor passaram a observar a festa por causa de Policarpo, que, conforme citado por Eusébio, "observou-a com João, discípulo de nosso Senhor, e com o restante dos apóstolos com quem ele se associava".[20] Sócrates diz que essas igrejas defendiam que tal observância "lhes fora transmitida pelo apóstolo João".[21] Anatólio afirma que as igrejas asiáticas receberam "a regra de uma autoridade incontestável, a saber, o evangelista João".[22] Mas isso não é tudo. As igrejas ocidentais, encabeçadas pela igreja de Roma, também eram fervorosas observadoras da festa da Páscoa. Assim como as igrejas orientais, elas também traçavam a origem da festa aos apóstolos. Sócrates diz o seguinte a respeito delas: "Os romanos e as pessoas do Ocidente nos garantem que seu costume surgiu com os apóstolos Pedro e Paulo".[23] Mas ele afirma que tais indivíduos não podem provar tal fato por testemunho escrito. Sozomeno, comentando sobre os romanos e sua relação com a festa da Páscoa, afirma que eles "nunca se desviaram de seu costume original a esse respeito, e que a prática lhes foi transmitida pelos santos apóstolos Pedro e Paulo".[24] Se a doutrina de que o domingo é o dia do Senhor pudesse ser traçada retroativamente até chegar a um homem que afirmava tê-lo celebrado junto com João e outros apóstolos, quão seguramente isso seria citado como prova inequívoca de que o dia era uma instituição apostólica! Todavia, é possível fazer isso com relação à festa da Páscoa! No entanto, um único fato, no caso dessa própria festa, é suficiente para nos ensinar sobre a insensatez de se confiar na tradição. Policarpo afirmava que João e outros apóstolos o ensinaram a observar a festa no 14º dia do primeiro mês, independente do dia da semana em que caísse, ao passo que os anciãos da igreja de Roma declaravam que Pedro e Paulo lhes ensinaram que ela deveria ser celebrada no domingo após a Sexta-feira da Paixão![25] O "dia do Senhor" da igreja católica não chega mais próximo de João do que o ano 194 d.C., ou talvez, para ser mais preciso, 200 d.C. Além disso, os que utilizaram o nome "dia do Senhor" nessa época demonstraram claramente não crer que este fosse o dia do Senhor por designação apostólica. A fim de ocultar esses fatos cruciais -- com a aparente intenção de conectar o título à época de Inácio, discípulo de João, e assim estabelecer uma correspondência entre o domingo e o "dia do Senhor" mencionado por aquele apóstolo -- uma série de fraudes notáveis foram criadas, as quais tivemos a oportunidade de analisar. Mas mesmo que o domingo como dia do Senhor chegasse até Inácio, discípulo de João, o dia não estaria, em sentido algum, mais próximo de ser uma instituição apostólica do que a festa católica da Páscoa, que pode ser traçada até Policarpo, um outro discípulo de João, que afirmou tê-la recebido do próprio João! Notas: 1. É de nossa autoria uma pequena obra intitulada The complete Testimony of the Fathers of the first Three Centuries concerning the Sabbath and First Day, na qual são apresentadas todas as citações dos pais que apresentam suas opiniões sobre o sábado e o primeiro dia, com exceção de Orígenes, pois não nos foi possível ter acesso a algumas de suas obras na época. O livreto pode ser adquirido junto aos editores desta obra. A fim de economizar espaço no presente livro, será feita aqui uma declaração geral da doutrina dos pais, com citações breves de suas palavras. Mas no livreto The Complete Testimony of the Fathers, cada passagem é apresentada nas palavras dos próprios pais, e recomendo ao leitor a consulta a essa obra. 2. Aqueles que se opuserem a essas declarações estão convidados a apresentar as palavras dos pais que as modifiquem ou desaprovem. O leitor que não tem acesso aos escritos dos pais pode consultar o livreto mencionado na nota anterior, no qual se encontra o testemunho completo deles. 3. Ver testemunhos sobre esse fato no capítulo 11, nota de rodapé 77. 4. Justino Mártir, First Apology, cap. 67. 5. Eusébio, Eccl. Hist., livro 4, cap. 23. 6. Ver o capítulo 18 desta obra. 7. Ver Eusébio, Ecclesiastical History, livro 4, cap. 26. 8. Sabbath Manual, p. 114. 9. Ver o capítulo 16 desta obra; ver também Testimony of the Fathers, p. 44-52. 10. The Miscellanies of Clement, livro 5, cap. 14. 11. The Miscellanies of Clement, livro 7, cap. 12; Testimony of the Fathers, p. 61. 12. The Miscellanies of Clement, livro 7, cap. 7; Testimony of the Fathers, p. 62. 13. Kitto, Cyclopedia of Biblical Literature, edição original, verbete "Lord's Day". 14. Tertullian on Prayer, cap. 23; Testimony of the Fathers, p. 67. 15. On Idolatry, cap. 14; Testimony of the Fathers, p. 66. 16. Ad Nationes, livro 1, cap. 13; Testimony of the Fathers, p. 70. 17. De Corona, seções 3 e 4; Testimony of the Fathers, p. 68, 69. 18. An Answer to the Jews, cap. 4; Testimony of the Fathers, p. 73. 19. Against Celsus, livro 8, cap. 22; Testimony of the Fathers, p. 87. 20. Eusébio, Eccl. Hist., livro 5, cap. 24. 21. Sócrates, Eccl. Hist., livro 5, cap. 22. 22. Anatólio, Tenth Fragment. 23. Sócrates, Eccl. Hist., livro 5, cap. 22. 24. Sozomeno, Eccl. Hist., livro 7, cap. 18; ver também Mosheim, livro 1, séc. 2, parte 2, cap. 4, seção 9. 25. Sócrates, Eccl. Hist., livro 5, cap. 22; McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 3, p. 13; Bingham, Antiquities, p. 1149. Capítulo 14 As Primeiras Testemunhas a Favor do Domingo Oprimeiro dia da semana é quase que universalmente observado como o sábado cristão, mas resta-nos ainda investigar a origem dessa instituição. Ela é apresentada por dois proeminentes historiadores da igreja. Mas eles se contradizem de maneira tão direta que se torna uma questão de curioso interesse determinar qual deles diz a verdade. Mosheim escreve o seguinte acerca do primeiro século: "Todos os cristãos unanimemente separavam o primeiro dia da semana, no qual o Salvador triunfantemente ressuscitou dos mortos, para a solene celebração de adoração pública. Esse costume piedoso, derivado do exemplo da igreja de Jerusalém, baseava-se na ordem expressa dos apóstolos, que consagraram esse dia para o mesmo propósito santo, e era universalmente seguido em todas as igrejas cristãs, conforme aparece no testemunho uníssono dos autores mais confiáveis."[1] Leiamos agora o que Neander, o mais distinto de todos os historiadores da igreja, diz acerca da autoridade apostólica em relação à observância do domingo: "A festa do domingo, assim como todas as outras, sempre foi uma mera ordenança humana, e não era intenção dos apóstolos estabelecer uma ordem divina a esse respeito, e nem da igreja apostólica primitiva transferir as leis do sábado para o domingo. É possível que, ao fim do segundo século, uma falsa ordenança dessa natureza tenha começado a surgir, pois, ao que tudo indica, houve homens, nesse período, que passaram a considerar pecado trabalhar no domingo."[2] Como determinar qual desses historiadores estava certo? Nenhum deles viveu na era apostólica da igreja. Mosheim foi um escritor do século 18 e Neander, do século 19. Necessariamente, portanto, sua fonte de informação sobre o assunto eram os escritos daquele período que foram preservados. Eles contêm todo o testemunho que pode ser usado para definir a questão. Temos, em primeiro lugar, os escritos inspirados do Novo Testamento; em segundo, as produções bem- -conceituadas de escritores daquela era que, supostamente, mencionam o primeiro dia, a saber, 1) a epístola de Barnabé; 2) a carta de Plínio, governador da Bitínia, ao imperador Trajano e 3) a epístola de Inácio. Esses são todos os escritos datados da primeira metade do segundo século -- época tardia o suficiente para abranger a declaração de Mosheim -- que podem ser apresentados como pelo menos fazendo alguma referência ao primeiro dia da semana. As questões que precisam ser definidas por esse testemunho são: os apóstolos separaram o domingo como dia de culto a Deus (como afirma Mosheim)? Ou as evidências demonstram que a festa do domingo, assim como todas as outras, sempre foi uma mera ordenança humana (conforme afirma Neander)? Não há dúvida de que o Novo Testamento não contém nenhuma ordem estabelecendo o domingo como celebração solene de adoração pública. É igualmente verdade que não há exemplo algum, por parte da igreja de Jerusalém, em que se possa fundamentar tal observância. Logo, o Novo Testamento não fornece nenhum apoio[3] à declaração de Mosheim. As três epístolas que chegaram até nossos dias, e que supostamente foram escritas na era apostólica, ou logo após a mesma, serão as próximas analisadas. Esses são os únicos registros restantes que abrangem um período mais extenso do que o englobado pela declaração de Mosheim. Ele se refere apenas ao primeiro século; mas nós reunimos todos os autores desse século e do século seguinte, antes da época de Justino Mártir, 140 d.C., que possam ter mencionado o primeiro dia da semana. Desse modo, o leitor tem acesso a todas as informações sobre o ponto em questão. A epístola de Barnabé diz o seguinte em favor da observância do primeiro dia: "Por fim, Ele lhes disse: não consigo suportar suas luas novas e seus sábados. Reflitam no que Ele quer dizer com isso. Os sábados que vocês agora guardam não Me são aceitáveis, mas sim aqueles que Eu fiz. Quando Eu descansar de todas as coisas, darei início ao oitavo dia, isto é, ao começo do outro mundo. Por isso guardamos o oitavo dia com alegria, no qual Jesus ressuscitou dos mortos; e, tendo Se manifestado a Seus discípulos, subiu ao Céu."[4] Seria razoável concluir que Mosheim confiaria nesse testemunho como vindo de um apóstolo, considerando-o mais apto para defender a santidade do domingo do que qualquer outra passagem examinada por nós até aqui. Todavia, ele reconhece claramente que essa epístola é espúria: "A epístola de Barnabé foi produzida por algum judeu que muito provavelmente viveu nesse século, e cujas modestas habilidades e apego supersticioso a fábulas judaicas mostram, apesar da retidão de suas intenções, que ele deve ter sido uma pessoa bem diferente do verdadeiro Barnabé, companheiro de São Paulo."[5] Em outra obra, Mosheim diz o seguinte acerca dessa epístola: "No que se refere à sugestão de alguns, a de que a carta foi escrita pelo mesmo Barnabé que foi amigo e companheiro de São Paulo, a inverdade de tal compreensão fica clara por meio da própria carta. Várias das opiniões e interpretações das Escrituras que ela contém possuem tão pouca verdade, dignidade ou força que seria impossível achar que pudessem ter procedido da pena de um homem instruído por Deus."[6] Neander diz o seguinte sobre a epístola: "É impossível reconhecer que essa epístola foi escrita por Barnabé, o homem digno de ser companheiro dos labores apostólicos de São Paulo."[7] O professor Stuart dá um testemunho semelhante: "Não duvido de que um homem chamado Barnabé tenha escrito essa epístola; mas que foi o companheiro escolhido por Paulo devo duvidar, assim como o fazem muitos outros."[8] O Dr. Killen, professor de história eclesiástica da assembleia geral da Igreja Presbiteriana da Irlanda, usa as seguintes palavras: "O livro conhecido como 'Epístola de Barnabé' provavelmente foi escrito em 135 d.C. Parece que foi produção de um converso do judaísmo que se agradava, de maneira especial, em fazer interpretações alegóricas das Escrituras."[9] O professor Hackett dá o seguinte testemunho: "A carta ainda existente, conhecida como epístola de Barnabé já no segundo século, não pode ser defendida como genuína."[10] Milner diz o seguinte a respeito da renomada epístola de Barnabé: "É uma grande injúria defender que a epístola que recebe esse nome é de sua autoria."[11] Kitto declara sobre a obra: "A suposta epístola de Barnabé é provavelmente uma falsificação do segundo século."[12] A obra Encyclopedia of Religious Knowledge [Enciclopédia de Conhecimento Religioso], ao falar sobre o Barnabé do Novo Testamento, declara: "Ele não poderia ser o autor de uma obra tão cheia de alegorias forçadas e explicações extravagantes e injustificadas das Escrituras, junto com as histórias sobre bestas e fantasias afins que constituem a primeira parte dessa epístola."[13] Eusébio, o mais remoto historiador da igreja, coloca a epístola em sua lista de livros espúrios. Ele diz: "Dentre os livros que devem ser considerados espúrios estão: o livro chamado 'Os Atos de Paulo', o chamado 'Pastor' e o 'Apocalipse de Pedro'. Além desses, há também os livros chamados: 'Epístola de Barnabé' e 'As Instituições dos Apóstolos.'"[14] O senhor William Domville afirma o seguinte: "Mas a epístola não foi escrita por Barnabé. Ela não é meramente indigna dele -- ela lhe seria uma desgraça e, o que é muito pior, seria uma desgraça para a religião cristã, caso fosse a produção literária de um dos mestres reconhecidos dessa religião nos tempos dos apóstolos. Caso seu autor fosse, de fato, Barnabé, a evidência para a origem divina do cristianismo ficaria gravemente prejudicada. Visto que a epístola não é de Barnabé, o documento, no que se refere à questão do sábado, nada mais é do que o testemunho de algum escritor desconhecido sobre a prática da observância do domingo, por alguns cristãos de uma comunidade desconhecida, em um período incerto da era cristã, sem fundamento suficiente para se crer que tal período tenha sido o primeiro século."[15] Coleman dá o seguinte testemunho: "A epístola de Barnabé, que recebe o honrado nome do companheiro de Paulo em seus esforços missionários, é claramente espúria. Ela está repleta de narrativas imaginárias, interpretações místicas e alegóricas do Antigo Testamento e fantasias extravagantes. Os eruditos concordam, de modo geral, que ela não possui autoridade nenhuma."[16] Como exemplo das coisas absurdas e irracionais que a epístola contém, citamos esta passagem: "Não comerás a hiena, isto é, mais uma vez, não sejas adúltero, nem alguém que corrompa os outros, nem sejas semelhante a eles. E por quê? Porque essa criatura muda de sexo todos os anos; às vezes, é macho, às vezes, fêmea."[17] Ao permitir que historiadores favoráveis ao primeiro dia deem o veredito sobre essa questão, estamos autorizados a considerar essa epístola uma farsa. E quem quer que leia o nono capítulo -- que nem vale a pena citar -- reconhecerá a justiça dessa conclusão. Essa epístola é o único escrito supostamente produzido no primeiro século, além do Novo Testamento, que faz referência ao primeiro dia. Ela não oferece nenhuma evidência da observância do domingo, fato que é aceito até mesmo por Mosheim. O próximo documento que chama nossa atenção é a carta de Plínio, governador romano da Bitínia, ao imperador Trajano, escrita em torno de 104 d.C. Ele diz o seguinte sobre os cristãos de sua província: "Eles afirmaram que toda sua culpa ou todo seu erro se resumia no fato de que se reuniam em um certo dia estabelecido, antes do amanhecer, e se dirigiam a Cristo, como a algum deus, por meio de uma oração, comprometendo-se com juramento solene, não a realizar qualquer desígnio mau, mas, sim, a nunca cometer fraude, roubo ou adultério, nunca proferir palavras falsas, nem negar um bem a eles confiado quando chamados a entregá-lo. Depois disso, era costume deles se separar e então se reunir novamente para comer juntos uma refeição inofensiva."[18] Essa epístola de Plínio certamente não oferece nenhum apoio à observância do domingo. Tal fato é apresentado com franqueza por Coleman. Ele diz o seguinte a respeito do trecho: "Esta declaração evidencia que esses cristãos guardavam um dia como santo, mas não esclarece se era o último ou o primeiro da semana."[19] Charles Buck, proeminente autor guardador do primeiro dia, não encontrou nenhuma evidência da observância do primeiro dia nessa epístola, conforme demonstra a tradução indefinida que ele faz. Ele a cita da seguinte maneira: "Tais pessoas declaram que seu único crime, caso sejam culpadas, consiste nisto: de que em certos dias, eles se reúnem antes do nascer do sol, cantando alternadamente louvores a Cristo como Deus."[20] Tertuliano, que escreveu em 200 d.C., diz o seguinte sobre essa declaração de Plínio: "Ele não encontrou nada nos cultos deles, a não ser reuniões, no início da manhã, para cantarem hinos a Cristo e a Deus, e para fazerem, em conjunto, a solene promessa de que, em seu estilo de vida, seriam fiéis a sua religião, proibindo o assassinato, o adultério, a desonestidade e outros crimes."[21] Tertuliano, sem dúvida, não encontrou nessa declaração nenhuma referência à festa do domingo. W. B. Taylor fala o seguinte sobre esse dia estabelecido: "Como o dia de sábado parece ter sido tão comumente observado nessa data quanto o dia do sol (talvez até com mais frequência), é tão provável que esse 'dia estabelecido' mencionado por Plínio seja o sétimo dia, quanto que seja o primeiro dia, embora geralmente se suponha que se trata do primeiro dia."[22] Supor justamente o ponto que deveria ser provado não é novidade nas evidências analisadas até aqui para apoiar a observância do primeiro dia. Embora Mosheim encontre nessa expressão de Plínio um forte apoio ao domingo, ele fala o seguinte acerca da opinião de outro erudito: "B. Just. Hen. Boehmer realmente gostaria que entendêssemos que esse dia era o mesmo do sábado judaico."[23] Esse testemunho de Plínio foi escrito alguns anos depois do tempo dos apóstolos. Ele diz respeito a uma igreja que provavelmente fora fundada pelo apóstolo Pedro. (1 Pedro 1:1)[24] Sem dúvida, é muito mais provável que essa igreja, apenas 40 anos após a morte de Pedro, continuasse a guardar o quarto mandamento, em vez de observar um novo dia que jamais fora sancionado por autoridade divina. Deve-se admitir que esse testemunho de Plínio nada prova em apoio à observância do domingo, pois não especifica qual dia da semana era guardado. As epístolas de Inácio de Antioquia, tão citadas a favor da observância do primeiro dia, serão o foco de nossa atenção a seguir. Ele é representado como tendo dito o seguinte: "Portanto, se eles, que foram criados nessas antigas leis, passaram, não obstante, à novidade de esperança, não mais observando os sábados, mas guardando o dia do Senhor, no qual nossa vida também é erguida por Ele, a quem alguns ainda negam, e por intermédio de Sua morte (mistério este pelo qual fomos levados a crer -- razão pela qual esperamos ser considerados discípulos de Jesus Cristo, nosso único mestre), [pergunto:] como então seríamos capazes de viver de maneira diferente Dele, cujos próprios profetas, sendo de fato discípulos, O aceitaram, pelo Espírito, como seu Mestre?"[25] Dois fatos importantes acerca dessa citação são dignos de menção especial: (1) grandes autoridades que defendem o primeiro dia reconhecem que as epístolas de Inácio são espúrias; e as epístolas que alguns desses eruditos excetuam como sendo possivelmente genuínas não incluem essa carta aos magnésios, da qual foi extraída a citação acima, nem dizem nada a respeito da observância do primeiro dia; (2) a epístola aos magnésios não diria nada acerca de dia nenhum se a palavra "dia" não tivesse sido inserida, de maneira fraudulenta, pelo tradutor! A fim de apoiar o primeiro desses dois fatos, segue-se o testemunho do Dr. Killen: "No século 16, quinze cartas foram apresentadas como sendo uma respeitável antiguidade e oferecidas ao mundo como produções do pastor de Antioquia. Os eruditos se recusaram a aceitá-las nos termos propostos, e, logo de início, oito delas foram reconhecidas como falsificações. No século 17, as outras sete cartas restantes reapareceram mais uma vez da obscuridade, um pouco alteradas, afirmando ser obras de Inácio. De novo, críticos com discernimento se recusaram a reconhecer tais pretensões. Mas a curiosidade foi despertada por essa segunda aparição, e muitos expressaram o ávido desejo de ter acesso às próprias epístolas. Grécia, Síria, Palestina e Egito foram revirados em busca delas, e, por fim, três cartas foram encontradas. A descoberta despertou a felicidade geral. Confessou-se que quatro das epístolas tão tardiamente reconhecidas como genuínas eram apócrifas; e afirmou-se com ousadia que as três então disponíveis estavam acima de toda e qualquer contestação. Mas a verdade se recusa a fazer transigências e severamente repudia os que clamam por sua aprovação. As evidências internas dessas três epístolas dão provas abundantes de que, assim como os três últimos livros de Sibila, elas são apenas os últimos artifícios de uma grande mentira."[26] O mesmo autor expressa a opinião de Calvino da seguinte forma: "É grande prova da sagacidade do eminente Calvino o fato de ele, mais de trezentos anos atrás, ter dado uma sentença enérgica de condenação a essas epístolas de Inácio."[27] Acerca das três epístolas de Inácio ainda consideradas genuínas, o professor C. F. Hudson diz o seguinte: "Inácio de Antioquia foi martirizado provavelmente em 115 d.C. Das oito epístolas atribuídas a ele, três são genuínas, a saber, as endereçadas a Policarpo, aos efésios e aos romanos."[28] Nota-se que as três epístolas mencionadas aqui como sendo genuínas não incluem a carta da qual a citação favorável ao domingo é extraída. É também um fato que elas não contêm alusão nenhuma ao domingo. O senhor William Domville, escritor antissabatista, usa as seguintes palavras: "Todos os que são familiarizados com tais questões estão cientes de que as obras de Inácio foram mais interpoladas e corrompidas do que as de qualquer outro dos antigos pais. Além disso, alguns escritos a ele atribuídos são totalmente espúrios."[29] Robinson, proeminente escritor batista da Inglaterra, do século 18, exprime a seguinte opinião acerca das epístolas atribuídas a Inácio, Barnabé e outros: "Se algum dos escritos atribuídos aos chamados "pais apostólicos", como Inácio, mestre em Antioquia, Policarpo, em Esmirna, Barnabé, que era meio judeu, e Hermas, irmão de Pio, mestre em Roma, for genuíno -- algo extremamente duvidoso -- eles só provam a piedade e a falta de cultura desses bons homens. Alguns desses escritos são piores -- e os melhores dentre eles não é melhor -- do que as epístolas religiosas da classe mais inculta dos batistas e quakers da Inglaterra, na época da guerra civil. Tanto Barnabé quanto Hermas mencionam o batismo, mas esses dois livros são fantasias desprezíveis de gênios desvairados e irregulares."[30] Temos provas suficientes para duvidar das epístolas de Inácio. A citação a favor do domingo não foi extraída de nenhuma das três epístolas ainda consideradas genuínas. Deve-se observar, ainda, que ela nada diria em prol de qualquer dia se não fosse por uma liberdade extraordinária, para não dizer fraude, da qual o tradutor lançou mão ao acrescentar no texto a palavra dia. Kitto descreve tal fato com precisão indiscutível. Sua obra Cyclopedia é muito bem reconhecida entre os eruditos que defendem o primeiro dia. Ele apresenta, da seguinte forma, o original de Inácio com comentários, e em seguida uma tradução: "Devemos nos atentar a outra passagem [...] que diz respeito ao dia do Senhor, embora certamente não faça nenhuma menção a ele. Ela aparece na epístola de Inácio aos magnésios (cerca de 100 d.C.). O trecho inteiro é admitidamente obscuro e pode estar corrompido. [...] A passagem é esta:[31] "Muitos comentaristas presumem (não se sabe por qual motivo) que por [kuriaken -- do Senhor] deve-se entender a palavra [hemeran -- dia]. [...] Analisemos, porém, a passagem como ela é. O problema da frase é a falta de um substantivo ao qual possa se referir. Tal problema, longe de ser remediado, fica ainda mais evidente pela introdução de [hemera, ou seja, 'dia']. Se considerarmos que [kuriaké zoé] significa simplesmente 'a vida do Senhor', tendo um significado mais pessoal, com certeza ficamos mais próximos de ter o substantivo para. [...] Assim, como um todo, o significado pode ser o seguinte: "Se aqueles que viveram sob a velha dispensação entraram em novidade de vida, não mais guardando os sábados, mas vivendo de acordo com a vida de nosso Senhor (na qual, por assim dizer, nossa vida ergueu-se novamente por meio Dele, etc.) [...] "De acordo com esse ponto de vista, a passagem não se refere de modo algum ao dia do Senhor. Por outro lado, mesmo que se considerasse a hipótese contrária, ela não forneceria nenhuma evidência positiva quanto ao uso antigo da expressão 'dia do Senhor' (motivo pelo qual a passagem é com frequência citada), uma vez que a palavra [hemera -- dia] propriamente dita não passa de uma conjectura."[32] O erudito Morer, clérigo da igreja anglicana, confirma essa declaração de Kitto. Ele traduz Inácio da seguinte forma: "Portanto, se aqueles que eram bem versados nas obras dos antigos dias vieram à novidade de vida, sem sabatizar, mas vivendo de acordo com a vida dominical [concernente ao Senhor], etc. [...] O exemplar de Médici, o melhor e mais semelhante ao de Eusébio, não deixa dúvidas, pois o termo ???? [zoen] é usado, e determina que a palavra dominical [do Senhor] se refere à pessoa de Cristo, não ao dia de Sua ressurreição."[33] O senhor William Domville comenta o seguinte sobre o assunto: "Julgando pelo teor da epístola em si, a tradução literal da passagem em discussão, a saber, 'não mais observando sábados, mas vivendo segundo a vida do Senhor', parece exprimir seu significado verdadeiro e apropriado. Se assim for, Inácio, a quem Gurney[34] elenca como testemunha concreta da observância do dia do Senhor no início do segundo século, fracassa em provar tal fato. Um exame completo de seu testemunho deixa transparecer que ele nem sequer menciona o dia do Senhor, nem faz alusão, de nenhuma maneira, à observância religiosa desse dia, seja por meio dessa expressão ou de qualquer outra."[35] Fica claro, portanto, que essa famosa citação não faz nenhuma referência ao primeiro dia da semana e não fornece evidências de que, na época de Inácio, o domingo fosse conhecido pelo título de "dia do Senhor".[36] As evidências agora se encontram diante do leitor, que deve decidir se Mosheim ou Neander falaram em conformidade com os fatos sobre esse assunto. Parece então que, no Novo Testamento e nos escritores não inspirados do período mencionado, não há absolutamente nada que apoie a forte declaração em favor do domingo feita por Mosheim. Chegando ao quarto século, encontramos uma citação dele que, em essência, modifica aquilo que ele disse aqui. Das epístolas atribuídas a Barnabé, Plínio e Inácio, descobrimos que a primeira é uma farsa, a segunda fala de um dia determinado sem definir qual é, e a terceira, que provavelmente é um documento espúrio, nada teria dito sobre o domingo se os defensores da santidade desse dia não houvessem acrescentado a palavra dia ao documento! Não podemos evitar a conclusão de que Mosheim falou sobre o assunto como doutor em divindade, mas não como historiador. E com a mais firme convicção de que dizemos a verdade, afirmamos junto com Neander: "A festa do domingo sempre foi uma mera ordenança humana". Notas: 1. Maclaine's Mosheim, séc. 1, parte 2, cap. 4, seção 4. Apresentei a tradução de Maclaine não por ser uma versão precisa de Mosheim, mas por ser muito usada a favor do domingo como dia de guarda. Maclaine, em seu prefácio a Mosheim, afirma: "Às vezes, lancei mão de liberdades consideráveis em relação a meu autor". Ele então explica que liberdades foram essas, dizendo que "com frequência acrescentou algumas frases para tornar uma observação mais marcante, um fato mais claro, um retrato mais acabado". A citação em análise é um exemplo dessas liberdades. O Dr. Murdock, de New Haven, que fez "uma versão literal e fiel" de Mosheim, traduz a passagem da seguinte forma: "Os cristãos deste século se reuniam para adorar a Deus e para fomentar o crescimento na piedade no primeiro dia da semana, dia no qual Cristo voltou à vida. Temos testemunhos irrepreensíveis de que esse dia foi separado para adoração religiosa pelos próprios apóstolos e de que, segundo o exemplo da igreja de Jerusalém, ele era observado de maneira generalizada" (Murdock's Mosheim, séc. 1, parte 2, cap. 4, seção 4). 2. Neander, Church History, traduzido por H. J. Rose, p. 186. A fim de minar a força da declaração incisiva de Neander de que "A festa do domingo, assim como todas as outras, sempre foi uma mera ordenança humana, e não era intenção dos apóstolos estabelecer uma ordem divina a esse respeito e nem da igreja apostólica primitiva transferir as leis do sábado para o domingo", duas coisas têm sido afirmadas: 1) Neander, em uma edição posterior de sua obra, teria retratado essa declaração. É verdade que, ao reescrever sua obra, ele omitiu a frase, mas não inseriu nada de caráter contrário, e o teor geral nessa parte da edição revisada é exatamente o mesmo encontrado na mesma parte da versão anterior, da qual essa franca afirmação foi retirada. Como prova disso, citamos a declaração de Neander da edição posterior, desse mesmo local, sobre como era a observância do domingo na igreja primitiva. Ele diz: "O domingo se distinguia como dia de alegria, mediante a abstenção de jejuns e pela prática de se orar de pé, e não de joelhos, visto que Cristo, em Sua ressurreição, havia erguido a humanidade caída novamente ao Céu" (Torrey's Neander, vol. 1, p. 295, ed. 1852). Esse é um relato fiel da observância inicial do domingo, conforme mostraremos de agora em diante. Que tal prática era mera ordenança humana, e que os costumes relacionados a ela, sejam eles quais forem, jamais foram ordenados pelos apóstolos, ficará bem evidente a qualquer um que tentar encontrar, no Novo Testamento, preceitos referentes a algum deles. 2) Mas o outro método de descartar esse testemunho de Neander é afirmar que ele não quis negar que os apóstolos estabeleceram a ordem divina de guardar o domingo como o sábado cristão, mas que ele quis assegurar que eles não estabeleceram uma ordem divina definindo o domingo como uma festa católica! Os que fazem tal alegação devem saber que ela é falsa. Neander nega expressamente que os apóstolos constituíram ou reconheceram o domingo como dia de descanso sagrado, e apresenta o domingo como mera festa desde o início de sua observância, estabelecida tão somente por autoridade humana. 3. Ver cap. 10 e 11, nos quais o Novo Testamento foi cuidadosamente examinado a esse respeito. 4. Epístola de Barnabé 13:9, 10, ou, conforme outra divisão que fazem da epístola, cap. 15. 5. Eccl. Hist., séc. 1, parte 2, cap. 2, seção 21. 6. Historical Commentaries, séc. 1, seção 53. 7. Rose's Neander, p. 407. 8. Nota anexa à obra de Gurney: History, Authority and Use of the Sabbath, p. 86. 9. Ancient Church, p. 367, 368. 10. Commentary on Acts, p. 251. 11. History of the Church, séc. 1, cap. 15. 12. Cyc. Bib. Lit., verbete "Lord's day", 10ª ed., 1858. 13. Encyc. of Rel. Knowl., verbete "Barnaba's Epistle". 14. Eccl. Hist., livro 3, cap. 25. 15. The Sabbath, or an Examination of the Six Texts commonly adduced from the New Testament in proof of a Christian Sabbath, p. 233. 16. Ancient Christianity, cap. 1, seção 2. 17. Epístola de Barnabé, 9:8. Em algumas edições, está no cap. 10. 18. Coleman, Ancient Christianity, p. 35, 36. 19. Ancient Christianity Exemplified, cap. 26, seção 2. 20. Buck, Theological Dictionary, verbete "Christians". 21. Tertuliano, Apology, seção 2. 22. Obligation of the Sabbath, p. 300. 23. Historical Commentaries, séc. 1, seção 47. 24. Ver Clarke's Commentary, prefácio às epístolas de Pedro. 25. Ignatius to the Magnesians, 3:3--5, ou conforme outra divisão da epístola, cap. 9. 26. Ancient Church, p. 413, 414. 27. Idem, p. 427. 28. Future Life, p. 290. 29. Examinations of the Six Texts, p. 237. 30. Ecclesiastical Researches, cap. 6, p. 50, 51, ed. 1792. 31. Ignatius ad Magnesios, seção 9. 32. Cyc. Bib. Lit., verbete "Lord's Day". 33. Dialogues on the Lord's Day, p. 206, 207. 34. Escritor que defende o primeiro dia, autor de History, Authority, and Use, of the Sabbath. 35. Examination of the Six Texts, p. 250, 251. 36. Para uma declaração mais completa sobre o caso de Inácio, ver Testimony of the Fathers, p. 26--30. A citação de Inácio, analisada neste capítulo, é discutida nessa fonte, e ali, ao se investigar o contexto, percebe-se que o autor a aplica aos antigos profetas e não aos cristãos do Novo Testamento. Capítulo 15 Análise de uma Célebre Falsidade Alguns doutores em divindade fizeram o esforço especial de demonstrar que o "dia estabelecido" da epístola de Plínio é o primeiro dia da semana. Para esse fim, eles citam uma narrativa fantasiosa que os mais confiáveis historiadores da igreja não consideram digna de crédito. O argumento é este: na época de Plínio e a partir de então, isto é, do fim do primeiro século em diante, sempre que os cristãos eram colocados perante seus perseguidores para ser examinados, era-lhes perguntado se guardavam o dia do Senhor, expressão usada para designar o primeiro dia da semana. Em consequência, alguns fatos são tidos por certo: (1) que quando Plínio afirma que os cristãos examinados por eles estavam acostumados a se reunir num dia estabelecido, esse dia sem dúvida era o primeiro dia da semana; (2) que a observância do primeiro dia da semana era o grande teste que revelava a identidade dos cristãos para seus perseguidores pagãos; (3) que o termo "dia do Senhor" era o nome utilizado para o primeiro dia da semana nos tempos de Plínio, alguns anos depois da morte de João. A fim de provar essas hipóteses, o Dr. Edwards diz o seguinte: "Por isso que seus perseguidores, quando queriam saber se certas pessoas eram cristãs, estavam acostumados a lhes fazer esta pergunta: 'Dominicum servasti?' -- 'Você guarda o dia do Senhor?'. Se a resposta fosse afirmativa, eram cristãos. Essa era a marca de seu cristianismo e o que os distinguia dos judeus e pagãos. Se dissessem que sim, e não se retratassem, deviam ser condenados à morte. E quando permaneciam firmes, qual era sua resposta? 'Christianus sum; intermittere non possum' -- 'Sou cristão; não posso omiti-lo'. É um emblema da minha religião e, aquele que a assume deve, é claro, guardar o dia do Senhor, porque essa é a vontade de seu Senhor. E caso abandone tal prática, torna-se um apóstata de sua religião."[1] Gurney, reconhecido escritor inglês defensor do primeiro dia, usa o mesmo argumento para o mesmo propósito.[2] A importância atribuída a essa declaração e a proeminência dada a ela pelos defensores da santidade do primeiro dia requerem que seus méritos sejam examinados. O Dr. Edwards não apresenta nenhuma autoridade que sustente essa declaração, mas Gurney atribui a história ao Dr. Andrews, bispo de Winchester, que afirmou tê-la retirado da Acta Martyrum, antiga coleção dos atos dos mártires. Foi na primeira parte do século 17 que o bispo Andrews mencionou o relato, pela primeira vez, em seu discurso na Câmara Estrelada contra Thraske, que foi acusado, diante do tribunal de juízes, de defender a opinião herética de que os cristãos deveriam guardar o sétimo dia como o sábado do Senhor. A história foi então apresentada com o propósito de deixar perplexo um guardador do sábado, enquanto o mesmo era julgado por seus inimigos por observar esse dia. O senhor William Domville, competente escritor antissabatista, explica a questão da seguinte forma: "Conforme vimos, o bispo se refere à Acta dos mártires para justificar sua declaração acerca da pergunta Dominicum servasti?, mas não cita nenhum trecho dessa obra em que a pergunta tenha sido feita. Portanto, só nos resta ir atrás desses trechos por conta própria, onde quer que possam ser encontrados, se de fato eles existirem. A mais completa coleção existente de memórias e lendas sobre a vida e sobre os sofrimentos dos mártires cristãos é a de Ruinart, intitulada Acta primorum Martyrum sincera et selecta. Consultei cuidadosamente a obra, e assumo a responsabilidade de afirmar que, dentre as perguntas que a coleção afirma terem sido feitas aos mártires no tempo de Plínio, e pelos quase duzentos anos posteriores, a pergunta Dominicum servasti? não aparece nenhuma vez, nem qualquer outra pergunta equivalente."[3] Isso mostra, de imediato, que não há nenhuma prova, com base nessas fontes, de que o "dia estabelecido" de Plínio era o primeiro dia da semana, nem que os mártires da igreja primitiva eram questionados para saber se guardavam o domingo ou não. Isso também mostra que a declaração de que os mártires, da época de Plínio, chamavam o domingo de dia do Senhor e o guardavam como tal, é falsa. Após citar todas as perguntas feitas aos mártires nos tempos de Plínio e antes dele, provando que nenhuma pergunta do tipo, como foi alegado, lhes era feita, Domville afirma: "Isso basta para demonstrar que 'Dominicum servasti?' não era uma pergunta feita nos tempos de Plínio, como Gurney quer nos convencer. Tenho ainda, porém, mais uma prova de que Gurney trata do assunto de maneira injusta, mas devo adiá-la por enquanto, a fim de prosseguir com a indagação: Qual seria a autoridade em que o bispo Andrews se baseou ao declarar que 'Dominicum servasti?' era uma pergunta costumeiramente feita pelos perseguidores pagãos? Passarei por alto os martírios que ocorreram entre os dias de Plínio e o quarto século, uma vez que eles nada contêm a esse respeito, e chegarei sem delongas ao martírio cujo relato, não me resta nenhuma dúvida, foi a fonte da qual o bispo Andrews extraiu a pergunta 'Dominicum servasti?' -- 'Você guarda o dia do Senhor?'. Esse martírio aconteceu em 304 d.C.[4] Os sofredores foram Saturnino e seus quatro filhos, bem como várias outras pessoas. Eles foram levados a Cartago e apresentados ao procônsul Amulino. No relato que é dado dos interrogatórios que ele lhes fez, as expressões 'celebrare Dominicum' e 'agere Dominicum' ocorrem com frequência, mas, em nenhum caso, o verbo 'servare' é usado em referência a Dominicum. Menciono isso principalmente para mostrar que, quando o bispo Andrews, sem dúvida fazendo referência à narrativa desse martírio, afirma que a pergunta era Dominicum servasti?, fica bem claro que ele não tinha a fonte em mãos, e, confiando na memória, criou uma frase de sua própria autoria."[5] Domville faz uma extensa citação do diálogo entre o procônsul e os mártires, que, em quase todos os aspectos, é muito semelhante à citação que Gurney e Edwards fazem de Andrews. Então ele acrescenta: "Considerando que a narrativa do martírio de Saturnino é a única que parece apoiar a declaração do bispo Andrews de que a pergunta 'Você guarda o dia do Senhor?' era costumeiramente feita aos mártires, qual será o resultado de se provar que nem mesmo esse relato fornece provas para tal afirmação? No entanto, comprovar esse fato é muito fácil, pois o bispo Andrews realmente se equivocou quanto ao sentido da palavra Dominicum, ao traduzi-la por 'dia do Senhor'. Ela não possuía esse significado. Tratava-se de um vocabulário não clássico, usado por alguns escritores eclesiásticos a partir do quarto século, para se referir, às vezes, a uma igreja e, outras vezes, à ceia do Senhor, mas nunca ao dia do Senhor.[6] Minhas autoridades a esse respeito são: "1. Ruinart, que traz uma nota sobre a palavra Dominicum na narrativa do martírio de Saturnino, dizendo que se trata de uma palavra referente à ceia do Senhor[7] ('Dominicum vero desinat sacra mysteria') e citando Tertuliano e Cipriano a fim de apoiar essa interpretação. "2. Os editores da edição beneditina das obras de Agostinho. Eles declaram que a palavra Dominicum tem dois significados: o de 'igreja' e o de 'ceia do Senhor'. Para exemplificar o primeiro, eles citam, dentre outras autoridades, um cânone do concílio de Neocesareia. Para o segundo significado, citam Cipriano, e também fazem referência ao relato de Santo Agostinho sobre sua conversa com os donatistas, na qual se faz alusão à narrativa do martírio de Saturnino.[8] "3. Gesner, que em sua obra Latin Thesaurus, publicada em 1749, expõe os dois significados da palavra Dominicum. Para exemplificar o significado de ceia do Senhor, ele cita Cipriano, e o de igreja, menciona Cipriano e também Hilário."[9] Domville expõe outros fatos interessantes a esse respeito, e então emite o seguinte juízo a respeito de Gurney: "Consideremos, portanto, que a referência do bispo Andrews aos 'Atos dos Mártires' falha completamente em estabelecer a frase por ele criada a respeito da suposta pergunta feita aos mártires, e, consideremos, também, que existiam motivos fortes e óbvios para não confiar nessa expressão. O que devemos pensar sobre o respeito do Sr. Gurney pela verdade, ao perceber que ele não tem receio em dizer a seus leitores que o 'dia estabelecido' mencionado na carta de Plínio, em que os cristãos realizavam seus cultos, era 'claramente o primeiro dia da semana', fato este provado pela pergunta Dominicum servasti? -- 'Você guarda o dia do Senhor?' -- que os perseguidores romanos costumavam fazer aos mártires? Por ter feito essa afirmação sem ressalvas, introduzida pela palavra 'claramente', a fim de torná-la mais impactante, o Sr. Gurney não tem qualquer desculpa."[10] Não se pode questionar a justiça das palavras de Domville ao ele descrever esse argumento favorito em defesa do primeiro dia como sendo: "Uma daquelas ousadas distorções dos fatos, tão comuns nos escritos teológicos, que, por causa do tom confiante assumido com tanta frequência pelos autores em tais ocasiões, costumam ser recebidas sem análise e, por isso, acabam geralmente passando como verdade."[11] A investigação à qual essa citação foi submetida demonstra que: 1. Não existe registro de uma pergunta semelhante a "Você guarda o dia do Senhor?" feita aos mártires nos tempos de Plínio; 2. Essa pergunta não foi feita a nenhum mártir antes do início do quarto século; 3. Só há um caso de martírio sobre o qual se pode afirmar que uma pergunta desse tipo foi feita; 4. Nesse martírio específico, que é a única porção existente com uma remota possibilidade de comprovar a história analisada, uma tradução correta do original em latim mostra que a pergunta não tinha a menor relação com a observância do domingo! E tudo isso com base na suposição de que Acta Martyrum, livro no qual a história se encontra, seja uma obra autêntica. Deixemos, então, que Mosheim testifique quanto à veracidade dessa obra: "Quanto àqueles relatos que chegaram até nós sob o título de Acta Martyrum, ou Atos dos Mártires, certamente a autoridade deles, na maioria dos casos, é extremamente questionável. Aliás, de modo geral, para nos aproximar o máximo possível da verdade, deveríamos dizer que eles não merecem nenhum tipo de crédito."[12] Essa é a autoridade do livro em que essa história se encontra. Portanto, não é de se estranhar que os historiadores do primeiro dia tenham deixado a repetição desse relato para os teólogos. Esses são os fatos acerca dessa falsidade extraordinária. Eles constituem uma denúncia tão patente desse famoso argumento histórico a favor do domingo de modo a entregá-lo ao justo desprezo de todos os homens honestos. Mas esse argumento é valioso demais para ser facilmente renunciado; e, além disso, ele é tão "verdadeiro" quanto alguns outros dos argumentos históricos em defesa do domingo! Em outras palavras, se descartarmos esse argumento, devido a sua desonestidade, outros argumentos terão que ir embora pelo mesmo motivo. Desde a publicação da elaborada obra de Domville, James Gilfillan, da Escócia, escreveu um grande livro chamado The Sabbath [O Sábado], que circulou extensamente, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. É considerado uma obra de referência, tanto pela American Tract Society quanto pelas denominações em geral que guardam o domingo. Gilfillan usou Domville como fonte, conforme se constata ao lermos suas declarações nas páginas 10, 142, 143 e 616 de seu livro. Logo, ele estava familiarizado com o modo como Domville expôs a fraude acerca de "Dominicum servasti?". Embora conhecesse essa denúncia, porém, ele não oferece uma palavra sequer em réplica. Pelo contrário, repete a história com a mesma certeza, como se sua falsidade não tivesse sido demonstrada. Contudo, como Domville apresentou a questão fazendo referência a Acta Martyrum, era necessário que Gilfillan atribuísse o relato a alguma outra autoridade. Por isso, ele afirma que o mesmo provém do cardeal Barônio. Estas são as palavras de Gilfillan: "Desde os dias dos apóstolos e ao longo de muitos anos, os seguidores de Cristo não tiveram inimigos mais ferrenhos e implacáveis do que esse povo [os judeus], que os amaldiçoavam nas sinagogas e enviavam emissários a todas as terras a fim de caluniá-los, a eles e a seu Mestre. Eram instigadores, onde quer que podiam, do martírio de homens como Policarpo, dos quais o mundo não era digno. Um dos motivos para essa inimizade mortal era a mudança do dia sabático. Os romanos, embora não fizessem nenhuma objeção a esse respeito, puniam os cristãos pela fiel observância de seu dia de descanso, razão pela qual uma das perguntas feitas aos mártires era: Dominicum servasti? -- Você guarda o dia do Senhor? -- Baron. An. Eccles., 303 d.C., nº. 35, etc."[13] Pelo fato de Gilfillan ter reproduzido essa declaração e ter apontado como seu relator o cronista Barônio, escritores mais recentes que defendem o primeiro dia criaram coragem e repetiram a história. Agora estão com toda razão, pensam eles. Que importa se a Acta Martyrum falhou com eles? Domville deveria ter consultado Barônio, que, na opinião deles, é a verdadeira fonte da informação a esse respeito. Caso Domville tivesse feito isso, afirmam eles, ele teria evitado desencaminhar seus leitores. Mas vejamos que mal Domville cometeu nesse caso. Tudo consiste na afirmação de duas coisas, com base na Acta Martyrum:[14] 1. Nenhuma pergunta do tipo "Dominicum servasti?" foi feita a qualquer mártir até a primeira parte do quarto século, cerca de duzentos anos depois de Plínio. 2. A pergunta, mesmo nessa época, não se referia ao chamado "dia do Senhor", mas, sim, à "ceia do Senhor". É notável constatar que Gilfillan praticamente admitiu a veracidade dessa primeira afirmação, pois o primeiro exemplo que ele conseguiu encontrar em Barônio data de 303 d.C., conforme sua referência deixa bem claro. Ela difere em apenas um ano da data apresentada na Acta Martyrum de Ruinart, e diz respeito exatamente ao mesmo caso de martírio citado por Domville daquela obra! Assim, a primeira e mais importante declaração de Domville é justificada pelo próprio Gilfillan, embora este não tenha a coragem de assumir isso com todas as letras. A segunda declaração de Domville é que Dominicum, quando usado como substantivo, como nesse caso, significa "igreja" ou "ceia do Senhor", mas nunca "dia do Senhor". Ele embasa o fato com evidências incontestáveis. Gilfillan estava familiarizado com tudo isso. Ele não tinha condições de contestar Domville, mas também não estava disposto a abandonar a falsidade que este havia exposto. Por isso, ele deixa de lado a obra Acta Martyrum, na qual o compilador dá à palavra a mesma definição usada por Domville, e recorre ao grande cronista católico romano -- o cardeal Barônio. Agora, dizem nossos amigos que defendem o primeiro dia, precisamos ter a verdade com base numa autoridade superior. Gilfillan encontrou em Barônio uma declaração expressa de que os mártires eram provados com a pergunta: "Você guarda o dia do Senhor?". Os defensores do domingo argumentam: agora não importa de qual Acta Martyrum o bispo Andrews primeiramente extraiu a história. A versão que ele usou, de fato, mostrou-se deficiente, mas temos em seu lugar o testemunho de peso do grande Barônio. Contudo, a verdade é que ele registra o uso desse teste apenas a partir do quarto século, o que invalida toda e qualquer prova de que o dia estabelecido de Plínio era o domingo; mas é um grande feito fazer com que Barônio testemunhe de que certos mártires, do quarto século, fossem sentenciados à morte por guardarem o domingo como dia do Senhor. Todavia, esses pensamentos exultantes são destituídos de fundamento. Preciso declarar um fato importante em linguagem clara: Gilfillan deliberadamente falsificou o testemunho de Barônio! Barônio registra em detalhes o martírio de Saturnino e seus seguidores no norte da África em 303 d.C. Trata-se da mesma história que Domville citou da Acta Martyrum, e Barônio declara repetidas vezes que ele próprio a copiou dessa obra. Barônio menciona as várias perguntas feitas pelo procônsul e as respostas dadas pelos mártires. Transcrevo de Barônio as mais importantes. Eles foram presos enquanto celebravam o sacramento do Senhor, segundo seu costume.[15] Segue-se o motivo para sua prisão: eles haviam celebrado a Collectam Dominicam contra a ordem dos imperadores.[16] O procônsul perguntou ao primeiro se ele havia celebrado a Collectam, e ele respondeu que era cristão e o havia feito.[17] Outro disse: "Não apenas estive na Collecta, mas celebrei o Dominicum com os irmãos porque sou cristão".[18] Outro declarou: "nós celebramos o Dominicum porque o Dominicum não pode ser negligenciado".[19] Outro afirmou que a Collecta foi feita (ou observada) em sua casa.[20] O procônsul perguntou novamente a um dos que já haviam sido interrogados e recebeu esta resposta: "O Dominicum não pode ser desconsiderado, pois assim a lei ordena".[21] Quando a um deles foi indagado se a Collecta foi feita (ou observada) em sua casa, ele respondeu: "Em minha casa nós celebramos o Dominicum". E acrescentou: "Sem o Dominicum não podemos existir", ou viver.[22] Para outro, o procônsul disse que não queria saber se ele era cristão ou não, mas se havia participado da Collecta. Sua resposta foi: "Como se alguém pudesse ser cristão sem o Dominicum ou se o Dominicum pudesse ser celebrado sem o cristão".[23] E disse mais ao procônsul: "Observamos a Collecta com toda a santidade; sempre nos reunimos no Dominicum para ler a Palavra do Senhor".[24] Outro falou: "Estive na [literalmente, fiz a] Collecta com meus irmãos, celebrei o Dominicum".[25] Depois dele, outro proclamou que o Dominicum era a esperança e segurança do cristão e, quando torturado como os outros, exclamou: "Celebrei o Dominicum com um coração devoto, e, junto com meus irmãos, fiz a collecta porque sou cristão".[26] Quando o procônsul perguntou novamente a um deles se ele havia realizado o Dominicum, ele respondeu que sim, porque Cristo era seu Salvador.[27] Citei o cerne desse famoso interrogatório e coloquei à disposição do leitor as referências nele feitas ao Dominicum. Deve-se observar que Collecta é usado como outro nome para Dominicum. Mas será que Barônio usa alguma dessas palavras para se referir ao dia do Senhor? É interessante notar que ele definiu essas palavras, com referência direta a esse caso, nada menos do que sete vezes. Leiamos então essas sete definições: Quando Barônio registra a primeira pergunta feita a esses mártires, ele define as palavras da seguinte forma: "Pelas palavras Collectam, Collectionem e Dominicum, o autor sempre entende o sacrifício da missa".[28] Após relatar as palavras daquele mártir que disse que a lei ordenava a observância do Dominicum, Barônio define a declaração da seguinte forma: "Certamente a lei cristã acerca do Dominicum, sem dúvida referente à celebração do sacrifício".[29] Por meio das palavras católico-romanas "sacrifício" e "missa", Barônio se refere à celebração da ceia do Senhor por parte desses mártires. Na conclusão do interrogatório, ele define mais uma vez a celebração do Dominicum: "Demonstrou-se acima, ao se relatar essas coisas, que os cristãos eram movidos, mesmo em meio a perseguição severa, a celebrar o Dominicum. Evidentemente, conforme afirmamos em muitos outros lugares, tratava-se de um sacrifício sem derramamento de sangue e ordenado por Deus".[30] Ele define Dominicum novamente, dizendo: "Embora seja verdade que o mesmo termo tenha sido empregado algumas vezes para se referir ao templo de Deus, visto que todas as igrejas da Terra se encontram unidas nesta questão, e, com base em outras coisas relatadas acima, ficou suficientemente demonstrado, no que diz respeito à celebração do Dominicum, que só se pode compreender o termo como sendo uma alusão ao sacrifício da Missa".[31] Tome nota dessa última declaração. Ele diz que, muito embora a palavra tenha sido empregada para designar o templo do Senhor, na situação em questão ele só pode significar o sacrifício da Missa. Esses testemunhos são absolutamente explícitos. Mas Barônio não terminou. No índice ao Volume 3, ele explica essas palavras mais uma vez, com referência direta ao mesmo martírio. Assim, abaixo de Collecta encontra-se o seguinte: "A Collecta, o Dominicum, a Missa, o mesmo 303 [d.C.], xxxix".[32] Abaixo do termo Missa: "A Missa é o mesmo que Collecta ou Dominicum, 303 [d.C.], xxxix".[33] Abaixo de Dominicum: "Celebrar o Dominicum é o mesmo que realizar a Missa, 303 [d.C.], xxxix; 49; li".[34] É impossível se enganar quanto ao significado que Barônio dá aos termos. Ele diz que Dominicum quer dizer a Missa! A celebração da ceia feita por esses mártires era, sem dúvida, bem diferente da pomposa cerimônia que a igreja de Roma hoje observa com o nome de Missa. Mas correspondia ao sacramento da ceia do Senhor, acerca da qual eles foram provados, e, por observá-la, sentenciados a uma morte cruel. A palavra Dominicum significa "os sagrados misté- rios", conforme a definição de Ruinart; e Barônio, confirmando sete vezes esta definição, embora tenha reconhecido que o termo era às vezes usado para se referir ao templo de Deus, afirma com toda clareza que, nesse relato, a palavra não pode ter qualquer outro significado além do serviço que os católicos romanos chamam de "sacrifício da Missa". Gilfillan havia lido tudo isso, mas ainda ousa citar Barônio como se este dissesse que os mártires foram interrogados com a pergunta: "Você guarda o dia do Senhor?". Não há como negar que ele sabia que estava escrevendo uma falsidade absoluta, mas imaginou que a honra de Deus e o avanço da causa da verdade exigiam esse ato de sua parte. Antes de Gilfillan escrever sua obra, Domville havia chamado a atenção para o fato de que a frase "Dominicum servasti?" não ocorre na Acta Martyrum, mas que um verbo diferente é usado. Mas essa é a forma popular da pergunta, e não se abriu mão dela. Por isso, Gilfillan declara que Barônio a utilizou em seu relato dos martírios em 303 d.C. Mas citamos as diferentes formas de pergunta registradas por Barônio e descobrimos que são exatamente as mesmas da Acta Martyrum. "Dominicum servasti?" não é usado por esse historiador, e Gilfillan, ao dizer que ele o utiliza, é culpado de faltar com a verdade. Isso, porém, é comparativamente sem importância. Todavia, ao dizer que Barônio usa o substantivo Dominicum para se referir ao dia do Senhor, Gilfillan é culpado de falsidade indesculpável em uma questão de muitíssima importância. Notas: 1. Sabbath Manual, p. 120. 2. Ver sua obra History, Authority and Use of the Sabbath, cap. 4, p. 87, 88. 3. Examination of the Six Texts, p. 258-261. 4. A data em Barônio é 303 d.C. 5. Examination of the Six Texts, p. 263-265. 6. Nota de Domville: "Dominicum não é, conforme se pode supor a princípio, um adjetivo, do qual diem [dia] seria o substantivo correspondente. O termo em si é um substantivo neutro, conforme deixa transparecer a passagem 'Quia non potest intermitti Dominicum' na narrativa acerca de Saturnino. O adjetivo latino Dominicus, quando se refere ao dia do Senhor, nunca é usado, acredito eu, sem que apareça o substantivo dies [dia]. Em todas as narrativas encontradas em Acta Martyrum, de Ruinart, só encontro dois casos de menção ao dia do Senhor, e em ambos o substantivo dies [dia] é expresso." 7. Esse testemunho é, sem dúvida, definitivo. Trata-se da interpretação do compilador da Acta Martyrum, e esta é feita em referência direta ao caso específico que estamos discutindo. Uma confirmação independente a respeito das autoridades de Domville pode ser encontrada em Lucius' Eccl. Hist., séc. 4, cap. 6: "Fit mentio aliquoties locorum istorum in quibus convenerint Christiani, in historia persecutionis sub Diocletiano & Maximino. Et apparet, ante Constantinum etiam, locos eos fuisse mediocriter exstructor atque exornatos: quos seu Templa appellarunt seu Dominca; ut apud Eusebium (li. 9. c. 10) & Ruffinum (li. 1, c. 3)." Sem dúvida, Dominicum é usado aqui para designar um local de adoração a Deus. Dr. Twisse, em sua obra Morality of the Fourth Commandment, p. 122, diz: "Os antigos pais, tanto gregos quanto latinos, chamavam os templos pelo nome de dominica e ????a?a [kuriaka]". 8. Domville cita St. Augustine's Works, vol. 5, p. 116, 117, ed. Antuérpia, 1700 d.C. 9. Examination of the Six Texts, p. 267, 268. 10. Idem, p. 270, 271. 11. Idem, p. 272, 273. 12. Historical Commentaries, séc. 1, seção 32. Sabbath History. 13. James Gilfillan, The Sabbath, p. vii. 14. A fim de minar a força da declaração de Domville, na qual ele expõe a história originalmente contada pelo bispo Andrews como se estivesse na Acta Martyrum, afirma-se que Domville usou a Acta Martyrum de Ruinart, mas que este só nasceu 31 anos após a morte do bispo Andrews. Logo, Domville não consultou o mesmo livro usado pelo bispo, e por isso não encontrou a mesma coisa que o clérigo. Os que usam tal argumento revelam a própria ignorância ou expõem sua desonestidade. A Acta Martyrum é uma coleção das memórias dos mártires, escritas por seus amigos ao longo das eras. Ruinart não escreveu uma obra nova, mas apenas editou "a coleção mais valiosa" dessas memórias que já existiu. Ver McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 1, p. 56, 57. Domville usou a edição de Ruinart porque, conforme explicou, ela consiste na "mais completa coleção existente de memórias e lendas sobre a vida e sobre os sofrimentos dos mártires cristãos". Portanto, o uso de Ruinart por Domville é justo e correto em todos os aspectos. 15. Ibique celebrantes ex more Dominica Sacramenta. Barônio, Vol. 3, p. 348, 303 d.C.; n. 36. Lucae, 1738 d.C. 16. Qui contra edictum Imperatorum & Caesarum Collectam Dominicam celebrassent. Barônio, Vol. 3, p. 348, 303 d.C.; n. 39. 17. Utrum Collectam fecisset. Qui cum se Christianum, & in Collecta fuisse profiteretur. Ibid. 18. Nam & in Collecta fui, & Dominicum cum fratribus celebravi, quia Christiana sum. Idem, n. 43, p. 344. Essa declaração foi feita por uma mulher mártir. 19. Dominicum celebravimus. Proconsul ait: Quare? Respondit: Quia non potest intermitti Dominicum. Idem, n. 46, p. 350. 20. In cujus dome Collecta facta fuit. Idem, n. 47, p. 350. 21. Intermitti Dominicum non potest, ait. Lex sic jubet. Idem, n. 47, p. 350. 22. In tua, inquit proconsul, domo Collectae factae sunt, contra praecepta Imperatorum? Cui Emeritus santo Spiritu inundatus: In domo mea, inquit, egimus Dominicum... Quoniam sine Dominico esse non possumus. Idem, n. 49, p. 350, 351. 23. Non quaero an Christianum sis sed an Collectam feceris... Quast Christianus sine Dominico esse posit. Idem, n. 51, p. 351. 24. Collectam, inquit, religiosissime celebravimus; ad scripturas Dominicas legendas in Dominicum convenimus semper. Idem, p. 351. 25. Cum fratribus feci Collectam, Dominicum celebravi. Idem, n. 52, p. 351. 26. Post quem junior Felix, spem salutemque Christianorum Dominicum esse proclamans... Ego, inquit, devota menta celebravi Dominicum; collectam cum fratribus feci, quia Christianus sum. Idem, n. 53. 27. Utrum egeris dominicum. Cui respondit Saturninus: Egi Dominicum, quia Salvator est christus. Idem, p. 352. 28. Per Collectam namque, et Collectionem, et Dominicum, intellegit semper autor sacrificium Missae. Barônio, Vol. 3, 303 d.C., n. 39, p. 348. 29. Scilicet lex Christiana de Dominico, nempe sacrifício celebrando. Idem, n. 47, p. 350. 30. De celebratione Dominici; quod autem superuis in recitatis actis sit demonstratum, flagrantis persecutionis etiam tempore solicitos fuisse Christianos celebrare Dominicum, nempe (ut alias pluribus declararimus) ipsum sacrosanctum sacrificium incruentum. Idem, n. 83, p. 358. 31. Quod etsi sciamus eamdem vocem pro Dei templo interdum accipi solitam; tamen quod ecclesiæ omnes solo æquiatæ fuissent; ex aliis superius recitatis de celebratione Dominici, nonisi sacrificium missæ posse intelligo, satis est declaratum. Idem, n. 84, p. 359. 32. Collecta, Dominicum, Missa, Idem, 303, n. 39, p. 677. 33. Missa idem quod Collecta, sive Dominicum, 303, n. 39, p. 702. 34. Dominicum celebrare idem quod Missas agere, 303, n. 39; li. p. 684. Capítulo 16 Origem da Observância do Primeiro Dia A festa do domingo é mais antiga do que a religião cristã. Sua origem se perde na remota antiguidade. No entanto, ela não surgiu por nenhuma ordem divina, nem por piedade a Deus. Pelo contrário, o domingo foi separado como dia sagrado pelo mundo pagão em homenagem a seu deus principal, o sol. É com base nesse fato que o primeiro dia da semana recebeu em inglês o nome de Dia do Sol [Sunday], pelo qual é conhecido em muitos outros idiomas. O dicionário Webster define o termo da seguinte forma: "Domingo [Sunday]: assim chamado porque este dia era dedicado ao sol ou a sua adoração na antiguidade. O primeiro dia da semana; o sábado cristão; dia consagrado ao descanso dos afazeres seculares e à adoração religiosa; o dia do Senhor." Worcester, em seu grande dicionário, usa linguagem semelhante: "Domingo [Sunday]: assim chamado porque antigamente era dedicado ao sol ou a sua adoração. O primeiro dia da semana; o sábado cristão, consagrado ao descanso dos labores e à adoração religiosa; o dia do Senhor." Esses lexicógrafos chamam o domingo de sábado cristão, etc., porque na literatura teológica geral de língua inglesa ele é assim denominado, embora isso jamais aconteça na Bíblia. Os lexicógrafos não se propõem a resolver questões teológicas, mas simplesmente a definir os termos conforme são usados em determinado idioma. Embora todos os outros dias da semana tenham nomes pagãos na língua inglesa, somente o domingo era uma festa pagã proeminente nos dias da igreja primitiva. A North British Review [Revisão Norte-Britânica], numa elaborada tentativa de justificar a observância do domingo pelo mundo cristão, chama o dia de "o feriado solar [isto é, festa em honra ao sol] bárbaro de todas as épocas pagãs".[1] Verstegan diz: "Os mais antigos povos germânicos eram pagãos e se apropriaram do primeiro dia da semana para adoração especial ao sol, razão pela qual esse dia ainda mantém em nossa língua inglesa o nome de Sunday [domingo -- dia do sol]. Eles também adotaram o dia seguinte para adoração especial à lua, razão pela qual o nome Monday [segunda-feira -- lit. dia da lua -- moon, em inglês] permanece conosco. Dedicaram o dia posterior aos desses grandes astros celestes para a adoração específica a Tuisco, seu grande e célebre deus, razão por que conservamos em nossa língua o nome Tuesday [terça-feira -- dia de Tuisco]."[2] O mesmo autor diz o seguinte acerca dos ancestrais saxões dos ingleses e norte-americanos: "Embora tivessem muitas divindades em seu panteão, eles dedicaram sete, de maneira especial, aos sete dias da semana. [...] Ao dia reservado para a adoração especial ao ídolo do sol, deram o nome de Sunday [domingo], como dizendo o 'dia do sol'. Tal ídolo era colocado em um templo, onde recebia sacrifícios e era adorado, pois eles acreditavam que o sol, no firmamento, correspondia e cooperava com o ídolo."[3] Jennings afirma que tal adoração é mais antiga do que a libertação de Israel do Egito, pois, ao falar da época desse livramento, descreve os gentios como: "As nações idólatras que, em honra a seu deus principal, o sol, começavam o dia quando ele nascia."[4] Ele também os apresenta separando o domingo em honra ao mesmo objeto de adoração: "O dia que os pagãos em geral dedicavam à adoração e honra de seu deus principal, o sol, o qual, de acordo com nossos cálculos, era o primeiro dia da semana."[5] A North British Review explica da seguinte forma a introdução dessa antiga festa pagã na igreja cristã: "Aquele dia específico era o Dia do Sol [Sunday] de seus vizinhos pagãos e respectivos conterrâneos; e o patriotismo alegremente os uniu em nome da conveniência, transformando imediatamente o domingo no dia do Senhor e descanso sabático deles. [...] Se a autoridade da igreja for completamente ignorada pelos protestantes, não haverá problema, pois a oportunidade e a conveniência comum tomarão o seu lugar, como argumentos suficientes para uma mudança tão cerimonial como essa, que diz respeito simplesmente ao dia da semana em que se devia observar o descanso e a santa convocação do sábado judaico. De fato, a igreja primitiva não podia escapar de adotar o domingo, até que ele se tornou consolidado e supremo, quando já era tarde demais para fazer outra alteração. E não era irreverente ou desagradável adotar o domingo, uma vez que o primeiro dia da semana já era o dia respeitado pelos pagãos, de qualquer forma; por isso, sua aceitação e civilidade foram recompensadas pela santidade redobrada de sua festa silenciosa."[6] Somos levados a imaginar que algo mais poderoso do que o "patriotismo" ou a "conveniência" seria necessário para transformar essa festa pagã no sábado cristão, ou mesmo para justificar sua introdução na igreja cristã. Uma declaração adicional sobre os motivos que levaram a sua introdução, e uma breve nota sobre os passos anteriores a sua transformação em uma instituição cristã, ocuparão o restante deste capítulo. Chafie, clérigo da Igreja Anglicana, em 1652, publicou uma obra em defesa da observância do primeiro dia chamada The Seventh-day Sabbath [O Sábado do Sétimo Dia]. Após descrever a observância generalizada do domingo pelo mundo pagão nos primórdios da igreja, Chafie assim descreve os motivos que proibiam os cristãos de tentar guardar qualquer outro dia: "1. Por causa do desprezo, da zombaria e do ridículo no qual [os cristãos] incorreriam em meio a todos os gentios com os quais viviam. [...] Como seriam penosos os escárnios e censuras deles contra os pobres cristãos que habitavam entre eles e sob seu poder, se insistissem em manter um dia que, para os pagãos, era um novo dia sagrado, e se houvessem escolhido qualquer dia além do domingo. [...] 2. Quase todos os cristãos eram servos ou pertenciam às classes mais pobres; e é bem provável que os gentios não dariam a seus servos, de maneira regular, a liberdade de deixar de trabalhar em qualquer outro dia específico, a não ser durante os domingos, que eles também guardavam. [...] 3. Porque, se tivessem tentado tal mudança, os esforços deles teriam sido em vão; [...] nunca poderiam tê-la colocado em prática."[7] Percebe-se, então, que, na época em que a igreja primitiva começou a se afastar de Deus e a promover ordenanças humanas, o mundo pagão, de forma muito generalizada, observava o primeiro dia da semana em honra ao sol -- como o fazia desde muito antes. Vários dos primeiros pais da igreja haviam sido filósofos pagãos no passado e, infelizmente, trouxeram consigo para dentro da igreja diversos de seus antigos conceitos e princípios. De maneira específica, ocorreu-lhes que, ao se unirem com os pagãos no dia de celebração semanal, facilitariam em muito sua conversão. As razões que induziram a igreja a adotar a antiga festa dos pagãos como algo a ser celebrado são declaradas da seguinte maneira por Morer: "Não devemos negar que tomamos o nome desse dia emprestado dos antigos gregos e romanos. Reconhecemos também que os antigos egípcios adoravam o sol e, como memorial palpável de sua veneração, dedicaram o primeiro dia a ele. Encontramos, também, pela influência do exemplo deles, outras nações, dentre elas os próprios judeus, prestando homenagem ao sol. (2 Reis 23:5; Jeremias 43:13) Tais abusos, porém, não impediram os pais da igreja cristã, de modo que simplesmente repudiassem ou deixassem de lado, por completo, o dia ou o seu nome, mas, ao contrário, levaram-nos a santificar e fazer uso de ambos, o que também fizeram com os templos pagãos, antes poluídos com ritos idólatras -- uma postura que esses bons homens adotaram em outros casos, mostrando-se sempre cuidadosos em efetuar mudanças em coisas que iam além do que era evidentemente necessário, e em coisas claramente inconsistentes com a religião cristã. Desse modo, como o primeiro dia da semana era o dia no qual os gentios adoravam o sol com solenidade e ao qual eles chamavam de Dia do Sol, em parte por sua influência especial sobre esse dia, em parte por respeito àquele corpo celeste divino (da forma como o concebiam), os cristãos acharam por bem manter esse mesmo dia e o mesmo nome, para que não parecessem impertinentes sem motivo e não atrapalhassem a conversão dos gentios, causando mais preconceito sobre o evangelho do que seria necessário."[8] Na época de Justino Mártir (100--165 d.C.), o domingo era uma festa semanal, amplamente celebrada pelos pagãos em homenagem a seu deus, o sol. Assim, ao apresentar ao imperador pagão de Roma uma "Apologia" em favor de seus irmãos, Justino toma o cuidado de mencionar três vezes que os cristãos realizavam suas reuniões nesse dia geral de guarda.[9] Portanto, o domingo aparece pela primeira vez na igreja cristã como uma instituição idêntica, na época, à festa semanal dos pagãos. Justino, o primeiro a mencionar a festa, havia sido um filósofo pagão. Sessenta anos depois, Tertuliano (160--220 d.C.) reconhece que as pessoas tinham seus motivos para achar que o sol era o deus dos cristãos. Mas ele respondeu que, embora adorassem virados para o leste, como os pagãos, e dedicassem o domingo para se alegrar, era por uma razão bem diferente do que a adoração ao sol.[10] Em outra ocasião, ao defender seus irmãos da acusação de adorar o sol, ele reconhece que tais atos -- a oração voltada para o oriente e o domingo como dia de festa -- de fato davam aos outros a chance de pensarem que o sol era o deus dos cristãos.[11] Assim, Tertuliano é uma testemunha do fato de que o domingo era uma festa pagã quando a mesma achou guarida dentro da igreja cristã, e que os cristãos, por observá-lo, eram rotulados como adoradores do sol. É notável que, em suas respostas, ele nunca mencione nenhum preceito divino ou exemplo apostólico para justificar a observância do primeiro dia. Seu principal argumento é que eles tinham o mesmo direito de fazê-lo que os pagãos. Cento e vinte anos depois de Tertuliano, Constantino (272--337 d.C.), quando ainda pagão, promulgou o célebre edito a favor da festa pagã do sol, e declarou que o dia era "venerável". Essa lei pagã fez com que o dia fosse observado em todo o império romano e se consolidasse, tanto na igreja quanto no Estado. É certo, portanto, que, na época de sua entrada na igreja cristã, o domingo era uma antiga festa semanal do mundo pagão. Sem dúvida, o fato de essa festa pagã ocorrer no dia da ressurreição de Cristo, aumentou muito o "patriotismo" e a "conveniência" de transformá-la no dia do Senhor ou sábado cristão. É razoável concluir que, por motivos piedosos, o professo povo de Deus veio a dedicar consideração voluntária por vários dias memoráveis da história do Redentor, já nos primórdios da mesma. Mosheim, cujo testemunho a favor do domingo já foi apresentado, afirma o seguinte em relação ao dia da crucifixão: "Também é provável que a sexta-feira, o dia da crucifixão de Cristo, tenha se tornado, já no início, distinta dos outros dias da semana com honras especiais."[12] Falando sobre o segundo século, ele afirma: "Muitos também observavam o quarto dia da semana, no qual Cristo foi traído, e também o sexto, que era o dia de Sua crucifixão."[13] O Dr. Peter Heylyn diz o seguinte sobre os que escolheram o domingo: "[Assim o fizeram] porque nosso Salvador ressuscitou dos mortos nesse dia, assim como outros escolheram a sexta-feira, por causa da paixão do Salvador, e outros ainda a quarta-feira, na qual Ele foi traído. Enquanto isso, o sétimo dia, o antigo sábado, foi preservado nas igrejas orientais."[14] Quanto à santidade relativa dessas três festas voluntárias, o mesmo autor comenta: "Se considerarmos a pregação da palavra, a ministração dos sacramentos ou as orações públicas, o domingo nas igrejas orientais não tinha nenhuma prerrogativa maior que os outros dias, sobretudo a quarta e a sexta-feira, exceto o fato muito provável de que as reuniões nesse dia eram mais solenes e atraíam mais pessoas do que em outras ocasiões."[15] Além dessas três festas semanais, havia também duas festas anuais de grande santidade: a Páscoa e o Pentecostes. É digno de destaque especial o fato de que, embora a celebração da festa do domingo não possa ser encontrada, nos registros da igreja, num período anterior a Justino Mártir, 140 d.C., a primeira menção à Páscoa remonta a um homem que afirmou tê-la recebido dos apóstolos (ver o capítulo 13). Dentre essas festas, vistas apenas como memoriais voluntários do Salvador, o domingo tinha preeminência muito pequena, conforme Heylyn afirma muito claramente: "Consultemos a quem quisermos, tanto os pais quanto os modernos, e não encontraremos nenhum dia do Senhor sendo instituído por mandato apostólico; nenhum sábado sendo firmado por eles no primeiro dia da semana."[16] Domville dá este testemunho, que merece sempre ser lembrado: "Nenhum escritor eclesiástico dos três primeiros séculos atribuiu a origem da observância do domingo a Cristo ou a Seus apóstolos."[17] Entretanto, "patriotismo" e "conveniência" logo elevaram imensuravelmente, dentre essas três festas voluntárias, aquela que correspondia ao "primitivo feriado solar" do mundo pagão, transformando esse dia, por fim, no "dia do Senhor" da igreja cristã. O mais antigo testemunho a favor da observância do primeiro dia que tem algum direito de ser considerado genuíno é o de Justino Mártir, escrito em torno de 140 d.C. Antes de se converter, ele era um filósofo pagão. O tempo, o lugar e a ocasião para sua primeira Apologia ou Defesa dos Cristãos, dirigida ao imperador romano, são explicados por um proeminente historiador católico romano. Ele diz o seguinte sobre Justino Mártir: "[Ele] estava em Roma quando teve início a perseguição ocorrida durante o reinado de Antonino Pio, sucessor de Adriano. Ali ele compôs uma excelente apologia a favor dos cristãos."[18] Sobre as obras atribuídas a Justino Mártir, Milner afirma: "Assim como muitos dos antigos pais, ele chega até nós em grande desvantagem. Obras verdadeiramente de sua autoria foram perdidas; outras lhe foram atribuídas, sendo que parte delas não foi escrita por ele; o restante é, no mínimo, de autoridade ambígua."[19] Caso os escritos atribuídos a ele sejam genuínos, há pouca justificativa para que os defensores de que o primeiro dia é o sábado cristão usem seu nome. Ele ensinava a anulação da instituição sabática; e não há nenhum indício, em suas palavras, de que a festa dominical que ele menciona seja qualquer coisa além de uma observância voluntária. Ele se dirige da seguinte forma ao imperador de Roma: "E no dia chamado Dia do Sol [domingo], todos os que vivem na cidade e no campo se reúnem no mesmo lugar, onde os escritos dos apóstolos e dos profetas são lidos, tanto quanto o tempo permitir. Quando o leitor acaba, o bispo faz um sermão, no qual instrui as pessoas e as anima na prática de preceitos graciosos. Ao fim de seu discurso, todos nós nos levantamos e fazemos orações. Quando as orações que mencionei terminam, pão, água e vinho são oferecidos. O bispo, como antes, faz orações e ações de graças com todo o fervor possível, e o povo conclui tudo com a alegre aclamação de amém. Então os elementos consagrados são distribuídos e consumidos por todos os presentes, e enviados para os ausentes pelas mãos dos diáconos. Os ricos e os dispostos, pois todos têm liberdade, contribuem conforme acham melhor. Essas ofertas ficam aos cuidados do bispo, que as usa para socorrer os órfãos, as viúvas, aqueles que se encontram em necessidade por causa de enfermidades ou qualquer outro motivo, os que estão em prisões e os estrangeiros vindos de longe; em suma, ele é o guardião e ajudador de todos os indigentes. No domingo, todos nos reunimos, nesse dia que foi o primeiro dia em que Deus Se propôs a trabalhar no tenebroso vazio, a fim de criar o mundo, e no qual nosso Salvador Jesus Cristo ressuscitou dos mortos; pois no dia anterior ao sábado Ele foi crucificado, e no dia seguinte, o domingo, Ele apareceu diante de Seus apóstolos e discípulos, ensinando-lhes o que agora proponho para sua consideração."[20] Essa passagem, se genuína, fornece a mais antiga referência à observância do domingo como festa religiosa dentro da igreja cristã. Deve-se lembrar que essas palavras foram escritas em Roma e endereçadas diretamente ao imperador. Revelam, portanto, qual era a prática da igreja naquela cidade e em suas redondezas, mas não determinam a abrangência de sua observância. Elas contêm fortes evidências de que a apostasia tinha progredido em Roma. A instituição da ceia do Senhor havia mudado, em parte, para uma ordenança humana, uma vez que a água era agora tão essencial ao sacramento quanto o pão e o vinho. Mas havia algo ainda mais perigoso na perversão da instituição de Cristo: os elementos consagrados eram enviados para os ausentes, passo que logo resultou em que estes fossem transformados em objetos de veneração supersticiosa e, por fim, de adoração. Justino conta ao imperador que Cristo assim o ordenara, mas tal declaração é um grave afastamento da verdade do Novo Testamento. Essa declaração sobre os motivos para a observância do domingo é digna de especial aten- ção. Justino diz ao imperador que os cristãos se reuniam no dia chamado Dia do Sol [o domingo]. Isso era o equivalente a dizer ao soberano: "Guardamos o dia em que nossos concidadãos prestam sua adoração ao sol". Nesse ponto, tanto o "patriotismo" quanto a "conveniência" se revelam nas palavras de Justino, que foram dirigidas, em defesa dos cristãos, a um imperador perseguidor. Mas, como se tivesse consciência de que a observância de uma festa pagã como o dia de adoração cristã era inconsistente com sua profissão de adoradores do Altíssimo, Justino começa a pensar em justificativas para defender a guarda desse dia. Ele não apresenta nenhum preceito divino ou exemplo apostólico para a celebração da festa, pois sua referência ao que Cristo ensinou aos discípulos, conforme revela o contexto, era ao sistema geral da religião cristã, não à observância do domingo. Se for argumentado que Justino deve ter aprendido com a tradição aquilo que não se encontra no Novo Testamento acerca da observância do domingo, e que o primeiro dia pode muito bem ter sido ordenado por Deus, basta responder: 1. Que esta justificativa mostraria que a festa do domingo tem suas bases apenas na tradição; 2. Que Justino Mártir é um guia muito inseguro; seu testemunho acerca da ceia do Senhor é diferente do encontrado no Novo Testamento; 3. Que a American Tract Society, em uma obra contra o catolicismo romano, dá o seguinte testemunho sobre o assunto: "Justino Mártir parece particularmente inapto para ser usado como autoridade. É notório ele ter suposto que uma coluna erigida na Ilha Tiberina a Semo Sancus, antiga divindade sabina, fosse um monumento construído pelo povo romano em homenagem ao impostor Simão Mago. Caso um erro tão grave fosse cometido por um escritor atual acerca de um fato histórico, o engano seria exposto imediatamente, e seu testemunho a partir de então receberia fortes suspeitas. Sem dúvida, a mesma medida deve recair sobre Justino Mártir, que comete um erro tão crasso em referência a um fato a que o historiador [Tito] Lívio faz alusão."[21] Justino menciona os seguintes motivos para apoiar a observância do domingo: "nos reunimos [no domingo], nesse dia que foi o primeiro dia em que Deus Se propôs a trabalhar no tenebroso vazio, a fim de criar o mundo, e no qual nosso Salvador Jesus Cristo ressuscitou dos mortos". O bispo Jeremy Taylor dá uma resposta apropriada a essa declaração: "O primeiro argumento parece mais uma desculpa do que um motivo válido; pois, se alguma parte da criação fosse o motivo para a guarda de um sábado, teria que ser o fim dela, não o início; teria que ser o restante, não a primeira parte da obra; teria que ser a razão que Deus escolheu, e não alguma razão que o ser humano decidisse adotar como justificativa posterior."[22] Logo, deve-se observar que o primeiro vestígio do domingo como festa cristã é encontrado na igreja de Roma. Pouco depois dessa época, e a partir de então, vamos nos deparar com "o bispo" dessa igreja empreendendo fortes esforços para suprimir o sábado do Senhor e exaltar, em seu lugar, a festa do domingo. É apropriado destacar o fato de que Justino era um forte oponente do antigo sábado. Em Diálogo com Trifão, ele diz o seguinte ao judeu: "Esta nova lei o ensina a observar um sábado perpétuo; e você, ao passar um dia em ociosidade, acha que cumpriu os deveres da religião. [...] Se alguém é culpado de adultério, que se arrependa, então terá guardado o verdadeiro e deleitoso sábado do Senhor. [...] Na verdade, nós teríamos a obrigação de observar a circuncisão da carne, o sábado e todas as festas, se não tivesse chegado ao nosso conhecimento o motivo pelo qual tais coisas foram impostas a vocês, a saber, as iniquidades de vocês. [...] Foi por causa de suas iniquidades e das iniquidades de seus pais que Deus designou que vocês guardassem o sábado. [...] Percebam que os céus não estão em ociosidade, tampouco guardam o sábado. Continuem como vocês nasceram. Pois, se antes de Abraão não havia necessidade de circuncisão, nem dos sábados, nem de festas, nem de ofertas antes de Moisés, de maneira semelhante, agora, não há necessidade de tais coisas, uma vez que Jesus Cristo, o Filho de Deus, pelo desígnio determinado de Deus, nasceu de uma virgem procedente da semente de Abraão, sem pecado."[23] Essa linha de raciocínio de Justino não merece resposta. Todavia, ela mostra a injustiça do Dr. Edwards ao mencionar Justino Mártir como testemunha da mudança do sábado,[24] uma vez que este defendia que Deus criara o sábado por causa das iniquidades dos judeus e o abolira por completo em consequência do primeiro advento de Cristo, o que nos leva a crer que a festa pagã do domingo foi evidentemente adotada pela igreja de Roma por motivos de "conveniência" e talvez de "patriotismo". Se for genuíno, o testemunho de Justino tem valor especial por um motivo: ele mostra que, até 140 d.C., o primeiro dia da semana ainda não havia recebido nenhum título de santidade, pois ele menciona o dia diversas vezes, três delas como "o dia chamado Dia do Sol [domingo]", duas delas como "o oitavo dia", e também usando outros termos, mas nunca com qualquer nome santo.[25] A próxima testemunha importante a favor da santidade do primeiro dia é apresentada da seguinte forma pelo Dr. Edwards: "Portanto Irineu, bispo de Lião, discípulo de Policarpo, que fora companheiro dos apóstolos, disse em 167 d.C. que o dia do Senhor era o sábado cristão. Suas palavras são: 'No dia do Senhor, todos nós, cristãos, guardamos o sábado, meditando na lei e nos regozijando nas obras de Deus."[26] Esse testemunho é extremamente valorizado pelos escritores que defendem o primeiro dia, e, com frequência, recebe lugar de destaque em suas publicações. O senhor William Domville, cujo tratado elaborado sobre o sábado já foi citado diversas vezes, declara o seguinte fato importante a respeito dessa citação: "Pesquisei com cuidado todas as obras de Irineu disponíveis, e posso afirmar, com toda certeza, que esse texto não se encontra nelas, nem nada semelhante. A edição que consultei foi a de Massuet (Paris, 1710), mas para ter ainda mais certeza, fui em busca das edições de Erasmo (Paris, 1563) e Grabe (Oxford, 1702). Em nenhuma delas é possível encontrar a passagem em questão."[27] É um fato notável que aqueles que citam esse texto como sendo da autoria de Irineu, caso mencionem alguma fonte, remetem o leitor à obra Dwight's Theology [A Teologia de Dwight] em vez de indicar o lugar, nas obras de Irineu, onde a passagem deveria ser encontrada. O Dr. Dwight foi o primeiro a enriquecer o mundo teológico com esta inestimável citação. Onde, então, Dwight encontrou esse testemunho, já muitas vezes apresentado como as palavras de Irineu? Sobre esse assunto, Domville observa: "[Dwight] teve a infelicidade de ser acometido por uma doença nos olhos com apenas 23 anos, uma calamidade (conforme seu biógrafo) que o privou da capacidade de leitura e estudo. [...] O conhecimento que veio a adquirir após o período acima mencionado [o editor aqui deve estar se referindo a sua idade de 23 anos] foi quase exclusivamente de segunda mão, com o auxílio de outros."[28] Domville revela ainda outro fato, que inquestionavelmente nos mostra a origem da citação: "Embora, porém, não se encontre em Irineu, ela está nos escritos atribuídos a outro pai, a saber, na epístola interpolada de Inácio aos magnésios. Em uma das passagens interpoladas, há expressões que lembram claramente a citação do Dr. Dwight, não deixando dúvidas quanto à fonte de onde ele citou."[29] Logo, esse é o fim do famoso testemunho de Irineu, que o obteve de Policarpo, que o obteve dos apóstolos! Ele foi apresentado ao mundo por um homem com problemas de visão, que, em consequência de sua enfermidade, apropriou-se, de segunda mão, de uma passagem retirada de uma epístola falsamente atribuída a Inácio, e a divulgou ao mundo como um testemunho genuíno de Irineu. A perda de visão, um motivo que poderíamos generosamente admitir, levou o Dr. Dwight ao grave erro que ele cometeu. Contudo, pela publicação desse testemunho espúrio, que parecia se originar diretamente dos apóstolos, ele fez com que multidões se tornassem incapazes de ler corretamente o quarto mandamento, do mesmo modo que, por perda da visão natural, ele era incapaz de ler Irineu por conta própria. Esse caso ilustra, de maneira admirável, como a tradição age como guia religioso. Trata-se de um cego guiando outro cego até ambos caírem no buraco. Mas isso não é tudo o que se pode dizer a respeito de Irineu. Em todas as suas obras, não há nenhum caso em que ele chame o domingo de dia do Senhor! E o que é também muito notá- vel: não se tem acesso a nenhuma frase escrita por ele que sequer mencione o primeiro dia da semana![30] Parece, porém, com base em várias declarações de escritores antigos, que ele de fato mencionou o dia, embora não exista nenhuma frase dele em que isso ocorra. Ele defendia que o sábado era uma instituição típica, que apontava para o sétimo milênio como o grande dia de descanso da igreja.[31] Disse que Abraão vivia "sem a observância de sábados";[32] todavia, ele afirma que a origem do sábado foi a santificação do sétimo dia.[33] Irineu, contudo, reafirma claramente a perpetuidade e a autoridade dos dez mandamentos, declarando que eles são idênticos à lei da natureza implantada desde o início no ser humano, que eles continuam permanentemente conosco e que, se alguém não os observa, não tem salvação.[34] É notável constatar que a primeira vez, de que se tem registro, em que o bispo de Roma tentou governar a igreja cristã, foi por meio de um edito favorável ao domingo. Todas as igrejas tinham o costume de celebrar a Páscoa, mas com uma diferença: enquanto as igrejas do Oriente observavam-na no décimo quarto dia do primeiro mês, qualquer que fosse o dia da semana em que caísse, as igrejas ocidentais guardavam-na no domingo posterior ao dia 14, ou melhor, no domingo após a Sexta-feira da Paixão. Victor, bispo de Roma, no ano 196,[35] determinou-se a impor o costume romano a todas as igrejas, isto é, compeli-las a observar a Páscoa no domingo. "Essa ousada tentativa", diz Bower, "é o que podemos chamar de a primeira tentativa de usurpação papal", [36] e Dowling a classifica como "o mais antigo exemplo de pretensão Romana".[37] As igrejas da Ásia Menor informaram a Victor que não poderiam cumprir sua ordem autoritária. Bower relata que: "Ao receber essa carta, Victor, dando rédeas a uma paixão impotente e desgovernada, publicou amargas injúrias contra todas as igrejas da Ásia, declarou que elas estavam excluídas da comunhão com ele, enviou cartas excomungando seus bispos e, ao mesmo tempo, a fim de excluí-los da comunhão de toda a igreja, escreveu para os outros bispos, exortando-os a seguir seu exemplo e cortar a comunicação com os insubmissos irmãos da Ásia."[38] O historiador nos informa que "ninguém seguiu seu exemplo ou conselho; ninguém deu nenhuma atenção a suas cartas, nem demonstrou a menor inclinação de apoiá-lo nessa iniciativa tão impulsiva e severa". Ele acrescenta: "Depois que a iniciativa de Victor foi frustrada, seus sucessores tomaram o cuidado de não reavivar a controvérsia. Desse modo, os asiáticos seguiram em paz sua antiga prática até o Concílio de Niceia, o qual, como gesto de cortesia a Constantino, o Grande, ordenou que a solenidade da Páscoa passasse a ser observada universalmente no mesmo dia, segundo o costume de Roma."[39] A vitória em prol do domingo não foi alcançada nessa batalha, conforme testemunha Heylyn, "até que o grande Concílio de Niceia [325 d.C.], apoiado pela autoridade de um imperador tão poderoso [Constantino], decidiu a questão melhor do que antes; ninguém, exceto alguns cismáticos dispersos que apareciam de quando em quando, ousou se opor à resolução daquele famoso sínodo."[40] Constantino, cuja influência poderosa induziu o Concílio de Niceia a decidir essa questão -- a de que a Páscoa deveria ser celebrada no domingo --, apresentou este forte motivo para a medida: "Não tenhamos nada em comum com o populacho mais hostil dos judeus."[41] Essa frase é digna de nota. A determinação de não ter nada em comum com os judeus teve muito que ver com a supressão do sábado na igreja cristã. Aqueles que rejeitaram o sábado do Senhor e escolheram, em seu lugar, a festa do domingo -- mais popular e conveniente -- estavam tão cegados com a ideia de não ter nada em comum com os judeus, que nem chegaram a questionar a adequação de ter uma festa em comum com os pagãos. No caso da Páscoa, esta não era semanal, mas, sim, anual. Contudo, a transferência dela, do décimo quarto dia do primeiro mês para o domingo após a Sexta-feira da Paixão, foi a primeira legislação que tentou honrar o domingo como festa cristã; e, conforme Heylyn curiosamente destaca, "para o dia do Senhor, aquela vitória não foi algo insignificante".[42] Em um breve período após o Concílio de Niceia, as leis de Teodósio determinaram a pena de morte para aqueles que celebrassem a festa da Páscoa em qualquer outro dia que não o domingo.[43] Os bretões do País de Gales conseguiram se manter firmes por muito tempo contra esse projeto predileto da igreja de Roma, e até o sexto século "resistiram com obstinação aos mandatos despóticos dos pontífices romanos".[44] Quatro anos após o início da batalha que acabamos de mencionar, chegamos ao testemunho de Tertuliano, o mais antigo dos pais latinos da igreja, que escreveu por volta de 200 d.C. O Dr. Clarke nos conta que os pais "oscilavam em suas ideias". Tertuliano é um bom exemplo disso. Ele afirma que o sábado surgiu na criação, mas, em outro lugar, diz que os patriarcas não o guardavam. Ele fala que Josué transgrediu o sábado em Jericó, e depois mostra que este não o transgrediu. Afirma que Cristo transgrediu o sábado, e, em outra passagem, prova que Ele não o fez. Ele classifica o oitavo dia como mais honroso que o sétimo, e, em outra parte, diz o contrário. Afirma que a lei foi abolida, e, em outros lugares, reafirma sua perpetuidade e autoridade. Declara que Cristo anulou o sábado, mas depois assevera que "Jesus não revogou o sábado de maneira nenhuma", mas comunicou "santidade adicional" ao "próprio dia de sábado, que desde o princípio havia sido consagrado pela bênção do Pai". Ele continua dizendo que Cristo "forneceu salvaguardas divinas a esse dia -- um procedimento que Seu adversário teria adotado com relação a outros dias, a fim de evitar honrar ao sábado do Criador". Essa última declaração é muito marcante. O Salvador forneceu salvaguardas adicionais ao sábado do Criador. Mas "Seu adversário" teria feito o mesmo com relação a outros dias. Em primeiro lugar, fica claro que Tertuliano não acreditava que Cristo havia santificado outro dia, colocando-o no lugar do sábado; em segundo lugar, que ele cria que a consagração de outro dia era obra do adversário de Deus! Quando ele escreveu essas palavras, certamente não cria que Cristo havia santificado o domingo. No entanto, Tertuliano e seus irmãos estavam observando, como uma festa, o dia em que o sol era adorado; e, em consequência, foram rotulados como adoradores do sol. Tertuliano nega a acusação, embora reconheça que havia certa aparência de verdade nela. Ele diz: "Outros, novamente, sem dúvida com mais informações e plausibilidade, creem que o sol é nosso Deus. Seremos considerados persas, talvez, embora não adoremos o astro do dia pintado em um tecido de linho, tendo-o por toda parte em sua forma circular. Essa ideia certamente se originou de saberem que nos voltamos para o leste ao orar. Mas vocês, muitos de vocês, fazendo parecer às vezes que estão adorando os astros celestes, movem os lábios para a direção do nascente. Do mesmo modo, se dedicamos o domingo ao regozijo por um motivo bem diferente da adoração ao sol, possuímos certa semelhança com aqueles dentre vocês que dedicam o dia de Saturno [o sábado] à tranquilidade e ao prazer, embora estes também se afastem bastante dos costumes judaicos, os quais desconhecem."[45] Tertuliano não cita nenhuma ordem divina, nem o exemplo dos apóstolos, para sustentar essa prática. Na verdade, ele não menciona nenhum motivo para observar o costume, embora insinue que tivesse um motivo para apresentar. Em outra obra, porém, ele acha necessário repudiar a mesma acusação de adoração ao sol feita contra ele por sua prática de guardar o dia do sol [o domingo]. Nessa segunda resposta, ele menciona mais especificamente o fundamento de sua defesa, e nela encontramos sua melhor razão para a observância desse dia. Estas são suas palavras: "Outros, com consideração maior pelas boas maneiras, deve-se confessar, supõem que o sol é o deus dos cristãos, pois é fato bem conhecido que oramos voltados para o leste, ou porque fazemos do dia do sol [o domingo] um dia de festividade. Qual o problema? Por acaso vocês fazem menos do que isso? Não há tantos dentre vocês que, desejando às vezes adorar os astros celestes, movem os lábios da mesma maneira na direção do nascer do sol? Foram vocês, de qualquer modo, que chegaram até a admitir o sol no calendário semanal, e escolheram o dia dele (o domingo), em preferência ao dia anterior, ou como o dia mais adequado da semana para uma abstinência completa de banho, ou pelo menos adiando-o até o fim da tarde, ou como dia para descansar e se banquetear. Ao lançarem mão de tais costumes, vocês se desviam deliberadamente de seus próprios ritos religiosos, aderindo a práticas de estrangeiros."[46] Tertuliano se refere, nesse discurso, às nações ainda idólatras. Em algumas delas, o dia do sol era uma festa antiga. Em outras, era relativamente recente. Mas alguns desses pagãos reprovavam os cristãos guardadores do dia do sol, dizendo que estes eram adoradores do sol. Agora preste atenção na resposta. Ele não diz: "Nós, cristãos, recebemos a ordem de celebrar o primeiro dia da semana em honra à ressurreição de Cristo". Sem dúvida, sua resposta era a melhor que ele sabia formular. É um mero retrucar, e consiste em declarar: primeiro, que os cristãos não estavam fazendo nada pior do que seus acusadores pagãos; e segundo, que eles tinham o mesmo direito de transformar o dia do sol em dia de festa que os pagãos! A origem da observância do primeiro dia tem sido o tema abordado neste capítulo. Já constatamos que, desde os tempos mais remotos, o domingo era uma festa pagã em honra ao sol e que, nos primeiros séculos da era cristã, essa antiga festa era venerada de forma generalizada no mundo pagão. Vimos que o "patriotismo" e a "conveniência", bem como o diligente desejo de conversão dos gentios, levaram os líderes da igreja a adotar, como festa religiosa, o mesmo dia observado pelos pagãos, e a manter o mesmo nome que os pagãos haviam dado a esse dia (dia do sol). Constatamos que o registro mais antigo da observância efetiva do domingo, pela igreja cristã, conta que esta foi realizada por parte da igreja de Roma, em torno de 140 d.C. Em uma coincidência sem precedentes, o primeiro grande esforço feito em favor desse dia, no ano 196 d.C., corresponde ao primeiro ato de usurpação papal. A primeira vez em que um título sagrado foi aplicado a essa festa, e o primeiro vestígio de abstinência do trabalho nesse dia, se encontram nos escritos de Tertuliano, perto do fim do segundo século. A origem da festa do domingo se encontra agora diante do leitor. Os passos que levaram a sua ascensão ao poder supremo serão destacados em sua própria ordem e em seu devido lugar. Um fato extremamente interessante concluirá este capítulo. O primeiro grande esforço para rebaixar o sábado foi o ato, por parte da igreja de Roma, de transformá-lo em um dia de jejum, ao passo que o domingo se tornou uma festa de alegria. Embora as igrejas orientais tivessem mantido a guarda do sábado, parte das igrejas do Ocidente, encabeçadas pela igreja de Roma, transformaram o dia em um jejum. Uma vez que uma parte das igrejas ocidentais se recusou a cumprir essa ordem, iniciou-se uma longa batalha, cujo resultado é descrito por Heylyn: "Essa diferença permaneceu por bastante tempo, até que, por fim, a igreja de Roma venceu a causa e o sábado se transformou em um jejum em todas as partes do mundo ocidental. Digo o mundo ocidental e apenas este. As igrejas do Oriente estavam tão longe de mudar seu antigo costume que, no sexto concílio de Constantinopla, em 692 d.C., elas admoestaram as igrejas de Roma para que deixassem de jejuar naquele dia sob pena de censura."[47] William James, em um sermão proferido na Universidade de Oxford, diz o seguinte sobre a época em que esse jejum surgiu: "A igreja ocidental começou a jejuar aos sábados no início do terceiro século."[48] Assim, pode-se ver que esse conflito se iniciou no terceiro século, isto é, logo depois do ano 200. Neander explica da seguinte forma os motivos da igreja de Roma para estabelecer esse jejum: "Nas igrejas ocidentais, sobretudo na de Roma, onde a oposição ao judaísmo era a tendência predominante, essa oposição levou ao costume de celebrar o sábado especialmente como dia de jejum."[49] Por judaísmo, Neander se refere à guarda do sétimo dia, o sábado, como dia de descanso. O Dr. Charles Hase, da Alemanha, descreve o objetivo da igreja de Roma em linguagem bem explícita: "A igreja romana considerava o sétimo dia um dia de jejum, em oposição direta àqueles que o viam como um dia de descanso [um sábado]. O domingo continuou a ser uma festividade de júbilo, na qual todo jejum e todos os afazeres mundanos eram tão evitados quanto possível; contudo, o mandamento original do decálogo a respeito do sábado não era aplicado a esse dia [o domingo] naquela época."[50] Lord King atesta esse fato nas seguintes palavras: "Algumas das igrejas ocidentais, a fim de não parecerem judaizantes, jejuavam aos sábados, conforme escreve Victorinus Petavionensis: 'Temos o costume de jejuar no sétimo dia. E é nosso hábito jejuar a fim de não parecer, como os judeus, que guardamos o sábado'."[51] Dessa forma, o sábado do Senhor se transformou em um jejum, de modo que parecesse desprezível aos olhos dos homens. Esse foi o primeiro grande esforço da igreja de Roma para suprimir o antigo sábado da Bíblia. Notas: 1. Vol. 18, p. 409. 2. Verstegan, Antiquities, p. 10, Londres, 1628. 3. Antiquities, p. 68. 4. Jewish Antiquities, livro 3, cap. 1. Ver também McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 4, p. 472, verbete "Idolatry"; Dr. A. Clarke sobre Jó 31:26; e Dr. Gill sobre a mesma passagem; o verbete "Sabianism" no dicionário Webster e "Sabian" no dicionário Worcester. 5. Idem, livro 3, cap. 3. 6. Vol. 18, p. 409. 7. P. 61, 62. 8. Dialogues on the Lord's day, p. 22, 23. 9. Apology, cap. 67; Testimony of the Fathers, p. 34, 35. 10. Apology, seção 16; Testimony of the Fathers, p. 64, 65. 11. Ad Nationes, livro 1, cap. 13; Testimony of the Fathers, p. 70. 12. Eccl. Hist., séc. 1, parte 2, cap. 4, nota à seção 4. 13. Eccl. Hist., séc. 2, parte 2, cap. 1, seção 12. 14. History of the Sabbath, parte 2, cap. 1, seção 12. 15. Idem, parte 2, cap. 3, seção 4. 16. Hist. of the Sabbath, parte 2, cap. 1, seção 10. 17. Examination of the Six Texts, Suplemento, p. 6, 7. 18. Du Pin, Eccl. Hist., vol. 1, p. 50. 19. Hist. Church, séc. 2, cap. 3. 20. Justino Mártir, First Apology, traduzida para o inglês por William Reeves, p. 127, seções 87, 88, 89. 21. The Spirit of Popery, p. 44, 45. 22. Ductor Dubitantium, parte 1, livro 2, cap. 2, regra 6, seção 45. 23. Brown's Translation, p. 48, 44, 52, 59, 63, 64. 24. Sabbath Manual, p. 121. 25. Dialogue with Trypho, p. 65. 26. Sabbath Manual, p. 114. 27. Examination of the Six Texts, p. 131, 132. 28. Idem, p. 128. 29. Idem, p. 130. 30. Ver o testemunho completo de Irineu em Testimony of the Fathers, p. 44-52. 31. Against Heresies, livro 4, cap. 16, seções 1, 2; idem, livro 5, cap. 28, seção 3. 32. Idem, livro 4, cap. 16, seções 1, 2. 33. Idem, livro 5, cap. 33, seção 2. 34. Against Heresies, livro 4, cap. 15, seção 1; cap. 13, seção 4. 35. Bower, History of the Popes, vol. 1, p. 18, 19; Rose's Neander, p. 188-190; Dowling, History of Romanism, livro 1, cap. 2, seção 9. 36. History of the Popes, vol. 1, p. 18. 37. History of Romanism, cabeçalho da p. 32. 38. History of the Popes, vol. 1, p. 18. 39. Idem, p. 18, 19; Giesler, Eccl. Hist., vol. 1, seção 57. 40. History of the Sabbath, parte 2, cap. 2, seções 4, 5. 41. Boyle, Historical View of the Council of Nice, p. 52, ed. 1842. 42. Hist. Sab., parte 2, cap. 2, seção 5. 43. Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 27. 44. Idem, cap. 38. 45. Tertuliano, Apology, seção 16. 46. Tertuliano, Ad Nationes, livro 1, cap. 13. 47. History of the Sabbath, parte 2, cap. 2, seção 3. 48. Sermons on the Sacraments and Sabbath, p. 166. 49. Neander, p. 186. 50. Ancient Church History, parte 1, div. 2, 100-312 d.C., seção 69. 51. Enquiry into the Constitution of the Primitive Church, parte 2, cap. 7, seção 11. Confira também Schaff, History of the Christian Church, vol. 1, p. 373. Capítulo 17 A Natureza da Observância Inicial do Primeiro Dia A história da observância do primeiro dia na igreja cristã pode ser adequadamente ilustrada pela história dos bispos de Roma. Hoje o bispo de Roma afirma ter poder supremo sobre todas as igrejas de Cristo. Ele assevera que esse poder foi dado a Pedro e transmitido, por ele, a todos os bispos de Roma; ou melhor, que Pedro foi o primeiro bispo de Roma e que uma sucessão de bispos, desde a época dele até o presente, tem exercido esse poder absoluto dentro da igreja. A Igreja Católica consegue traçar essa sucessão até os tempos apostólicos, e declara que o poder hoje reivindicado pelo papa era reivindicado e exercido pelos primeiros pastores da igreja dos romanos. Os que na atualidade reconhecem a supremacia do papa creem nessa declaração, e, para eles, ela constitui uma evidência definitiva de que o papa tem poder supremo por direito divino. Mas tal afirmação é absolutamente falsa. Os primeiros pastores, ou bispos, ou anciãos da igreja dos romanos, eram ministros de Cristo modestos e despretensiosos, completamente diferentes do arrogante bispo de Roma, que hoje usurpa o lugar de Cristo como cabeça da igreja cristã. Hoje o primeiro dia da semana reivindica ser o sábado cristão, e impõe sua autoridade por meio do quarto mandamento, deixando de lado o sétimo dia, que o mandamento ordena, e usurpando seu lugar. Seus defensores alegam que essa posição e autoridade foram dadas a esse dia por Cristo. Sendo que não existe nenhum registro nas Escrituras dessa dádiva de Cristo ao domingo, o principal argumento em apoio a essa alegação é fornecido traçando a origem de sua observância retroativamente até chegar aos primeiros cristãos, os quais, alega-se, não teriam santificado o domingo caso não tivessem recebido essa instrução dos apóstolos; e os apóstolos não os teriam ensinado a assim proceder se Cristo, na presença deles, não tivesse mudado o sábado. Contudo, a observância do primeiro dia não consegue chegar mais próxima da época dos apóstolos do que a data de 140 d.C., ao passo que os bispos de Roma conseguem traçar sua linhagem até a própria época dos apóstolos. Nesse ponto, a reivindicação papal à autoridade apostólica é melhor do que aquela que se apresenta em favor da observância do domingo como sendo o dia de descanso por autoridade apostólica. Com essa única exceção, o argumento histórico em favor de ambas reivindicações é o mesmo. Ambas começaram com pretensões bem moderadas, e, aos poucos, ganharam poder e santidade, crescendo juntas em força. Passemos, então, para aqueles que foram os primeiros guardadores do domingo, e desvendemos, por meio deles, a natureza dessa observância em seu início. Descobriremos, primeiro, que ninguém reivindicou qualquer autoridade divina para a observância do primeiro dia; segundo, que nenhum deles jamais ouvira falar da mudança do sábado, e ninguém acreditava que a festa do primeiro dia fosse uma continuação da instituição sabática; terceiro, que o trabalho nesse dia nunca é apresentado como sendo pecaminoso, e que a abstinência do trabalho não é mencionada, nem mesmo sugerida, como uma característica de sua observância, sendo necessária somente para passar uma parte do dia em adoração; quarto, que se reunirmos todas as pistas acerca da observância do domingo, espalhadas nos escritos dos pais dos três primeiros séculos -- vale dizer que nenhum deles fala mais de duas vezes sobre o assunto e, em geral, cada um faz apenas uma menção --, descobriremos apenas quatro coisas: (1) havia uma reunião nesse dia em que a Bíblia era lida e explicada, a ceia celebrada e as ofertas recolhidas; (2) o dia deveria ser de alegria; (3) não deveria ser um dia de jejum; (4) não se deveria orar de joelhos nesse dia. Essas são todas as pistas existentes acerca da natureza da observância do domingo ao longo dos três primeiros séculos. A epístola falsamente atribuída a Barnabé diz simplesmente: "Guardamos o oitavo dia com alegria".[1] Justino Mártir, nas palavras já citadas, na íntegra, descreve o tipo de reunião que acontecia em Roma e em seus arredores nesse dia, e isso é tudo que ele menciona acerca de sua observância.[2] Irineu ensinou que, a fim de comemorar a ressurreição, ninguém deveria dobrar os joelhos nesse dia, e não menciona mais nada como sendo essencial a sua honra. O ato de orar em pé era um símbolo da ressurreição, que, segundo ele, só deveria ser comemorada no domingo.[3] O gnóstico Bardesanes retrata cristãos de todas as partes se reunindo para realizar culto no primeiro dia, mas não descreve esse culto, e não acrescenta nenhum outro tipo de honra a esse dia.[4] Tertuliano descreve o domingo da seguinte forma: "Dedicamos o domingo ao regozijo", e depois acrescenta: "Possuímos certa semelhança com aqueles dentre vocês que dedicam o dia de Saturno à tranquilidade e ao prazer".[5] Em outra obra, ele nos dá mais uma ideia do caráter festivo do domingo, ao dizer a seus irmãos: "Se qualquer condescendência deve ser feita à carne, vocês a tem. Não quero me referir aos próprios dias de vocês, mas a mais do que isso; pois, para os pagãos, cada dia de festa só ocorre uma vez por ano, mas vocês têm um dia de festa a cada oitavo dia".[6] O Dr. Heylyn disse a verdade ao afirmar: "Tertuliano nos conta que eles dedicavam o domingo parcialmente à alegria e à recreação, e não totalmente à devoção. Cem anos depois dos dias de Tertuliano, não havia, na igreja cristã, nenhuma lei ou constituição para impedir os homens de trabalhar nesse dia."[7] A festa dominical na época de Tertuliano não se assemelhava a sua guarda moderna como sábado cristão; mas era, em essência, a festa germânica do domingo, um dia para adoração e recreação, no qual o trabalho não era pecaminoso. Mas Tertuliano diz ainda mais acerca da observância do domingo, e as palavras que serão citadas a seguir têm sido usadas como prova de que trabalhar nesse dia era considerado pecado. Esta é a única declaração anterior à lei dominical de Constantino que passa tal impressão, e há provas decisivas de que esse não era o significado pretendido por seu escritor. Suas palavras são estas: "Nós, porém (assim como recebemos), somente no dia da ressurreição do Senhor, devemos nos guardar, não só de nos ajoelhar, mas de toda postura e ocupação de preocupação, pospondo até mesmo nossos negócios, para não darmos lugar ao Diabo. De maneira semelhante, também, no período do Pentecostes, o qual distinguimos pela mesma solenidade de exultação."[8] Ele fala sobre pospor "até mesmo nossos negócios"; mas não se pode concluir daí que, com isso, ele esteja se referindo a algo além do mero adiamento desses negócios durante as horas dedicadas ao culto religioso. Ficou bem longe de dizer que trabalhar no domingo é pecado. Mas apresentaremos a próxima menção de Tertuliano sobre a observância do domingo antes de indicarmos alguns outros pontos sobre a citação anterior. Ele declara: "Consideramos ilícito jejuar ou se ajoelhar em adoração no dia do Senhor. Nós também nos alegramos no mesmo privilégio desde a Páscoa até o Pentecostes."[9] Há apenas dois atos que os pais da igreja consideravam ilícitos no domingo, a saber, jejuar e se ajoelhar, a menos que alguns incluam o luto nessa lista. É um fato evidente que o trabalho nunca é mencionado como sendo ilícito no domingo. E note que Tertuliano repete a importante declaração da citação anterior, de que a honra devida ao domingo também pertence ao "período do Pentecostes", isto é, aos cinquenta dias entre a Páscoa e o Pentecostes. Logo, se trabalhar aos domingos fosse pecado aos olhos de Tertuliano, o mesmo se aplicaria ao período do Pentecostes, um total de cinquenta dias! Mas isso não seria possível. Podemos até conceber o adiamento dos negócios para reservar um horário destinado à reunião religiosa a cada dia, ao longo dos cinquentas dias, e também que as pessoas não pudessem jejuar, nem se ajoelhar nesse período -- precisamente as coisas em que consistia a celebração religiosa do domingo. Contudo, fazer com que Tertuliano afirme que era pecado trabalhar no domingo seria o mesmo que fazê-lo declarar que esse também era o caso em todos os cinquenta dias. Certamente ninguém se aventuraria a afirmar que essa era a doutrina de Tertuliano. Em outra obra, Tertuliano faz mais uma declaração acerca da natureza da observância do domingo: "Fazemos do domingo um dia de festividade. Qual o problema? Por acaso vocês fazem menos do que isso?".[10] Se considerarmos que ele estava se dirigindo aos pagãos, suas palavras são significativas. Parece que o domingo era uma festa cristã tão parecida com a festa celebrada pelos pagãos, que ele podia desafiá-los a lhe mostrar em que sentido os cristãos lhes excediam em suas práticas dominicais. O próximo pai que menciona a natureza da observância inicial do domingo é Pedro de Alexandria. Ele afirma: "Mas celebramos o dia do Senhor como dia de alegria, porque nesse dia Ele ressuscitou, e nesse dia recebemos o costume de nem mesmo dobrar os joelhos".[11] O autor destaca duas coisas essenciais: o domingo deveria ser um dia de alegria, e nele os cristãos não poderiam se ajoelhar. Zonaras, antigo comentarista das palavras de Pedro, explica o dia de alegria dizendo: "Não devemos jejuar, pois é um dia de alegria pela ressurreição do Senhor".[12] Na sequência, citamos as chamadas Constituições Apostólicas. Elas ordenam que os cristãos se reúnam para adorar todos os dias, "mas principalmente no dia de sábado. E no dia da ressurreição de nosso Senhor, que é o dia do Senhor, que se reúnam com maior diligência, prestando louvores a Deus", etc. O objetivo da assembleia era "ouvir a palavra salvífica acerca da ressurreição", "orar três vezes de pé", ler os profetas, ouvir a pregação e participar da ceia.[13] Além de nos apresentar a natureza da adoração do domingo, conforme já descrita, essas constituições também nos dão uma ideia acerca do domingo como dia de festividade: "Agora nós os exortamos, irmãos e conservos, a evitar palavras vãs e discursos obscenos, zombarias, bebedeira, lascívia, luxúria, paixão desenfreada, com discursos insensatos, visto que não lhes permitimos, mesmo nos dias do Senhor, que são dias de alegria, que falem ou façam qualquer coisa imprópria."[14] Essa linguagem sugere claramente que o suposto dia do Senhor era um dia de maior regozijo que os outros dias da semana, mas que, mesmo no dia do Senhor, eles não deveriam falar ou fazer qualquer coisa imprópria, embora fique claro que tinham uma licença maior naquele dia do que nos outros. Mais uma vez, essas "Constituições" nos revelam a natureza da observância do domingo: "Em todos os sábados, com exceção de um, e em cada dia do Senhor, façam assembleias solenes e se alegrem, pois será considerado culpado de pecado aquele que jejuar no dia do Senhor".[15] Mas não é possível ler, nem uma vez sequer, que "será considerado culpado de pecado aquele que trabalhar nesse dia". Em seguida, citamos a epístola aos magnésios em sua forma mais longa, a qual, embora não seja de autoria de Inácio, foi de fato escrita na mesma época em que foram escritas as Constituições Apostólicas. Estas são as palavras da carta: "E após a observância do sábado, que cada amigo de Cristo guarde o dia do Senhor como uma festa, o dia da ressurreição, o rei e o principal de todos os dias."[16] O autor dos documentos siríacos sobre Edessa vem por último, definindo assim os cultos de domingo: "No primeiro [dia] da semana, que haja culto, a leitura das Sagradas Escrituras e a oblação".17 Essas são todas as passagens encontradas nos escritos dos três primeiros séculos que abordam a observância inicial do primeiro dia. Que o próprio leitor julgue se apresentamos corretamente a natureza dessa guarda. A seguir, pedimos atenção para os vários motivos apresentados pelos pais da igreja para a celebração da festa do domingo. A suposta epístola de Barnabé apoia a festa do domingo, dizendo que este era o dia "no qual Jesus ressuscitou dos mortos", e sugere que o mesmo prefigura o oitavo milênio, quando Deus criará o mundo novamente.[18] Justino Mártir menciona quatro razões: 1. "É o primeiro dia em que Deus, tendo operado uma mudança na escuridão e na matéria, criou o mundo."[19] 2. "Nosso Salvador Jesus Cristo ressuscitou dos mortos nesse mesmo dia."[20] 3. "É-nos possível demonstrar que o oitavo dia possuía certo caráter misterioso que o sétimo dia não tinha, e que foi promulgado por Deus mediante esses ritos",[21] isto é, através da circuncisão. 4. "A ordem da circuncisão, novamente, ordenando[-lhes] que sempre circuncidassem os filhos no oitavo dia de vida, era um tipo da circuncisão verdadeira, por meio da qual somos circuncidados do engano e da iniquidade, mediante Aquele que ressuscitou dos mortos no primeiro dia depois do sábado."[22] Clemente de Alexandria parece tratar apenas de um oitavo dia, ou de um dia do Senhor místico. É possível, talvez, que ele tenha feito alguma referência ao domingo. Por isso, citamos o que Clemente diz em favor desse dia, chamando a atenção para o fato de que ele baseia seu testemunho em um filósofo pagão, não na Bíblia: "Acerca do dia do Senhor, Platão fala profeticamente no décimo livro da República, usando as seguintes palavras: 'E quando sete dias tiverem se passado para cada um deles na planície, no oitavo dia devem partir e chegar em quatro dias.'"[23] As justificativas de Clemente para o domingo são extrabíblicas. Mas o próximo pai nos ajuda a compreender a atitude de Clemente. Tertuliano é o escritor seguinte a apresentar razões para a celebração da festa do domingo. Ele fala sobre as "ofertas pelos mortos", o modo de guardar o domingo e a prática de fazer o sinal da cruz na testa. Aqui está o fundamento em que se firmam essas observâncias: "Se vocês insistirem em encontrar ordens bíblicas claras para estas e outras regras, não as acharão. A tradição lhes será apresentada como sua originadora, o costume como aquilo que as fortalece, e a fé como o elemento que conduz à sua observância. Que a razão apoiará a tradição, o costume e a fé, vocês mesmos perceberão, ou aprenderão de quem já o percebeu."[24] A franqueza de Tertuliano merece ser elogiada. Ele não tinha nenhum texto bíblico para oferecer, e reconhece o fato. Baseava-se na tradição, e não teve vergonha de confessá-lo. O próximo pai a apresentar evidências das Escrituras a favor da festa dominical é Orígenes. Veja o que ele diz: "O maná caía no dia do Senhor, e não no sábado, para mostrar aos judeus que, mesmo naquela época, o dia do Senhor recebia preferência em relação ao sétimo."[25] Ao que parece, a opinião de Orígenes era semelhante à de Tertuliano, de que os argumentos mencionados por seus antecessores eram inconclusivos. Por isso, criou um argumento original que parecia ser muito conclusivo a seu ver, já que é o único apresentado por ele. Mas Orígenes deve ter se esquecido de que o maná caía em todos os seis dias de trabalho, ou teria visto que, embora o seu argumento não eleve o domingo acima dos outros cinco dias de trabalho, ele faz do sábado o dia menos conceituado dos sete! Todavia, o milagre do maná foi expressamente arquitetado para destacar a santidade do sábado e estabelecer sua autoridade diante do povo. Cipriano é o próximo pai que fornece um argumento a favor da festa do domingo. Ele se contenta com um dos antigos argumentos de Justino, aquele que era fundamentado na circuncisão. Ele diz o seguinte: "Pois a respeito da observância do oitavo dia na circuncisão judaica da carne, um sacramento foi dado de antemão como sombra e para ser usado; mas quando Cristo veio, ele se cumpriu em verdade. Uma vez que o oitavo dia, isto é, o primeiro dia após o sábado, seria aquele no qual o Senhor ressuscitaria dos mortos, nos vivificaria e nos daria a circuncisão do Espírito, o oitavo dia, a saber, o primeiro dia depois do sábado, e o dia do Senhor, ocorreu primeiro em figura. Logo que a verdade veio, a figura cessou e a circuncisão espiritual nos foi dada."[26] Esse é o único argumento mencionado por Cipriano em prol da festa do primeiro dia. A circuncisão de bebês com oito dias de vida era, em sua opinião, um tipo do batismo infantil. Mas a circuncisão no oitavo dia da vida da criança, a seu ver, não significava que o batismo precisava ser adiado até que o bebê completasse oito dias de vida, mas significava, de fato, conforme as palavras dele, que o oitavo dia deveria ser o dia do Senhor! Todavia, o oitavo dia no qual a circuncisão era feita não correspondia ao primeiro dia da semana, mas ao oitavo dia de vida de cada criança, não importando em que dia da semana caísse. O próximo pai a apresentar um motivo para celebrar o domingo como dia de alegria, e de se abster de ficar de joelhos, foi Pedro de Alexandria, que simplesmente disse: "Porque, nele, [Cristo] ressuscitou".[27] Na sequência, vêm as Constituições Apostólicas, que afirmam que a festa do domingo é um memorial da ressurreição: "Mas guardem o sábado e a festa do dia do Senhor, pois o primeiro é um memorial da criação, e o segundo, da ressurreição."[28] No entanto, o escritor não apresenta nenhuma prova de que o domingo foi separado por autoridade divina em memória da ressurreição. A próxima pessoa a apresentar seus motivos para a guarda do domingo "como uma festa" é o escritor da versão mais longa da famosa epístola de Inácio aos magnésios. Ele encontra o oitavo dia profeticamente predito no título do sexto e do décimo segundo salmo! Na margem da versão autorizada (KJV), a palavra Seminite é traduzida por "o oitavo". Este é o argumento do escritor a favor do domingo: "Aguardando ansioso por isso, o profeta declarou: 'Tendo como fim o oitavo dia', no qual nossa vida novamente ressurgiu e a vitória sobre a morte foi obtida em Cristo."[29] Há ainda outro pai, dos três primeiros séculos, que apresenta os motivos que, na época, eram usados para apoiar a festa do domingo. Trata-se do autor dos Documentos Siríacos sobre Edessa. Ele é o próximo e também conclui a lista. Estas são suas quatro justificativas: 1. "Porque no primeiro dia da semana nosso Senhor ressuscitou do lugar dos mortos."[30] 2. "No primeiro dia da semana Ele surgiu no mundo",[31] isto é, Ele nasceu no domingo. 3. "No primeiro dia da semana Ele subiu ao Céu."[32] 4. "No primeiro dia da semana Ele finalmente aparecerá com os anjos do Céu."[33] O primeiro desses motivos é o melhor argumento que o ser humano pode imaginar em seu coração para fazer aquilo que Deus nunca ordenou. O segundo e o quarto compreendem meras afirmações sobre as quais a humanidade nada sabe, ao passo que a terceira é uma notória inverdade, uma vez que a ascensão ocorreu em uma quinta-feira. Apresentamos até agora todas as razões para a celebração da festa do domingo que podem ser encontradas nos escritos dos três primeiros séculos. Embora sejam, em geral, muito triviais e, às vezes, até irrelevantes, são, todavia, dignas de cuidadoso estudo. Elas consistem em um testemunho decisivo de que a mudança, por Cristo ou Seus apóstolos, do sábado do sétimo dia para o primeiro dia da semana, era algo absolutamente desconhecido durante todo esse período. Caso fosse verdade que tal mudança fora feita, eles certamente deviam saber algo sobre ela. Se acreditassem que Cristo havia mudado o sábado para celebrar Sua ressurreição, teriam colocado ênfase no fato, em vez de oferecer justificativas para a festa dominical tão sem valor que, com exceção de uma ou duas, são completamente descartadas pelos escritores atuais que defendem o primeiro dia. Caso cressem que os apóstolos haviam honrado o domingo como se fosse o sábado ou o dia do Senhor, como teriam divulgado tais fatos em triunfo! Mas Tertuliano admite que eles não tinham nenhuma ordem bíblica clara para a celebração da festa do domingo, e os outros, ao apresentarem razões que eram frutos da própria imaginação, concordam com o testemunho dele. Como grupo, todos eles confirmam a realidade de que, mesmo a seu ver, o dia só era sustentado pela autoridade da igreja. Eles não estavam nem um pouco familiarizados com a doutrina moderna de que o sétimo dia do mandamento significa simplesmente um em sete, e que o Salvador, a fim de celebrar Sua ressurreição, designou que o primeiro dia da semana fosse o dia, entre os sete, ao qual o mandamento deveria ser aplicado! Mostramos cada uma das declarações dos pais da igreja, dos três primeiros séculos, que menciona a maneira de celebrar a festa do domingo. Apresentamos, também, todos os motivos para essa observância encontrados em seus escritos. Esses dois tipos de testemunho revelam, com clareza, que o trabalho comum não era uma das coisas proibidas nesse dia. Oferecemos prova direta de que outros dias, a respeito dos quais ninguém tem qualquer consideração a não ser como festivais da igreja, eram expressamente declarados pelos pais como iguais em santidade, ou até mesmo superiores, à festa do domingo. A obra Lost Writings of Irenaeus [Escritos Perdidos de Irineu] nos apresenta a opinião de Irineu acerca da comparação entre a santidade da festa do domingo e a da Páscoa, ou do Pentecostes. A declaração é a seguinte: "Nessa [festa] não dobramos os joelhos, porque ela tem a mesma importância do dia do Senhor, pelo motivo já mencionado a seu respeito."[34] Tertuliano possui uma passagem, já citada neste estudo, a qual, valendo-se da omissão da sentença que citaremos agora, tem sido usada como o mais forte testemunho dos pais a favor do primeiro dia. Esse pai da igreja iguala, em santidade, o período do Pentecostes -- um intervalo de cinquenta dias -- e a festa que ele chama de "dia do Senhor". Ele afirma: "De maneira semelhante, também, no período do Pentecostes, o qual distinguimos pela mesma solenidade de exaltação."[35] Ele declara o mesmo fato em outra obra: "Consideramos ilícito jejuar ou se ajoelhar em adoração no dia do Senhor. Nós nos alegramos no mesmo privilégio também desde a Páscoa até o Pentecostes."[36] Orígenes classifica o suposto dia do Senhor com três outras festas da igreja: "Caso nos seja dirigida objeção a esse respeito, sob o argumento de que nós estamos acostumados a observar determinados dias, como por exemplo o dia do Senhor, a Preparação, a Páscoa ou o Pentecostes, preciso responder que, para o cristão perfeito, que em pensamento, palavra e ação está sempre servindo a seu Senhor natural -- Deus, a Palavra --, todos os dias são do Senhor, e ele está sempre guardando o dia do Senhor."[37] Irineu e Tertuliano igualam o dia do Senhor, em santidade, ao período entre a Páscoa e o Pentecostes; mas Orígenes, após classificar o dia juntamente com várias festas da igreja, praticamente confessa que ele não tem nenhuma proeminência em relação aos outros dias. Comodiano, que usa uma vez o termo dia do Senhor, fala sobre a festa da Páscoa como "o nosso dia mais abençoado".[38] Sem dúvida, isso revela que, em sua opinião, nenhum outro dia sagrado era superior, em santidade, à Páscoa. As Constituições Apostólicas tratam da festa do domingo da mesma maneira que Irineu e Tertuliano a abordam. Elas a igualam, em santidade, ao período que vai da Páscoa até o Pentecostes, dizendo o seguinte: "É culpado de pecado aquele que jejua no dia do Senhor, sendo o dia da ressurreição, ou durante a época do Pentecostes, ou, de modo geral, que fica triste em um dia de festa ao Senhor."[39] Esses testemunhos provam, de maneira conclusiva, que a festa do domingo, na opinião de homens como Irineu, Tertuliano e outros, estava no mesmo patamar da Páscoa ou do Pentecostes. Eles não faziam ideia de que um era ordenado por Deus enquanto que os outros haviam sido instituídos pela igreja. Aliás, conforme vimos, Tertuliano declarou expressamente que não existe nenhum preceito em favor da observância do domingo.[40] Além desses fatos importantes, temos evidências claras de que o domingo não era um dia de abstenção do trabalho, e nossa primeira testemunha disso é Justino, o primeiro a mencionar a festa do domingo na igreja cristã. O judeu Trifão reprovou Justino: "Vocês não observam nenhuma festa, nem sábados".[41] A acusação fornecia a Justino a ocasião adequada para declarar que, embora ele não guardasse o sétimo dia como o sábado, descansava no primeiro dia da semana, caso fosse verdade que esse era um dia de abstenção do trabalho. No entanto, Justino não dá essa resposta. Ele trata com desprezo qualquer ideia que tenha que ver com abstenção de trabalho, declarando que "Deus não Se agrada de tais observâncias". Ele também não insinua que seu desprezo era devido ao fato de os judeus descansarem no dia incorreto; pelo contrário, ele condena até mesmo a ideia de deixar de trabalhar por um dia, afirmando que "a nova lei", que havia tomado o lugar dos mandamentos entregues no Sinai,[42] requeria um sábado perpétuo, guardado pelo arrependimento do pecado e abandono de sua prática. Suas palavras são estas: "A nova lei requer que vocês guardem um sábado perpétuo, e vocês, por ficarem ociosos durante um dia, acham que são piedosos, sem discernir por que isso lhes foi ordenado. E se vocês comem pão sem fermento, dizem que a vontade de Deus se cumpriu. O Senhor nosso Deus não Se agrada de tais observâncias. Se alguém entre vocês comete perjúrios ou é ladrão, que deixe de sê-lo; se há algum adúltero, que se arrependa. Assim ele estará guardando os agradáveis e verdadeiros sábados de Deus."[43] Essas palavras sugerem claramente que Justino não cria que qualquer dia deveria ser guardado, como sábado, por meio da abstinência do trabalho, mas que todos os dias deveriam ser guardados, como sábados, mediante a abstinência do pecado. Esse testemunho é inequívoco e se encontra em total harmonia com os fatos já extraídos dos pais, e com outros que ainda serão apresentados. Além disso, ele é confirmado pelo testemunho categórico de Tertuliano, que declara: "Nós (para quem os sábados são estranhos, bem como as luas novas e as festas amadas por Deus no passado) frequentamos a Saturnália, as festas de ano novo e da metade do inverno, e a Matronália."[44] E, no mesmo parágrafo, ele acrescenta as palavras já citadas: "Sempre que há oportunidade de condescender com a carne, vocês a agarram. Não direi os seus próprios dias, mas outros também; pois para os pagãos, cada dia de festa acontece apenas uma vez por ano; já vocês têm um dia de festa a cada oitavo dia."[45] Tertuliano diz a seus irmãos, em linguagem clara, que eles não guardavam nenhum tipo de sábado, mas observavam diversas festas pagãs. Caso a festa dominical, que era um dia em que havia a "oportunidade de condescender" com a carne, e que ele menciona nesse texto como o "oitavo dia", fosse guardada por eles como sábado cristão em lugar do antigo sétimo dia, ele não afirmaria que para eles "os sábados são estranhos". Mas Tertuliano defendia exatamente o mesmo sábado que Justino Mártir. Ele não guardava o primeiro dia em lugar do sétimo, mas guardava um "sábado perpétuo", no qual professava se abster do pecado todos os dias, e, ao mesmo tempo, não deixava de trabalhar em nenhum deles. Assim, depois de dizer que os judeus ensinam que "desde o princípio Deus santificou o sétimo dia" e, por isso, observam esse dia, ele afirma: "Por essa razão, nós [cristãos] entendemos que, com maior intensidade, devemos observar um sábado nos abstendo de toda 'obra servil' continuamente, e não só a cada sétimo dia, mas durante todo o tempo."[46] Sem dúvida, Tertuliano não tinha a concepção de que o domingo era o sábado cristão em um grau maior do que os demais dias da semana. Encontraremos uma confirmação decisiva disso quando citarmos o que Tertuliano diz a respeito da origem do sábado. Também descobriremos que, para Clemente, o domingo era um dia de trabalho. Vários dos primeiros pais escreveram oposições à observância do sétimo dia. Agora vamos mencionar os motivos apresentados por eles para essa oposição. O autor chamado Barnabé não guardava o sétimo dia, não por ser uma ordenança cerimonial indigna de ser observada por um cristão, mas, sim, por ser uma instituição tão pura que nem os cristãos poderiam santificá-lo antes que se tornassem imortais. Estas são suas palavras: "Atentem, meus filhos, para o significado desta expressão: 'Em seis dias fez o Senhor'. Isso significa que o Senhor há de terminar todas as coisas em seis mil anos, pois um dia para Ele é como mil anos. E Ele próprio testemunhou, dizendo: 'Eis que um dia é como mil anos'. Portanto, meus filhos, em seis dias, ou seja, em seis mil anos, todas as coisas serão terminadas. 'E no sétimo dia descansou'. Isso quer dizer: quando Seu Filho vier [outra vez], e destruir o tempo do homem perverso, julgar os ímpios, e mudar o sol, a lua e as estrelas, então Ele verdadeiramente descansará no sétimo dia. Além disso, Ele diz: 'Tu o santificarás com mãos puras e coração puro'. Portanto, se alguém alegar, no tempo presente, que pode santificar o dia que Deus santificou, como se tivesse coração puro em todas as coisas, está mentindo. Entendam: certamente o descanso apropriado que santifica o dia ocorrerá quando nós, depois de recebermos a promessa, a maldade não mais existir e todas as coisas tiverem sido renovadas pelo Senhor, conseguirmos operar a justiça. Então teremos condições de santificá-lo, uma vez que nós próprios estaremos santificados. Ele lhes diz ainda: 'Não consigo suportar vossas luas novas e vossos sábados'. Percebam como Ele fala: Os sábados atuais de vocês não Me são aceitáveis, mas eis aqui o que determinei: quando Eu der descanso a todas as coisas, darei início ao oitavo dia, isto é, o começo de um outro mundo. Por isso, também, guardamos o oitavo dia com alegria, que também é o dia no qual Jesus ressuscitou dos mortos."[47] Atente para as ideias encontradas nessa declaração doutrinária: 1. Ele afirma que os seis dias da criação prefiguram os seis mil anos que nosso mundo suportará em seu atual estado de maldade; 2. Ele ensina que, ao fim desse período, Cristo voltará outra vez e dará fim à maldade, "e então Ele verdadeiramente descansará no sétimo dia"; 3. Ninguém pode agora santificar o dia que Deus santificou, a menos que seja puro de coração em todas as coisas; 4. Mas esse não pode ser o caso até que o presente mundo passe e "nós, depois de recebermos a promessa, a maldade não mais existir e todas as coisas tiverem sido renovadas pelo Senhor, [consigamos] operar a justiça. Então teremos condições de santificá-lo, uma vez que nós próprios estaremos santificados". Logo, os seres humanos não têm condições de guardar o sábado enquanto este mundo mau existir; 5. Portanto, Deus diz: "Os sábados atuais de vocês não Me são aceitáveis", não por não serem puros, mas porque agora vocês não são capazes de guardá-los com a pureza que a natureza do dia requer; 6. Isso é o mesmo que afirmar que a guarda do dia que Deus santificou não é possível em um mundo mau como este; 7. Mas embora o sétimo dia não possa ser guardado agora, o oitavo dia pode ser e deve ser, porque, quando os sete mil anos acabarem, haverá uma nova criação no início do oitavo milênio; 8. Portanto, ele não tentava guardar o sétimo dia, que o Senhor havia santificado, pois tal dia era puro demais para ser observado no presente mundo mau, e só será guardado depois que o Salvador vier, no início do sétimo milênio; em vez disso, ele guardava alegremente o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos; 9. Assim, parece que o oitavo dia, que Deus nunca santificou, seria especialmente adequado para ser observado em nosso mundo, durante seu estado atual de maldade; 10. Mas quando todas as coisas se fizerem novas e tivermos condições de praticar a justiça, e a maldade não mais existir, então seremos capazes de santificar o sétimo dia, depois que nós mesmos formos santificados. O motivo de Barnabé para não observar o sábado do Senhor não é que o mandamento que o ordena tenha sido abolido, mas, sim, o fato de se tratar de uma instituição tão pura que os seres humanos, em seu estado atual imperfeito, não são capazes de o santificar de maneira adequada. Todavia, eles o guardarão na nova criação. Nesse meio tempo, eles observam o oitavo dia [o domingo] com alegria, dia que nunca foi santificado por Deus, e, por isso, não é difícil de ser guardado no presente estado de perversidade. Os motivos de Justino Mártir para não observar o sábado são bem diferentes dos de Barnabé, pois, ao que parece, Justino desprezava vigorosamente a instituição sabática. Ele nega que o sábado fosse obrigatório antes dos tempos de Moisés, e afirma que o mesmo foi abolido por ocasião do advento de Cristo. Ele ensina que o dia foi entregue aos judeus por causa de sua maldade, e defende claramente a abolição, tanto do sábado, quanto da lei. Justino está tão longe de ensinar a mudança do sábado, do sétimo para o primeiro dia da semana, ou de transformar a festa do domingo em uma continuação da antiga instituição sabática, que ele chega a desprezar até mesmo a ideia de haver dias de abstinência do trabalho, ou dias de ócio; e, muito embora Deus apresente como motivo para a observância do sábado o fato de Ele ter descansado, nesse dia, de toda Sua obra, Justino apresenta como primeiro motivo para a festa do domingo o fato de Deus ter iniciado, nesse dia, a Sua obra! Acerca da abstenção do trabalho como ato de obediência ao sábado, ele diz: "O Senhor nosso Deus não Se agrada de tais observâncias."[48] Justino apresenta um segundo motivo para não guardar o sábado: "Nós também observaríamos a circuncisão da carne, os sábados e, em suma, todas as festas, se não soubéssemos por que elas foram ordenadas a vocês, a saber, por causa das transgressões de vocês e da dureza do coração de vocês."[49] Visto que Justino jamais diferencia o sábado do Senhor dos sábados anuais, ele, sem dúvida, inclui aqui todos eles. Mas que tamanha falsidade afirmar que o sábado foi dado aos judeus por causa da maldade deles! A verdade é que ele foi dado aos judeus por causa da apostasia generalizada dos gentios.[50] Entretanto, no parágrafo a seguir, Justino menciona três outros motivos para não guardar o sábado: "Vocês percebem que os elementos não são ociosos e não guardam sábado algum? Permaneçam como vocês nasceram. Pois, se não havia necessidade de circuncisão antes de Abraão, ou de observância de sábados, ou de festas e sacrifícios antes de Moisés, não há necessidade de realizar essas coisas agora, depois que, de acordo com a vontade de Deus, Jesus Cristo, o Filho de Deus, nasceu sem pecado, de uma virgem pertencente ao tronco de Abraão."[51] Aqui há três motivos: 1. "Os elementos não são ociosos e não guardam sábado algum". Embora esse motivo seja simplesmente sem valor como argumento contra o sétimo dia, trata-se de uma confirmação indubitável do fato, já comprovado, de que Justino não considerava o domingo um dia de abstenção do trabalho; 2. O segundo motivo apresentado aqui é que o sábado não era guardado antes de Moisés; todavia nós sabemos que Deus, no princípio, designou o sábado para uso santo, fato que, conforme veremos, é testificado por vários dos pais da igreja. Nós também sabemos que naquela época havia homens que guardavam todos os preceitos de Deus; 3. Não há necessidade de guardar o sábado após Cristo ter vindo. Embora seja uma mera afirmação, não é fácil, para aqueles que apresentam Justino como defensor do sábado cristão, explicá-la de maneira justa. Outro argumento de Justino contra a obrigação do sábado é que Deus "dirige o governo do universo nesse dia da mesma maneira que em todos os outros!",[52] como se isso fosse inconsistente com a santidade presente do sábado, uma vez que também é verdade que Deus governou o mundo da mesma maneira no período em que Justino reconhece que o sábado foi obrigatório. Embora esse motivo seja trivial como argumento contra o sábado, ele certamente revela que Justino não atribuía caráter sabático ao domingo. Mas ele ainda tem mais um argumento contra o sábado: A antiga lei foi substituída pela nova e definitiva lei, e a antiga aliança foi superada pela nova.[53] Mas ele se esquece de que o propósito da nova aliança não era eliminar a lei de Deus, mas, sim, colocar essa lei dentro do coração de cada cristão. E muitos dos pais, conforme veremos, repudiam abertamente essa doutrina da anulação do decálogo. Esses eram os motivos de Justino para rejeitar o antigo sábado. Mas embora ele fosse um claro defensor da anulação da lei e da própria instituição sabática, guardando o domingo apenas como uma festa, autores modernos favoráveis ao primeiro dia citam-no como testemunha da doutrina de que o primeiro dia da semana deve ser observado como o sábado cristão, usando a autoridade do quarto mandamento. Vamos analisar agora o que impedia Irineu de guardar o sábado. Não era o fato de os mandamentos terem sido abolidos, pois veremos que ele ensinou sua perpetuidade; tampouco sua crença na mudança do sábado, pois ele não dá nenhuma pista de que acreditasse assim. Ao que tudo indica, a festa do domingo, a seu ver, simplesmente tinha o "mesmo significado" do Pentecostes.[54] Também não era porque Cristo teria transgredido o sábado, pois Irineu afirma que Ele não o fez.[55] Mas pelo fato de o sábado ser chamado de sinal, Irineu o considerou representativo do reino futuro e aparentemente não mais obrigatório, embora ele não expresse essa última ideia claramente. Para ele, o significado do sábado era o seguinte: "Além disso, os sábados de Deus, isto é, o reino, eram, por assim dizer, indicados pelas coisas criadas",[56] etc. "Estas [promessas aos justos] deverão [acontecer] nos tempos do reino, isto é, no sétimo dia que foi santificado, no qual Deus descansou de todas as obras que criou, ou seja, no verdadeiro sábado dos justos",[57] etc. "Pois o dia do Senhor é como mil anos: e em seis dias as coisas criadas foram concluídas; fica evidente, portanto, que elas chegarão ao fim no sexto milênio."[58] Mas Irineu não percebeu que o sábado como sinal não aponta para a restauração futura, mas, sim, para a criação, significando que o Deus verdadeiro é o Criador. (Êxodo 31:17; Ezequiel 20:12,20) Ele também não reparou no fato de que, quando o reino de Deus for estabelecido debaixo de todo o céu, todo ser vivo santificará o sábado. (Isaías 66:22, 23; Daniel 7:18, 27) No entanto, ele diz que aqueles que viveram antes de Moisés foram justificados "sem guardar o sábado", e oferece como prova disso o fato de que a aliança no Horebe não foi feita com os patriarcas. Contudo, se o argumento prova que os patriarcas estavam livres da obrigação do quarto mandamento, ele demonstraria, da mesma maneira, que eles podiam violar qualquer outro. Tais coisas indicam que Irineu se opunha à observância sabática, embora ele não afirme, em linguagem clara, sua anulação, mas declare, em termos inequívocos, a contínua validade dos dez mandamentos. Tertuliano apresenta vários motivos para não guardar o sábado, mas é difícil encontrar algum que ele não contradiga expressamente em outra passagem. Por exemplo, ele afirma que os patriarcas anteriores a Moisés não observavam o sábado.[59] Mas ele não apresenta nenhuma prova disso, e, em outro texto, diz que a origem do sábado se deu na criação,[60] conforme mostraremos. Em vários lugares, ele ensina a anulação da lei, parecendo descartar tanto a lei moral quanto a cerimonial. Mas em outra passagem, segundo mostraremos, ele dá um testemunho categórico de que os dez mandamentos continuam válidos como regra da vida do cristão.[61] Ele cita as palavras de Isaías que retratam Deus odiando as festas, as luas novas e os sábados observados pelos judeus (Isaías 1:13,14) como prova de que o sábado do sétimo dia foi uma instituição temporária que Cristo anulou. Mas, em outro lugar, diz: "Cristo não revogou o sábado de maneira nenhuma: Ele guardou a lei referente a esse dia".[62] Ele também explica justamente esse texto dizendo que a aversão divina aos sábados observados pelos judeus ocorria "porque eles eram celebrados sem o temor do Senhor, por um povo cheio de iniquidades", e acrescenta que o profeta, em uma passagem posterior que faz referência aos sábados celebrados segundo o mandamento divino, "declara que eles eram verdadeiros, deleitosos e invioláveis". (Isaías 56:2; 58:13) Outra afirmação é que Josué transgrediu o sábado durante o cerco de Jericó.[63] No entanto, em outro texto, ele explica justamente esse caso, demonstrando que o mandamento proíbe nossa própria obra, não a de Deus. "Aqueles que atuaram em Jericó não estavam realizando um trabalho para si, mas para Deus, executado por ordem expressa Dele".[64] Ele tanto afirma quanto nega que Cristo violou o sábado.[65] Tertuliano era um homem de duas opiniões. Ele escreveu muita coisa contra a lei e o sábado, mas também se contradisse e expôs os próprios erros. Orígenes tenta provar que o antigo sábado deve ser compreendido de forma mística ou espiritual, em vez de literal. Seu argumento é este: "'Cada um de vocês ficará sentado em sua habitação; ninguém se moverá de seu lugar no dia de sábado'. É impossível observar esse preceito de maneira literal, pois nenhum ser humano é capaz de ficar assentado o dia inteiro, sem sair do lugar onde se assentou."[66] Grandes homens nem sempre são sábios. Tal preceito não se encontra na Bíblia. Orígenes faz referência à proibição que o povo recebeu de sair para recolher o maná no sábado, mas isso não está em conflito com a ordem de comparecer às santas convocações ou assembleias para adorar no sábado. (Êxodo 16:29; Levítico 23:3) Vitorino é o último dos pais, antes de Constantino, a apresentar motivos contra a observância do sábado. Sua primeira razão é que Cristo disse, por meio de Isaías, que Sua alma odiava o sábado, o qual, em Seu corpo, Ele aboliu. Vimos que tais declarações foram respondidas por Tertuliano.[67] O segundo motivo é que "Jesus [ Josué], filho de Nave [Num], o sucessor de Moisés, ele próprio transgrediu o sábado",[68] mas isso é mentira. Sua terceira justificativa é que "Matias [um macabeu], um príncipe de Judá, também transgrediu o sábado",[69] afirmação indubitavelmente falsa, mas sem nenhuma consequência em termos de autoridade. Seu quarto argumento é original e apropriado para encerrar a lista dos motivos apresentados pelos primeiros pais para não guardar o sábado. Ele é apresentado na íntegra, sem necessidade de resposta: "E em Mateus nós lemos que está escrito que Isaías também, e o restante de seus colegas, transgrediram o sábado."[70] Notas: 1. Epístola de Barnabé, cap. 15. 2. Justino Mártir, First Apology, cap. 67. 3. Lost Writings of Irenaeus, fragmentos 7 e 50. 4. Book of the Laws of Countries. 5. Tertuliano, Apology, seção 16. 6. On Idolatry, cap. 14. 7. Hist. Sab., parte 2, cap. 8, seção 13. 8. Tertullian on Prayer, cap. 23; Testimony of the Fathers, p. 67. 9. De Corona, seção 3. 10. Ad Nationes, livro 1, cap. 13. 11. Canon 15. 12. Ante-Nicene Library, vol. 14, p. 322. 13. Apostolical Constitutions, livro 2, seção 7, parte 59. 14. Idem, livro 5, seção 2, parte 10. 15. Idem, livro 5, seção 3, parte 20. 16. Epístola aos magnésios (forma mais longa), cap. 9. 17. Syriac Documents, p. 38. 18. Epístola de Barnabé, cap. 15. 19. Justino Mártir, First Apology, cap. 67. 20. Ibid. 21. Diálogo com Trifão, cap. 24. 22. Idem, cap. 41. 23. Clement, Miscellanies, livro 5, cap. 14. 24. De Corona, seção 4. 25. Orígenes, Opera, Vol. 2, p. 158, Paris, 1733: "Quod si ex Divinis Scripturis hoc constat, quod die Dominica Deus pluit manna de caelo et in Sabbato non pluit, intelligant Judaei jam tune praelatam esse Dominicam nostram Judaico Sabbato". 26. Epístola de Cipriano, n. 58, seção 4. 27. Cânones de Pedro, n. 15. 28. Apostolic Constitutions, livro 7, seção 2, parte 23. 29. Epístola aos magnésios, cap. 9. Nota dos Editores em língua portuguesa: Na ARC, lê-se no título "sobre Seminite; na ARA, "em tom de oitava". 30. Syriac Documents, p. 38. 31. Ibid. 32. Ibid. 33. Ibid. 34. Fragmento 7. 35. Tertullian on Prayer, cap. 23. 36. De Corona, seção 3. 37. Orígenes contra Celso, livro 8, cap. 22. 38. Instructions of Commodianus, seção 75. 39. Apostolic Constitutions, livro 5, seção 3, parte 20. 40. De Corona, seções 3 e 4. 41. Diálogo com Trifão, cap. 10. 42. Idem, cap. 11. 43. Idem, cap. 12. 44. Tertullian on Idolatry, cap. 14. 45. Ibid. 46. Tertullian Against the Jews, cap. 4. 47. Epístola de Barnabé, cap. 15. 48. Diálogo com Trifão, cap. 12. 49. Idem, cap. 18. 50. Ver cap. 3 desta obra. 51. Diálogo com Trifão, cap. 23. 52. Idem, cap. 29. 53. Idem, cap. 11. 54. Lost Writings of Irenaeus, fragmento 7. 55. Against Heresies, livro 4, cap. 8, seção 2. 56. Idem, livro 4, cap. 16, seção 1. 57. Irenaeus against Heresies, livro 5, cap. 33, seção 2. 58. Idem, livro 5, cap. 28, seção 3. 59. Answer to the Jews, cap. 2. 60. Tertullian against Marcion, livro 4, cap. 12. 61. Compare suas obras Answer to the Jews, caps. 2, 3, 4, 6; Against Marcion, livro 1, cap. 20; livro 5, caps. 4, 19 com De Anima, cap. 37; On Modesty, cap. 5. 62. Answer to the Jews, cap. 4; Against Marcion, livro 4, cap. 12. 63. Answer to the Jews, cap. 4; Against Marcion, livro 4, cap. 12. 64. Against Marcion, livro 2, cap. 21. 65. Against Marcion, livro 4, cap. 12. 66. De Principiis, livro 4, cap. 1, seção 17. 67. Creation of the World, seção 4. 68. Idem, seção 5. 69. Ibid. 70. Creation of the World, seção 5. Capítulo 18 O Sábado nos Registros dos Primeiros Pais Os motivos apresentados pelos primeiros pais para negligenciar a observância do sábado mostram, de maneira conclusiva, que eles não tinham nenhuma luz especial sobre o assunto por viverem nos primeiros séculos a qual nós, na atualidade, não possuímos. A verdade é que muitos dos motivos que eles mencionam são tão claramente falsos e absurdos que, aqueles que descartam o sábado na atualidade, também descartam a maioria das justificativas apresentadas por esses pais contra o sábado. Também já vimos, por meio daqueles dentre os primeiros pais que mencionam a observância do primeiro dia, qual era a natureza exata da festa do domingo, e todos os motivos apresentados nos primeiros séculos para apoiá-la. Muito poucas dessas razões são citadas hoje pelos autores modernos que defendem o primeiro dia. Mas alguns dos pais dão testemunho enfático quanto à perpetuidade dos dez mandamentos, e dizem que sua observância era uma condição para a vida eterna. Alguns deles também afirmam especificamente que o sábado se originou na criação. Além disso, vários dão testemunho da existência de guardadores do sábado, ou apresentam testemunho decisivo acerca da perpetuidade da obrigação do sábado, ou definem a natureza da observância apropriada do sábado, ou ainda conectam a guarda do sábado com a do primeiro dia. Ouçamos agora o testemunho daqueles que confirmam a autoridade dos dez mandamentos. Irineu diz que eles são perpétuos e consistem em um teste do caráter cristão: "Pois Deus, no princípio, advertindo [aos judeus] por meio de preceitos naturais, os quais desde o princípio Ele implantou na humanidade, isto é, por meio do decálogo (e se alguém não os observa, não tem salvação), não exigiu mais nada deles nessa época."[1] Essa é uma declaração muito forte. Irineu diz que os dez mandamentos correspondem à lei natural implantada no coração do ser humano no princípio, sendo, portanto, herdada por toda a raça humana. Sem dúvida, isso é verdade. É a presença da mente carnal, ou da lei do pecado e da morte, implantada no ser humano por ocasião da queda, que obliterou parcialmente essa lei e tornou necessária a obra da nova aliança. (Jeremias 31:33; Romanos 7:21--5; 8:1-7) Mais uma vez, ele confirma a perpetuidade e a autoridade dos dez mandamentos: "Preparando o ser humano para esta vida, o próprio Senhor proferiu pessoalmente a todos as palavras do decálogo. Portanto, de maneira semelhante, os mandamentos continuam conosco de forma permanente, recebendo, por meio de Seu advento na carne, extensão e ampliação, mas não anulação."[2] Ao falar sobre a "extensão" do decálogo, Irineu, sem dúvida, se refere à exposição, feita pelo Salvador, do significado dos mandamentos no Sermão do Monte. (Mateus 5-7) Teófilo fala de maneira semelhante a respeito do decálogo: "Pois Deus nos concedeu uma lei e santos mandamentos, e todo aquele que os guarda pode ser salvo, e, alcançando a ressurreição, pode herdar a incorrupção."[3] "Temos aprendido de uma santa lei, mas temos como legislador Aquele que é verdadeiramente Deus, o qual nos ensina a agir com justiça, a ser piedosos e a fazer o bem."[4] "Sobre essa grande e maravilhosa lei que conduz a toda justiça, as dez cabeças são aquelas as quais nós já mencionamos."[5] Tertuliano chama os mandamentos de "regras de nossa vida regenerada", isto é, as regras que governam a vida do homem convertido: "Aqueles que teorizam acerca de números, honram o algarismo dez como o pai de todos os outros e como aquele que comunica perfeição ao nascimento humano. De minha parte, prefiro ver essa medida de tempo em referência a Deus, como se ela significasse, mais propriamente, que os dez meses [de gestação] introduziram o ser humano aos dez mandamentos, de forma que a estimativa numérica do tempo necessário para consumar nosso nascimento natural correspondesse à classificação numé- rica das regras de nossa vida regenerada."[6] Ao demonstrar a profunda culpa ligada à violação do sétimo mandamento, Tertuliano fala da santidade dos mandamentos que o antecedem, citando vários em particular, e, dentre eles, o quarto; então afirma, sobre o preceito do adultério, que ele permanece "na dianteira da santíssima lei, entre os principais preceitos do edito celestial."[7] Clemente de Roma, ou melhor, o autor cujas obras foram atribuídas a esse pai, diz o seguinte acerca do decálogo como um teste: "Portanto, por causa desses que, por negligenciarem a própria salvação, agradam o maligno, e daqueles que, considerando seu próprio benefício, procuram agradar Aquele que é bom, dez coisas foram prescritas como teste para esta presente era, de acordo com o número das dez pragas trazidas sobre o Egito."[8] Novaciano, que escreveu por volta de 250 d.C., é considerado o fundador da seita chamada Catarios ou puritanos. Ele escreveu um tratado sobre o sábado, que não se encontra disponível. Não há nenhuma referência ao domingo em qualquer de seus escritos. Ele faz os seguintes comentários surpreendentes a respeito da lei moral: "A lei foi dada aos filhos de Israel para este propósito: para que eles pudessem se beneficiar dela e retornar àqueles costumes virtuosos que, embora os tivessem recebido dos pais, foram corrompidos por eles no Egito, por causa de seu envolvimento com um povo estrangeiro. Por fim, também, aqueles dez mandamentos nas tábuas não ensinam nada de novo, mas os relembram daquilo que havia sido obliterado -- a fim de que a justiça neles, que estivera adormecida, pudesse ser reavivada novamente como pelo sopro da lei, à semelhança de uma fogueira [a ponto de extinguir-se]."[9] Fica evidente que, pelo julgamento de Novaciano, os dez mandamentos não ordenavam nada que já não fosse considerado santo pelos patriarcas antes de Jacó ir para o Egito. Conclui-se, portanto, que, em sua opinião, o sábado foi instituído, não na queda do maná, mas, sim, quando Deus santificou o sétimo dia, e que os homens santos das eras mais remotas o observaram. As Constituições Apostólicas, escritas por volta do terceiro século, explicam o que era amplamente considerado como doutrina apostólica no terceiro século. Elas dizem o seguinte a respeito dos dez mandamentos: "Tenha diante dos seus olhos o temor de Deus, e sempre se lembre dos dez mandamentos do Senhor: amar o único Senhor Deus com toda sua força; não dar ouvido a ídolos, nem a outros seres, considerando-os como deuses sem vida, ou seres irracionais, ou demônios."[10] "Ele deu uma lei clara para auxiliar a lei natural, uma lei pura, salvadora e santa, na qual Seu próprio nome estava inscrito, perfeita e que nunca falhará, sendo completa em dez mandamentos, sem mácula, que converte as almas."[11] Esse autor, assim como Irineu, acreditava na identificação do decálogo com a lei natural. Tais testemunhos mostram que, nos escritos dos primeiros pais, encontram-se algumas das declarações mais fortes a favor da perpetuidade e da autoridade dos dez mandamentos. Ouçamos agora o que eles dizem acerca da origem do sábado na criação. A epístola atribuída a Barnabé afirma: "E Ele diz em outro lugar: 'Se Meus filhos guardarem o sábado, então farei Minha misericórdia repousar sobre eles'. O sábado é mencionado no início da criação [assim]: 'E Deus fez em seis dias as obras de Suas mãos, e finalizou no sétimo dia, e nele descansou e o santificou.'"[12] Irineu parece associar claramente a origem do sábado com a santificação do sétimo dia: "Estas [coisas prometidas] irão [acontecer] nos tempos do reino, isto é, no sétimo dia, que foi santificado, no qual Deus descansou de todas as obras que criou, que é o verdadeiro sábado, no qual não deverão se envolver em qualquer ocupação terrena."[13] Tertuliano, de igual modo, liga a origem do sábado com "a bênção do Pai": "Mas visto que o nascimento se completa também no sétimo mês, eu reconheço mais prontamente nesse número do que no oitavo a honra de harmonia numérica com o período sabático. Assim, o mês em que a imagem de Deus é às vezes produzida em um nascimento humano, corresponde, numericamente, ao dia em que a criação divina foi concluída e santificada."[14] "Pois, até mesmo no caso diante de nós, Ele [Cristo] cumpriu a lei, ao interpretar a condição dela. [Além disso], Ele mostra de modo claro os diferentes tipos de obras, enquanto fazia aquelas que estavam dentro dos limites da santidade do sábado, [e] enquanto conferia ao próprio dia de sábado, que desde o princípio fora consagrado pela bênção do Pai, uma santidade adicional por meio de Sua própria ação beneficente."[15] Orígenes, que, conforme vimos, cria em um sábado místico, fixou, no entanto, a origem do sábado na santificação do sétimo dia: "Pois ele [Celso] nada sabe sobre o dia de sábado e descanso de Deus, que ocorreu após o término da criação do mundo, e que dura enquanto o mundo existir, e no qual todos aqueles que tiverem feito todas as suas obras em seus seis dias guardarão uma festa com Deus."[16] O testemunho de Novaciano a respeito da santidade e autoridade do decálogo indica, com toda clareza, a existência do sábado na era patriarcal, e sua observância por aqueles homens santos da antiguidade. O dia foi concedido a Israel a fim de que pudessem "retornar àqueles costumes virtuosos que, embora os tivessem recebido dos pais, foram corrompidos por eles no Egito". Então ele acrescenta: "Aqueles dez mandamentos nas tábuas não ensinam nada de novo, mas os relembram daquilo que havia sido obliterado".[17] Portanto, ele não cria que o sábado havia se originado com a queda do maná, mas considerava que era uma das coisas que foram praticadas pelos pais antes de Jacó descer ao Egito. Lactâncio afirma que o sábado se originou na criação: "Deus concluiu o mundo e esta admirável obra da natureza no espaço de seis dias (conforme se encontra relatado nos segredos das sagradas Escrituras) e consagrou o sétimo dia no qual descansou de Suas obras. Mas esse é o dia de sábado, que, na linguagem dos hebreus, recebeu seu nome do número, razão pela qual o sétimo é o número legítimo e completo."[18] Em um poema sobre Gênesis escrito por volta da época de Lactâncio, de autoria desconhecida, encontramos um testemunho explícito da designação divina do sétimo dia para uso santo, quando o ser humano ainda se encontrava no Éden, o jardim de Deus: "Veio o sétimo dia, quando Deus descansou ao fim de Sua obra, decretando que o dia fosse santo para as alegrias da era vindoura."[19] As Constituições Apostólicas, ao ensinarem que o sábado é atualmente obrigatório, indicam com clareza que sua origem ocorreu na Criação: "Ó Senhor Todo-Poderoso, Tu criaste o mundo por intermédio de Cristo, e instituíste o sábado em memória da Criação, porque nesse dia Tu nos fizeste descansar de nossas obras, para a meditação nas Tuas leis."[20] Esses são os testemunhos dos primeiros pais quanto à antiga origem do sábado e quanto à santidade e obrigação perpétua dos dez mandamentos. Chamamos agora a atenção para aquilo que eles dizem acerca da perpetuidade do sábado e de sua observância nos séculos em que viveram. Tertuliano define a relação de Cristo com o sábado: "Ele foi chamado de 'Senhor do sábado' porque afirmava que o sábado era Sua própria instituição."[21] Ele declara que Cristo não aboliu o sábado: "Cristo não revogou o sábado de maneira nenhuma: Ele guardou a lei referente a esse dia. No caso anterior, realizou uma obra benéfica para a vida de Seus discípulos (pois permitiu que se alimentassem quando estavam famintos), e, neste caso, curou a mão ressequida. Em ambas as situações, deixou que os fatos anunciassem: 'Não vim para destruir a lei, mas, sim, para cumpri-la'."[22] Também não se pode dizer que Tertuliano, apesar de negar que Cristo havia abolido o sábado, acreditava que Ele havia transferido a santidade do sétimo para o primeiro dia da semana, pois o autor continua: Ele [Cristo] mostra de modo claro os diferentes tipos de obras, enquanto fazia aquelas que estavam dentro dos limites da santidade do sábado, [e] enquanto conferia ao próprio dia de sábado, que desde o princípio fora consagrado pela bênção do Pai, uma santidade adicional por meio de Sua própria ação beneficente. Pois Ele forneceu salvaguardas divinas a esse dia -- um procedimento que Seu adversário teria adotado com relação a outros dias, a fim de evitar honrar ao sábado do Criador e restituir ao sábado as obras apropriadas para esse dia."[23] Essa é uma declaração muito notável. A doutrina moderna da mudança do sábado era desconhecida na época de Tertuliano. Se existisse naquela época, não há dúvida de que, nas palavras que acabei de citar, esse pai da igreja estaria desferindo sobre tal doutrina um pesado golpe. O que Tertuliano afirma que o adversário de Cristo, Satanás, gostaria que Ele tivesse feito para com o sábado é justamente o que os autores modernos, defensores do primeiro dia, declaram que Cristo, de fato, fez ao consagrar um outro dia, em vez de aumentar a santidade do sábado de Seu Pai. Arquelau de Cascar, na Mesopotâmia, nega enfaticamente a abolição do sábado: "Mais uma vez, no que se refere à alegação de que o sábado foi abolido, nós negamos claramente que Ele o tenha abolido, pois Ele próprio era também Senhor do sábado."[24] Justino Mártir, conforme vimos, era um declarado oponente da observância sabática e da autoridade da lei de Deus. Ele de modo algum era sempre imparcial naquilo que dizia. Ele teve oportunidade de se referir àqueles que guardavam o sétimo dia, e o fez com desprezo. Assim, ele diz: "Mas se alguns, de mente fraca, que desejam observar as instituições entregues a Moisés (das quais esperam alguma virtude, mas que cremos terem sido designadas por causa da dureza do coração do povo) junto com sua esperança nesse Cristo e [desejam realizar] as obras eternas e naturais de justiça e piedade, e, contudo, escolhem viver com os cristãos e os fiéis, conforme disse antes, sem induzi-los a se circuncidar como eles, ou a guardar o sábado, ou a observar qualquer outra dessas cerimônias, então eu julgo que deveríamos nos unir a tais pessoas e nos associar a elas em todas as coisas, como parentes e irmãos."[25] Tais palavras se referem a cristãos guardadores do sábado. Os que dentre eles tinham ascendência judaica, sem dúvida, no geral, continuaram a praticar a circuncisão. Mas havia muitos cristãos gentios que guardavam o sábado, conforme veremos, porém não é verdade que praticavam a circuncisão. Justino afirma que essa classe agia com "mente fraca", mas inadvertidamente fala sobre a guarda dos mandamentos como a realização das "obras eternas e naturais de justiça", uma designação mais que apropriada. Justino estava disposto a ter comunhão com pessoas que agiam assim, desde que aceitassem se relacionar com ele segundo as restrições a elas impostas. Mas embora Justino afirme que, respeitadas as condições, viveria em comunhão com tais irmãos de "mente fraca", ele diz que havia alguns que "não se aventuram a ter qualquer tipo de relacionamento com essas pessoas ou lhes estender hospitalidade; mas eu não concordo com eles".[26] Isso revela o espírito amargo que prevalecia em alguns lugares contra o sábado, já desde a época de Justino. Justino não expressa nenhuma palavra de condenação a esses cristãos intolerantes; ele só estava preocupado com a possibilidade de que aqueles que realizavam as "obras eternas e naturais de justiça" viessem a condenar quem não as cumpria. Clemente de Alexandria, embora um escritor místico, dá um testemunho importante quanto à perpetuidade do antigo sábado e da necessidade presente de guardá-lo. Ele comenta o seguinte em relação ao quarto mandamento: "A quarta palavra é aquela que anuncia que o mundo foi criado por Deus e que Ele nos deu o sétimo dia como um descanso, por causa das dificuldades que existem na vida; pois Deus é incapaz de Se cansar, sofrer e passar necessidade. Mas nós, que existimos na carne, necessitamos de descanso. Por isso, o sétimo dia é proclamado como um descanso -- distração dos problemas --, preparando-nos para o dia primordial, nosso descanso verdadeiro."[27] Clemente reconhecia a autoridade da lei moral, pois aborda os dez mandamentos, um por um, e mostra o que cada um deles ordena. Ele ensina com clareza que o sábado foi feito para o homem, e que este agora precisa dele como dia de descanso. Além disso, sua linguagem indica que o sábado foi instituído na Criação. No parágrafo seguinte, porém, ele faz algumas sugestões curiosas e dignas de nota: "Tendo chegado a esse ponto, é importante mencionar, a propósito, essas coisas, uma vez que o discurso passou a se referir ao sétimo e ao oitavo. Pois o oitavo pode, possivelmente, acabar sendo propriamente o sétimo, e o sétimo, manifestamente o sexto, e o último, propriamente o sábado, e o sétimo, um dia de trabalho. Pois a Criação do mundo foi concluída em seis dias."[28] Essas palavras têm sido citadas para mostrar que Clemente chamava o oitavo dia, ou domingo, de sábado, ou dia de descanso sabático. De modo geral, porém, os autores que defendem o primeiro dia não ousam se comprometer com tal interpretação, e alguns a descartaram categoricamente. Analisemos essa declaração com cuidado especial. Ele fala sobre os números ordinais "sétimo" e "oitavo" de maneira abstrata, mas provavelmente em referência aos dias da semana. Observe, então, que: 1. Ele não afirma que o oitavo dia se tornou o sábado em lugar do sétimo, o qual desempenhava esse papel no passado, mas, sim, que o oitavo dia pode, possivelmente, acabar sendo propriamente o sétimo. 2. Na época de Clemente, 194 d.C., não havia confusão na mente das pessoas sobre qual era o antigo sábado e qual era o primeiro dia da semana, ou o oitavo dia, conforme era frequentemente chamado, e ele não insinua que isso existia. 3. Mas Clemente, por algum motivo, afirma que possivelmente o oitavo dia deveria ser contado como o sétimo, e o sétimo dia, como o sexto. Se isso fosse feito, haveria a mudança da numeração dos dias, não só até a ressurreição de Cristo, mas, voltando ao passado, até a Criação. 4. Portanto, se nesta passagem ele desejava ensinar que o domingo era o sábado, teríamos que concluir que ele mantinha a opinião de que sempre fora assim. 5. Mas note que, embora ele altere a numeração dos dias da semana, ele não muda o sábado de um dia para o outro. Ele diz que o oitavo pode, possivelmente, ser o sétimo; e o sétimo, manifestamente o sexto, e o último, ou este [último mencionado], propriamente o sábado, e o sétimo, um dia de trabalho. 6. A expressão "o último" deve ser compreendida como uma referência ao último dia mencionado, que ele diz que deveria ser chamado não de sétimo, mas de sexto; e, ao falar "o sétimo", ele certamente deve estar se referindo ao oitavo dia, ou seja, ao domingo, que ele diz, na citação sob análise, que "poderia terminar por ser de maneira apropriada o sétimo." Resta apenas uma dificuldade a ser solucionada, a saber: por que ele estaria sugerindo a mudança da contagem dos dias da semana, diminuindo um número da contagem de cada dia, fazendo com que, nessa contagem, o sábado seja o sexto dia em vez do sétimo, e o domingo seja o sétimo dia em lugar do oitavo? A resposta parece não ter sido notada pelos autores antissabatistas e defensores do primeiro dia, quando estes tentaram encontrá-la. Mas existe um fato que resolve o problema. O comentário de Clemente sobre o quarto mandamento, do qual essas citações são retiradas, é composto principalmente por observações curiosas sobre "o perfeito número seis", "o número sete [como] órfão de mãe e sem filhos", e o número oito, que é "um cubo", e ideias semelhantes. O comentário é extraído, com algumas mudanças, quase palavra por palavra, de Filo, o judeu, mestre que ganhou notoriedade em Alexandria cerca de um século antes de Clemente. Quem se der ao trabalho de comparar esses dois autores encontrará em Filo praticamente todas as ideias e ilustrações que Clemente usou, e até mesmo as próprias palavras nas quais ele as expressa.[29] Filo foi um professor místico, que Clemente respeitava como mestre. Uma afirmação que encontramos em Filo, que tem ligação imediata com várias ideias curiosas citadas por Clemente com base nele, contém, sem sombra de dúvida, a chave para a sugestão de Clemente de que possivelmente o oitavo dia poderia ser chamado de sétimo, e o sétimo, de sexto. Filo afirmou que, segundo o propósito divino, o primeiro dia do tempo não deveria ser numerado junto com os outros dias da semana da Criação. Observe o que ele diz: "Ele distribuiu cada um dos seis dias a uma das porções do todo, retirando o primeiro dia, que Ele nem mesmo chama de primeiro dia, para que não fosse numerado com os outros, mas, intitulando-o um, Ele o nomeia corretamente, percebendo nele, e atribuindo a ele, a natureza e a designação de limite."[30] Essa contagem de Filo, que depois foi parcialmente adotada por Clemente, simplesmente mudaria a numeração dos dias. Tal mudança, portanto, faz com que o sábado se torne, não o sétimo dia, mas, sim, o sexto; e o domingo, não o oitavo dia, mas o sétimo. Tanto o sábado quanto o domingo permaneceriam sendo os mesmos dias de antes, mas essa contagem daria ao sábado o nome de sexto dia, uma vez que o primeiro dos seis dias da criação não estaria sendo contado. Além disso, levaria o oitavo dia, assim denominado na igreja primitiva por ocorrer depois do sábado, a ser chamado de sétimo dia. Assim, o sábado seria o sexto dia e o sétimo, um dia de trabalho; porém, o sábado continuaria a ser o mesmo dia que sempre fora, e o domingo, embora chamado de sétimo dia, permaneceria, como sempre, um dia no qual o trabalho comum era lícito. É claro que a ideia de Filo de que o primeiro dia do tempo não deveria ser contado é completamente falsa, pois não há nenhum fato na Bíblia para apoiá-la, mas muitos fatos que a contradizem claramente; e até mesmo Clemente, com toda sua deferência a Filo, apenas a sugere timidamente. Mas quando a questão é esclarecida, fica evidente que Clemente não tinha intenção alguma de chamar o domingo de sábado, e que ele categoricamente confirma o que já foi claramente provado com base nos outros pais: que o domingo era um dia no qual, na opinião deles, não era pecado trabalhar. Tertuliano, em diferentes períodos da sua vida, defendeu opiniões distintas a respeito do sábado e escreveu todas elas. Sua última citação mencionada compreende um testemunho decisivo sobre a perpetuidade do sábado e um testemunho igualmente claro contra a santificação do primeiro dia da semana. Em outra obra, da qual já citamos sua declaração de que os cristãos não deveriam se ajoelhar no domingo, encontramos outra afirmação de que "uns poucos" se abstinham de se ajoelhar aos sábados. É provável que a passagem faça referência a Cartago, onde Tertuliano morava. Ele diz o seguinte: "Ainda sobre o assunto de se ajoelhar, a oração está sujeita a uma diversidade de observâncias, mediante o ato de uns poucos que se abstêm de se ajoelhar aos sábados. E visto que essa divergência está sendo vivenciada nas igrejas, o Senhor dará a graça de que os dissidentes cedam ou então pratiquem sua opinião sem ofender os outros."[31] O ato de ficar de pé durante a oração era uma das principais honras concedidas ao domingo. Aqueles que não se ajoelhavam no sétimo dia, certamente não o faziam porque desejavam honrar esse dia. Esse ato específico não tem importância, pois foi adotado como imitação daqueles que, seguindo a tradição e o costume, honravam desse modo o domingo. Mas, sem dúvida, encontramos aqui uma referência a cristãos guardadores do sábado. No entanto, Tertuliano se refere a eles de maneira bem diferente da de Justino, em sua alusão aos guardadores do mandamento de sua época. Orígenes, assim como muitos outros pais, estava longe de ser consistente em seus pontos de vista. Embora tenha falado contra a observância sabática e honrado o suposto dia do Senhor como algo superior ao antigo sábado, ele mesmo assim fez um discurso claramente destinado a ensinar os cristãos sobre a maneira apropriada de se observar o sábado. Eis um trecho desse sermão: "Mas qual é a festa do sábado, senão aquela acerca da qual o apóstolo diz: 'Permanece, portanto, um sábado', isto é, a observância do sábado pelo povo de Deus? Desconsiderando as observâncias judaicas do sábado, vejamos como o sábado deve ser guardado por um cristão. No dia de sábado, é preciso se abster de todos os labores mundanos. Logo, se vocês deixam de lado todas as obras seculares, e não realizam nada mundano, mas se entregam a exercícios espirituais, indo à igreja, participando da leitura e instrução sagrada, pensando nas coisas celestiais, ansiosos pelo futuro, colocando o juízo vindouro diante dos olhos, sem olhar para as coisas presentes e visíveis, concentrando-se nas que são futuras e invisíveis, esta é a observância do sábado cristão."[32] Essa não é, de modo algum, uma má representação da observância adequada do sábado. Tal discurso dirigido aos cristãos consiste em uma forte evidência de que muitos, na época dele, santificavam esse dia. Alguns, na verdade, afirmam que tais palavras foram ditas em referência ao domingo. Alegam que ele contrasta a observância do primeiro dia com a do sétimo. Mas o contraste não é entre os diferentes métodos de guardar dois dias, mas, sim, entre dois métodos de observar um só dia. Os judeus da época de Orígenes passavam o dia especialmente em mera abstinência do trabalho e, com frequência, acrescentavam sensualidade à ociosidade. Mas os cristãos deveriam observá-lo em adoração a Deus, bem como em descanso sagrado. Não há dúvida a respeito do dia ao qual ele se refere. É "dies sabbati", termo que só pode significar o sétimo dia. Essa é a primeira ocorrência da expressão sábado cristão, sabbati christiani, e se aplica claramente ao sétimo dia observado pelos cristãos. A forma mais longa da suposta epístola de Inácio aos magnésios só foi escrita depois da época de Orígenes. Embora não seja da autoria de Inácio, ela é valiosa pela luz que lança sobre o estado das coisas na época em que foi escrita, e por mostrar o progresso da apostasia em relação ao sábado. Esta é a referência que ela faz ao sábado e ao primeiro dia: "Portanto, não guardemos mais o sábado segundo o modo judeu, alegrando-nos em dias de ócio; pois 'aquele que não trabalha, que não coma'. Pois dizem os oráculos [sagrados]: 'Do suor do teu rosto comerás o teu pão'. Mas que cada de um vocês guarde o sábado de maneira espiritual, alegrando-se na meditação da lei, não pelo relaxamento do corpo, mas admirando as obras de Deus, e não comendo coisas preparadas no dia anterior, nem tomando bebidas mornas, ou andando uma distância predeterminada, ou encontrando deleite em danças e aplausos que não têm o menor significado. E, após a observância do sábado, que cada amigo de Cristo guarde o dia do Senhor como uma festa, o dia da ressurreição, o rei e o principal de todos os dias [da semana]. Aguardando ansioso por isso, o profeta declarou: 'Tendo como fim o oitavo dia', no qual nossa vida novamente ressurgiu e a vitória sobre a morte foi obtida em Cristo"[33] Esse autor especifica os diferentes aspectos que constituíam a observância judaica do sábado. Eles podem ser resumidos em dois tópicos: (1) abstinência estrita do trabalho; (2) danças e diversões. À luz do que Orígenes disse, podemos entender o contraste que esse autor faz entre a observância do sábado feita pelos judeus e a observância feita pelos cristãos. O erro dos judeus era que eles se contentavam com o mero relaxamento do corpo, sem elevar os pensamentos a Deus, o Criador, e essa ociosidade logo deu lugar a leviandades sensuais. O cristão, segundo o contraste feito por Orígenes, se abstém do trabalho no sábado a fim de elevar seu coração em grata adoração a Deus. Ou, usando as palavras desse escritor, o cristão guarda o sábado de maneira espiritual, alegrando-se na meditação sobre a lei; no entanto, a fim de fazer isso, ele deve santificar o dia da maneira como a lei ordena, isto é, mediante a observância de um descanso sagrado que comemora o descanso do Criador. Fica claro que, para o autor, a observância do sábado era um ato de obediência àquela lei sobre a qual deveriam meditar nesse dia. E a natureza da epístola indica que o sábado era observado, mesmo assim, no país em que ela foi escrita. Mas observe a obra da apostasia. O chamado "dia do Senhor", para o qual o escritor não oferece nenhum argumento melhor do que o título do sexto salmo (ver margem da versão autorizada [KJV] e nota 29 da página 193), é exaltado acima do dia santo do Senhor e transformado no rei de todos os dias! As Constituições Apostólicas, embora não tenham sido escritas no tempo dos apóstolos, já existiam desde o terceiro século, e, na época, acreditava-se de modo geral que elas expressavam a doutrina dos apóstolos. Portanto, elas oferecem um testemunho histórico importante quanto à prática da igreja naquela época, e também mostram o grande progresso que a apostasia havia feito. Guericke diz o seguinte a respeito da obra: "Trata-se de uma coleção de estatutos eclesiásticos pretendendo ser obra da era apostólica, mas que, em realidade, se formou gradualmente ao longo do segundo, terceiro e quarto séculos. Ela tem grande valor em referência à história da organização da igreja e da arqueologia cristã de modo geral."[34] Mosheim diz o seguinte a respeito delas: "O conteúdo dessa obra é inquestionavelmente antigo, uma vez que os costumes e disciplina sobre os quais se pode ter um panorama correspondem aos que predominavam entre os cristãos do segundo e do terceiro séculos, sobretudo os que moravam na Grécia e nas regiões orientais."[35] Essas Constituições indicam que o sábado era amplamente observado no terceiro século. Também mostram a posição da festa do domingo nessa mesma época. Após solenemente recomendar a sagrada observância dos dez mandamentos, elas reforçam a guarda do sábado da seguinte forma: "Considere a multiforme obra de Deus, cujo início se deu por intermédio de Cristo. Guardarás o sábado, por causa Daquele que cessou Sua obra de Criação, mas não cessou Sua obra de providência. É um descanso para meditação na lei, não para ociosidade das mãos."[36] Essa é uma doutrina sólida a favor do sábado. A fim de demonstrar como essas Constitui- ções reconhecem, com precisão, o decálogo como fundamento da autoridade sabática, citamos as palavras que vêm logo antes das palavras citadas acima, embora já as tenhamos mencionado em outra ocasião: "Tenha diante dos seus olhos o temor de Deus e lembre-se sempre dos dez mandamentos do Senhor: amar o único Senhor Deus com toda sua força; não dar ouvido a ídolos, nem a outros seres, considerando-os como deuses sem vida, ou seres irracionais, ou demônios."[37] Todavia, embora as Constituições reconheçam a autoridade do decálogo e a obrigação sagrada de guardar o sétimo dia, em alguns aspectos, elas elevam a festa do domingo a uma honra superior à do sábado, sem oferecer para isso nenhum preceito das Escrituras. Assim elas dizem: "Mas guarda o sábado e a festa do dia do Senhor, pois o primeiro é um memorial da criação, e o segundo, da ressurreição."[38] "Pois o sábado é o fim da criação, o término do mundo, o estudo da lei e o grato louvor a Deus pelas bênçãos que Ele derramou sobre a humanidade. O dia do Senhor supera tudo isso, apontando para o próprio Mediador, o Provedor, o Legislador, a Causa da ressurreição, o Primogênito de toda a criação."[39] "É por essa razão que o dia do Senhor nos ordena a oferecer a Ti, ó Senhor, ações de graças por tudo. Pois essa é a graça concedida por Ti, a qual, por sua muita grandeza, obscureceu todas as outras bênçãos."[40] Testado por seus próprios princípios, o autor dessas Constituições estava bem avançado em apostasia, pois defende uma festa para a qual não reivindica nenhuma autoridade divina, considerando-a mais digna de honra do que aquela que ele próprio reconheceu que foi ordenada por Deus. Só resta mais um passo nesse rumo, que seria colocar o mandamento de Deus de lado em favor da ordenança humana, passo este efetivamente dado não muito tempo depois. Outro ponto deve ser observado. Ordena-se: "Que os escravos trabalhem cinco dias; mas que tenham folga no dia de sábado e no dia do Senhor para irem à igreja receber instrução na piedade."[41] A questão de ser pecado trabalhar em qualquer um desses dias não é levada em conta nessa passagem, pois o motivo para descansar é permitir que os escravos tenham folga para participar dos cultos. Contudo, embora as Constituições proíbam, em outros trechos, o trabalho no sábado com base na autoridade do decálogo, não o proíbem no primeiro dia da semana. Veja este exemplo: "Ó Senhor Todo-Poderoso, Tu criaste o mundo por intermédio de Cristo, e instituíste o sábado em memória da Criação, porque nesse dia Tu nos fizeste descansar de nossas obras, para a meditação nas Tuas leis."[42] As Constituições Apostólicas são valiosas para nós, não como autoridade a respeito do ensino dos apóstolos, mas para nos informar sobre os pontos de vista e as práticas que predominavam no terceiro século. Uma vez que as Constituições eram consideradas, em larga escala, a doutrina dos apóstolos, elas fornecem evidências conclusivas de que, na época em que foram escritas, os dez mandamentos eram reverenciados de modo geral como a imutável regra de justiça, e de que o sábado do Senhor era observado, por muitos, como ato de obediência ao quarto mandamento, e como memorial divino da criação. Elas também revelam que a festa do primeiro dia já havia alcançado, no terceiro século, grande força e influência, e indicam claramente que ela logo reivindicaria para si toda a atenção. Mas note que o sábado e o suposto dia do Senhor eram considerados, na época, instituições distintas, e que não há nenhum indício sequer da mudança do sábado, do sétimo para o primeiro dia. Essa era a opinião dos pais acerca da autoridade do decálogo e acerca da perpetuidade e da observância do antigo sábado. Foi mostrado que a supressão do sábado bíblico e a ocupação de seu lugar pelo domingo não foi, em nenhum sentido, obra do Salvador. Mas uma obra dessa envergadura exigiu a ação unida de causas poderosas, que passamos agora a enumerar: 1. O ódio pelos judeus. Esse povo, que conservou o antigo sábado, havia matado a Cristo. Era fácil as pessoas se esquecerem de que Cristo, como Senhor do sábado, havia afirmado que o dia era uma instituição Sua, e considerarem o sábado uma instituição judaica pela qual os cristãos não deveriam nutrir nenhuma estima.[43] 2. O ódio da igreja de Roma em relação ao sábado e sua determinação de elevar o domingo à posição de dia superior. Essa igreja, a principal na obra da apostasia, liderou os mais antigos esforços para suprimir o sábado, transformando-o em um jejum. E o primeiro ato de agressão papal foi um edito a favor do domingo. Daí em diante, de todas as maneiras possíveis, a igreja deu continuidade a esse trabalho, até o papa anunciar que ele havia recebido uma ordem divina em favor da observância do domingo -- exatamente a coisa que faltava -- em um rolo que caíra do Céu. 3. A observância voluntária de dias memoráveis. Na igreja cristã, quase que desde o princípio, as pessoas honraram voluntariamente o quarto, o sexto e o primeiro dia da semana, bem como o aniversário da Páscoa e do Pentecostes, a fim de comemorar a traição, a morte e a ressurreição de Cristo e o derramamento do Espírito Santo, atos que, em si mesmos, não podiam ser considerados pecaminosos. 4. Fazer com que a tradição tivesse a mesma autoridade que as Escrituras. Esse foi o grande erro da igreja primitiva -- um erro ao qual estava especialmente exposta pelo fato de ter em seu meio aqueles que haviam visto os apóstolos, ou visto pessoas que tiveram contato pessoal com os apóstolos. Foi isso que transformou a observância voluntária de dias memoráveis em algo perigoso; pois o que começou como observância voluntária se tornou, com o passar de alguns anos, um costume predominante, estabelecido pela tradição, que deveria ser obedecido porque provinha daqueles que haviam visto os apóstolos, ou de outros que viram aqueles que tiveram contato pessoal com eles. Essa foi a origem de vários erros da grande apostasia. 5. O surgimento da heresia de que não há mais lei. Isso se vê em Justino Mártir, a primeira testemunha da festa do domingo, e na igreja de Roma, da qual ele era membro. 6. A observância disseminada do domingo como festa pagã. O primeiro dia da semana correspondia à festa pagã ao sol, que era amplamente observada. Logo, era fácil unir a honra a Cristo, através da observância do dia de Sua ressurreição, com a conveniência e a vantagem mundana de ter o mesmo dia de festa que os vizinhos pagãos, transformando essa união em um ato de piedade especial que facilitaria a conversão dos pagãos. Ao mesmo tempo, a negligência do antigo sábado era justificada pelo estigma que esse memorial divino recebeu como instituição judaica, com a qual os cristãos não deveriam se envolver. Notas: 1. Irenaeus against Heresies, livro 4, cap. 15, seção 1. 2. Irenaeus against Heresies, livro 4, cap. 16, seção 4. 3. Theophilus to Autolycus, livro 2, cap. 27. 4. Idem, livro 3, cap. 9. 5. Ibid. 6. De Anima, cap. 37. Tertuliano desenvolve seu raciocínio aqui com base num período de gestação de dez meses, e não de nove. 7. On Modesty, cap. 5. 8. Recognitions of Clement, livro 3, cap. 55. 9. Novatian on the Jewish Meats, cap. 3. 10. Apostolical Constitutions, livro 2, seção 4, parte 36. 11. Idem, livro 6, seção 4, parte 19. 12. Epístola de Barnabé, cap. 15. 13. Irenaeus against Heresies, livro 5, cap. 33, seção 2. 14. De Anima, cap. 37. 15. Tertullian against Marcion, livro 4, cap. 12. 16. Origen against Celsus, livro 6, cap. 61. 17. Novatian on Jewish Meats, cap. 3. 18. Divine Institutes of Lactantius, livro 7, cap. 14. 19. Poema sobre Gênesis, versos 51--53. 20. Apostolical Constitutions, livro 7, seção 2, parte 36. 21. Tertullian against Marcion, livro 4, cap. 12. 22. Ibid. 23. Tertullian against Marcion, livro 4, cap. 12. 24. Disputation with Manes, seção 42. 25. Diálogo com Trifão, cap. 47. 26. Ibid. 27. Clement's Miscellanies, livro 6, cap. 16. 28. Ibid. 29. Compare Clemente de Alexandria, vol. 2, p. 386-390, edição da biblioteca antenicena, ou Miscellanies of Clement, livro 6, cap. 16, com a edição de Bohn das obras de Filo, vol. 1, p. 3, 4, 29, 30, 31, 32, 54, 55; vol. 3, p. 159; vol. 4, p. 452. 30. Edição de Bohn das obras de Filo, o Judeu, vol. 1, p. 4. 31. Tertullian on Prayer, cap. 23. 32. Origen's Opera, Vol. 2, p. 358, Paris, 1733. "Quo est autem festivitas Sabbati nisi illa dequa Apostolus dicit, 'relinqueretur ergo Sabbatismus', hoc est, Sabbati observatio, 'populo Dei?'. Relinquentes ergo Judaicas Sabbati observationes, qualis debeat esse Christiano Sabbati observatio, videamus. Die Sabbati nihil ex omnibus mundi actibus oportet operari. Si ergo desinas ab omnibus saecularibus operibus, et nihil mundanum geras, sed spiritalibus operibus vaces, ad ecclesiam convenias, lectionibus divinis et tractatibus aurem praebeas, et de ecclestibus cogites, de futura spe sollicitudinem geras, venturum judicium præ oculis habeas, non respicias ad præ sontia et visibilia, sed ad invisibilia et futura, hæc est observatio Sabbati Christiani." -- Origenis in Numeras Homilia 23. 33. Epístola aos magnésios (versão mais longa), cap. 9. 34. Ancient Church, p. 212. 35. Historical Commentaries, séc. 1, seção 51. 36. Apostolical Constitutions, livro 2, seção 4, parte 36. 37. Ibid. 38. Idem, livro 7, seção 2, parte 23. 39. Idem, livro 7, seção 2, parte 36. 40. Apostolical Constitutions, livro 2, seção 4, parte 36. 41. Idem, livro 8, seção 4, parte 33. 42. Idem, livro 7, seção 2, parte 36. 43. Vitorino disse: "Que o sexto dia se transforme em um jejum rigoroso, para que não aparentemos guardar nenhum sábado com os judeus". -- On the Creation of the World, seção 4. E Constantino afirmou: "É preciso que nada tenhamos em comum com os pérfidos judeus" -- Sócrates, Eccl. Hist., livro 5, cap. 22. Capítulo 19 O Sábado e o Primeiro Dia durante os Cinco Primeiros Séculos Aorigem do sábado e da festa do domingo já foi distintamente compreendida. Quando Deus criou o mundo, deu o sábado ao ser humano a fim de que este não se esquecesse do Criador de todas as coisas. Quando a humanidade se apostatou de Deus, Satanás levou as pessoas a adorar o sol, e, como memorial permanente da veneração que elas prestavam a esse luminar, ele as levou a dedicar o primeiro dia da semana à honra do sol. Quando os elementos da apostasia amadureceram o suficiente dentro da igreja cristã, essa antiga festa se levantou como rival do sábado do Senhor. Já foi mostrado como ela conseguiu se infiltrar dentro da igreja cristã; e foram apresentados muitos fatos, com consequências importantes sobre a luta entre essas instituições rivais. Nos capítulos anteriores, apresentamos as declarações dos mais antigos autores cristãos acerca da observância do sábado e do primeiro dia na igreja primitiva. Ao passarmos agora a delinear a história desses dois dias ao longo dos cinco primeiros séculos da era cristã, apresentaremos as declarações de historiadores modernos da igreja, que discorrem sobre os mesmos temas que os primeiros pais. Daremos, também, continuidade às citações dos escritores antigos, mostrando os testemunhos dos primeiros historiadores da igreja. O leitor poderá então descobrir como os autores antigos e modernos estão praticamente em acordo. Morer diz o seguinte acerca da observância do sábado na igreja primitiva: "Os primeiros cristãos tinham grande veneração pelo sábado, e passavam o dia em devoção e sermões. E não se deve duvidar de que receberam essa prática dos próprios apóstolos, conforme atestam vários documentos sobre o assunto. Guardando tanto esse dia quanto o primeiro da semana, deram ocasião para que, nas eras subsequentes, os dois se unissem e se transformassem em uma só festa, muito embora não houvesse o mesmo motivo para a continuação do costume como houve para dar-lhe início."[1] O doutor em divindade William Twisse, erudito escritor inglês do século 17, favorável ao primeiro dia, descreve a história inicial desses dois dias da seguinte maneira: "No entanto, por algumas centenas de anos na igreja primitiva, não só o dia do Senhor, mas também o sétimo dia eram religiosamente observados, não apenas por Ebion e Cerinto, mas também por outros cristãos piedosos. Barônio escreve, e Gomarus e Rivet confessam, que nossa consciência nos coloca sob a obrigação, segundo o evangelho, de dedicar ao serviço de Deus uma proporção de tempo melhor do que a que os judeus dedicaram debaixo da lei, em vez de uma proporção pior."[2] Giesler testifica explicitamente de que a observância do sábado não se restringia aos conversos judeus: "Os cristãos judeus da Palestina conservaram toda a lei mosaica e, consequentemente, as festas judaicas, ao passo que os cristãos gentios observavam também o sábado e a Páscoa, (1 Coríntios 5:6-8.) com referência às últimas cenas da vida de Jesus, mas sem superstições judaicas. Além desses, o domingo, por ser o dia da ressurreição de Cristo, era dedicado a cultos religiosos."[3] Pode-se pensar que a declaração de Mosheim contradiz a de Giesler. Ele diz: "O sétimo dia da semana também era observado como uma festa, não pelos cristãos em geral, mas somente pelas igrejas compostas principalmente por conversos judeus. Os outros cristãos não censuravam tal costume como criminoso e ilícito."[4] Observe que Mosheim não nega que os conversos judeus guardavam o sábado. Ele nega que isso fosse feito pelos cristãos gentios. A prova de sua negação se encontra no seguinte texto de sua autoria: "As igrejas da Bitínia, das quais Plínio fala em sua carta a Trajano, só tinham um dia estabelecido para a celebração de adoração pública; e esse dia era, sem dúvida, o primeiro dia da semana, ou o que chamamos de dia do Senhor."[5] O ponto que Mosheim está tentando provar é este: os cristãos gentios não guardavam o sábado. Mas o fato que ele apresenta como prova é este: as igrejas da Bitínia se reuniam em um dia determinado para celebrar a adoração a Deus. Observa-se, portanto, que a conclusão não procede, e é totalmente desautorizada pelo testemunho.[6] Mas esse caso mostra a destreza de Mosheim em propor inferências, e nos lança certa luz sobre o tipo de evidência que apoia algumas de suas abrangentes declarações a favor do domingo. Quem é capaz de dizer que esse "dia estabelecido" não era justamente aquele ordenado pelo quarto mandamento? Coleman diz o seguinte acerca do sábado e do primeiro dia nas eras iniciais da igreja: "O último dia da semana era guardado de forma estrita, em conexão com o primeiro dia, por um bom tempo depois da destruição do templo e de sua adoração. Até o quinto século, a observância do sábado judaico continuou ocorrendo dentro da igreja cristã, mas seu rigor e solenidade diminuíram gradualmente até que ela foi interrompida por completo."[7] Essa é uma declaração muito explícita de que o sábado bíblico foi observado, durante muito tempo, pelo corpo da igreja cristã. Coleman é um autor que defende o primeiro dia, estando, portanto, livre de qualquer propensão para enfatizar demasiadamente o sétimo dia. Ele é um escritor moderno, mas, por meio de autores antigos, já provamos que suas declarações são verdadeiras. É verdade que Coleman também fala do primeiro dia da semana; todavia, sua linguagem revela que demorou muito tempo até que este se tornasse um dia santo: "Durante as eras iniciais da igreja, ele nunca foi intitulado 'o sábado'. Tal palavra se restringia ao sétimo dia da semana, o sábado judaico, que, conforme vimos, continuou a ser guardado por vários séculos pelos conversos ao cristianismo."[8] Esse fato fica ainda mais claro por meio das palavras a seguir, em que este historiador admite que o domingo não passa de uma ordenança humana: "Nem Cristo, nem os apóstolos parecem ter dado alguma lei ou preceito a fim de anular o sábado judaico ou instituir o dia do Senhor, ou ainda para substituir o sétimo dia da semana pelo primeiro."[9] Coleman parece não se dar conta de que, ao fazer essa afirmação verdadeira, ele reconhece claramente que o antigo sábado continua em pleno vigor como instituição divina, e que a observância do primeiro dia só é autorizada por tradições humanas. A seguir, ele relata como a festa do domingo, alimentada no seio da igreja, usurpou o lugar do sábado do Senhor. Trata-se de uma advertência a todos os cristãos sobre a tendência que as instituições humanas têm, quando acalentadas pelo povo de Deus, de destruir as instituições divinas. Que estas importantes palavras sejam ponderadas com todo cuidado. O historiador diz: "A observância do dia do Senhor foi ordenada enquanto o sábado dos judeus ainda era guardado. O sábado só foi suplantado pelo domingo quando o domingo adquiriu a mesma solenidade e importância que pertencia, a princípio, ao grande dia que Deus havia originalmente ordenado e abençoado. [...] Com o tempo, porém, após o dia do Senhor ser plenamente estabelecido, a observância do sábado dos judeus foi gradualmente descontinuada e, por fim, denunciada como herética."[10] Aqui se vê o resultado de alimentar na igreja essa inofensiva festa do domingo. A princípio, ela só exigia tolerância. Mas, ganhando força pouco a pouco, ela minou gradualmente o sábado do Senhor, e, por fim, denunciou como prática herética sua observância. Jeremy Taylor, distinto bispo da igreja anglicana, grande erudito, mas firme oponente da obrigação sabática, confirma o testemunho de Coleman. Ele afirma que o sábado foi observado pelos cristãos dos primeiros trezentos anos, mas nega que eles o fizessem em respeito à autoridade da lei de Deus. Contudo, nós já demonstramos, pelas palavras dos pais, que aqueles que santificavam o sábado o faziam como um ato de obediência ao quarto mandamento, e que o decálogo era reconhecido como sendo uma obrigação perpétua, e como a perfeita regra de justiça. Já que o bispo Taylor nega que esse era o fundamento pelo qual esses cristãos observavam o sábado, ele deveria ter apresentado algum outro fundamento, mas ele não o faz. Assim, ele declara: "O dia do Senhor não foi o sucessor do sábado, mas o sábado foi totalmente anulado, e o dia do Senhor consistia meramente em uma instituição eclesiástica. Ele não foi introduzido usando o argumento do quarto mandamento, porque, por quase trezentos anos consecutivos, eles guardaram o dia contido naquele mandamento. Contudo, eles o fizeram sem considerá-lo uma obrigação primária; e, consequentemente, não supunham se tratar de algo moral."[11] O ato do concílio de Laodiceia, em 364 d.C., prova que tal opinião acerca da obrigação do quarto mandamento, como não sendo uma obrigação moral, tinha se firmado amplamente entre os líderes da igreja já no quarto século, e provavelmente no terceiro. Tal ato excomungou aqueles que observavam o sábado, conforme veremos posteriormente. Mas muitos resistiram a essa visão vaga acerca da moralidade do quarto mandamento, fato que se verifica pela existência, nessa época, de vários grupos de guardadores persistentes do sábado, cuja memória chega até nós, e também pelo fato de o concílio ter feito um esforço tão enérgico para rebaixar o sábado. Coleman retratou com clareza o enfraquecimento gradual do sábado, à medida que a festa do primeiro dia ganhava força, até que a observância do sábado se tornou prática herética, na ocasião em que, por autoridade eclesiástica, o sábado foi suprimido e a festa do domingo se tornou plenamente estabelecida como uma instituição nova e distinta. A consequência natural dessa decisão foi o surgimento de diferentes seitas ou grupos que se distinguiam pela guarda do sétimo dia. Não nos surpreende que eles tenham sido denunciados como hereges e falsamente acusados de muitos erros, uma vez que a memória de sua existência chegou até nós por meio de seus oponentes; além disso, os guardadores do sábado em nossa época também são frequentemente tratados dessa mesma maneira. O primeiro desses antigos grupos de guardadores do sábado foi o dos nazarenos. Acerca disso, Morer testifica que eles "mantiveram o sábado; e, embora fingissem crer como os cristãos, eles, contudo, agiam como os judeus; assim, não eram, de fato, nem um nem outro."[12] O Dr. Frances White, bispo de Ely, menciona os nazarenos como um dos antigos grupos de guardadores do sábado, que eram condenados pelos líderes da igreja por essa heresia. E ele os classifica como hereges, assim como Morer.[13] Todavia, os nazarenos têm um motivo especial para receber nossa estima, por serem, na verdade, a igreja apostólica de Jerusalém e seus sucessores diretos. Gibbon testemunha: "Os conversos judeus, ou, conforme passaram a ser chamados depois, os nazarenos, que lançaram os alicerces da igreja, logo se viram em grande estado de perplexidade ao verem a crescente multidão, das diversas religiões politeístas, alistando-se sob a bandeira de Cristo. [...] Os nazarenos se retiraram das ruínas de Jerusalém, indo até a pequena cidade de Pela além do Jordão, onde aquela antiga igreja foi definhando por mais de sessenta anos em solidão e obscuridade."[14] Não é de se estranhar que a igreja que fugiu da Judeia em obediência à ordem de Cristo[15] tenha preservado o sábado por tanto tempo, como ela parece ter feito, chegando até mesmo ao quarto século. Morer menciona outro grupo de guardadores do sábado com as seguintes palavras: "Por volta da mesma época, havia os hipsistarianos, que concordavam com esses acerca do sábado, contudo não aceitavam de maneira alguma a circuncisão, por se tratar de um testemunho muito claro da antiga escravidão. Todos esses eram hereges, e eram condenados pela igreja católica como tais. Todavia, seu alto grau de hipocrisia e astúcia lhes conquistou considerável influência dentro do mundo cristão."[16] O bispo de Ely também os reconhece como um grupo de guardadores do sábado cuja heresia era condenada pela igreja.[17] O instruído mestre Joseph Bingham faz o seguinte relato acerca deles: "Havia outra seita que se autodenominava hipsistarianos, isto é, adoradores do Deus altíssimo, a quem adoravam, à semelhança dos judeus, em uma só pessoa. Eles guardavam seus sábados e faziam distinção entre carnes limpas e imundas, muito embora não observassem a circuncisão, conforme relata Gregório de Nazianzo, cujo pai, em certa época, pertenceu a essa seita."[18] Deve-se lembrar que essas pessoas, a quem a igreja católica classificou como hereges, não falaram por si mesmos. Foram seus inimigos e acusadores que transmitiram para a posteridade tudo o que se conhece sobre sua história. Bom seria se os hereges, que pouca misericórdia recebem por parte dos escritores eclesiásticos, pudessem pelo menos usufruir da justiça imparcial de um relato verdadeiro. Um outro grupo é descrito da seguinte forma por Cox em sua elaborada obra intitulada Sabbath Laws and Sabbath Duties [Leis e Deveres do Sábado]: "Dessa maneira [isto é, apresentando o testemunho da Bíblia sobre o assunto] surgiram os antigos sabatistas, um grupo de importância reconhecidamente considerável no que se refere, tanto a números quanto à influência, durante a maior parte do terceiro século e início do século seguinte."[19] O fim do terceiro século testemunhou o grande enfraquecimento do sábado no que diz respeito a sua influência sobre a igreja de modo geral, bem como a firme ascensão da festa do domingo, que, embora sem nenhuma autoridade divina, ganhava força e santidade. O testemunho histórico a seguir, de um membro da igreja anglicana, Edward Brerewood, professor do Gresham College, Londres, nos dá uma boa visão do assunto, embora as perspectivas antissabatistas do autor estejam nela misturadas: "O antigo sábado permaneceu sendo guardado, e era observado junto com a celebração do dia do Senhor, pelos cristãos da igreja oriental, por mais de trezentos anos após a morte do Salvador. E, além dele, nenhum outro dia, por um período maior do que as centenas de anos que acabei de mencionar, era conhecido na igreja com o nome de sábado, a não ser este. Que esta seja a lembrança e a conclusão de tudo: o sábado do sétimo dia, no que se refere às alegações de solene adoração a Deus quanto ao tempo, era cerimonial; esse sábado foi religiosamente observado na igreja do oriente por mais de trezentos anos após a paixão de nosso Salvador. Tal igreja, que consistia numa grande parte da cristandade, e tinha consigo a doutrina e o exemplo dos apóstolos para instruí-la, teria restringido tal prática, caso ela fosse perigosa."[20] Essa era a situação das igrejas orientais ao fim do terceiro século. Mas nas igrejas ocidentais que simpatizavam com a igreja de Roma, o sábado havia sido tratado como um jejum desde o início desse século, a fim de expressar sua oposição àqueles que o guardavam conforme o mandamento. Na primeira parte do quarto século, ocorreu um evento imprevisto, mas que representou um forte peso a favor do domingo na balança já oscilante entre as duas instituições rivais, o sábado do Senhor e a festa do sol. Este foi nada menos que um edito proveniente do trono do império romano em favor do "venerável dia do sol". Ele foi promulgado pelo imperador Constantino em 321 d.C., dizendo o seguinte: "Que todos os juízes e moradores das cidades, e os trabalhadores de todos os ofícios, descansem no venerável dia do sol; mas que os habitantes dos campos, sem qualquer restrição e em plena liberdade, cuidem do trabalho da agricultura; pois com frequência acontece de nenhum outro dia ser tão apropriado para semear milho e plantar vinhas; para que não aconteça de deixarem passar o momento crítico e perderem os produtos concedidos pelo Céu. Promulgado no sétimo dia de março; Crispo e Constantino sendo cônsules, ambos pela segunda vez."[21] Acerca dessa lei, uma importante autoridade afirma: "Constantino, o Grande, foi o primeiro a criar uma lei para a observância apropriada do domingo. De acordo com Eusébio, ele ordenou que o dia fosse celebrado com regularidade em todo o império romano. Antes dele, e até mesmo em sua época, eles guardavam o sábado judaico, bem como o domingo, tanto para cumprir a lei de Moisés quanto para imitar os apóstolos, que costumavam se reunir no primeiro dia. Pela lei de Constantino, promulgada em 321, foi decretado que, a partir de então, o domingo deveria ser guardado como dia de descanso em todas as cidades e vilas; mas ele permitiu que as pessoas do campo continuassem seu trabalho."[22] Outra autoridade eminente descreve o propósito dessa lei: "Constantino, o Grande, promulgou para todo o império (321 d.C.) a lei de que o domingo deveria ser guardado como dia de descanso em todas as cidades e vilas; mas permitiu que as pessoas do campo dessem continuidade a seu trabalho nesse dia."[23] Assim, é um fato inquestionável que esse decreto concedia total permissão para todos os tipos de trabalho agrícola. Portanto, o testemunho a seguir de Mosheim merece absoluta atenção: "O primeiro dia da semana, que era o momento comum e determinado para as assembleias públicas dos cristãos, passou a ser observado com maior solenidade do que antes em consequência de uma lei específica promulgada por Constantino."[24] O que irão dizer sobre isso os defensores da santidade do domingo? Eles citam Mosheim acerca da observância do domingo no primeiro século -- cujo testemunho foi cuidadosamente examinado nesta obra[25] -- e parecem considerar que suas palavras de apoio à santidade do primeiro dia têm quase a mesma autoridade que as palavras do Novo Testamento; aliás, eles acreditam que Mosheim supre uma importante omissão das Escrituras. Todavia, esse autor afirma que a lei dominical de Constantino promulgada no quarto século, restringindo o comércio e os trabalhos manuais, mas permitindo toda espécie de trabalho agrícola, fez com que o dia fosse "observado com maior solenidade do que antes". Logo, conclui-se, com base nas palavras do próprio Mosheim, que, ao longo dos três primeiros séculos, o domingo não era um dia de abstenção do trabalho na igreja cristã. O bispo Taylor dá o seguinte testemunho a esse respeito: "Os cristãos primitivos realizavam todo tipo de obra no dia do Senhor, mesmo nos períodos de perseguição, quando foram os mais estritos guardadores de todos os mandamentos divinos. Mas a esse respeito eles sabiam que não havia ordem nenhuma. Por isso, quando o imperador Constantino promulgou um edito contra o trabalho no dia do Senhor, ele abriu uma exceção, permitindo todos os trabalhos ligados à agricultura ou a qualquer outra obra do lavrador."[26] Morer nos diz o seguinte a respeito dos três primeiros séculos, isto é, do período anterior a Constantino: "Não havia nenhuma ordem de que o dia do Senhor deveria ser santificado, mas ficou a critério do povo de Deus escolher este ou aquele dia para a adoração pública. Todavia, apesar de o dia ter sido escolhido e transformado em um dia de reuniões religiosas, por trezentos anos não houve nenhuma lei que obrigasse o povo a guardá-lo; e na ausência de tal lei, o dia não era inteiramente guardado por meio da abstenção dos negócios comuns. Além disso, a interrupção de seus afazeres cotidianos não ia além (tamanha era a necessidade naqueles tempos) do tempo que dedicavam ao culto divino."[27] O senhor William Domville diz: "Séculos da era cristã se passaram até que o domingo começasse a ser observado pela igreja cristã como um sábado, ou dia de descanso. A história não nos fornece nenhuma prova ou indicativo de que o dia tenha sido guardado dessa maneira antes do edito sabático de Constantino em 321 d.C."[28] Aquilo que esses escritores modernos afirmaram em relação ao trabalho no domingo antes do edito de Constantino, nós comprovamos plenamente nos capítulos anteriores, com base nos mais antigos autores eclesiásticos. Está fora de qualquer questionamento que tal edito cumpriu seu papel em fortalecer ainda mais a forte tendência a favor do domingo, já predominante na época, e grandemente enfraquecer a influência do sábado. Um qualificado escritor dá testemunho desse fato: "Logo depois que Constantino promulgou o edito ordenando a observância geral do domingo por todo o império romano, o grupo que advogava a observância do sétimo dia se reduziu à insignificância. A guarda do domingo como festa pública, durante a qual todo trabalho, com exceção das tarefas rurais, era interrompido, ficou cada vez mais estabelecida depois dessa época, tanto nas igrejas gregas quanto nas latinas. No entanto, não há evidência de que nesse período, ou em período muito posterior, a observância fosse vista como uma obrigação derivada do quarto mandamento. Ao que tudo indica, ela era considerada uma instituição de natureza correspondente ao Natal, à Sexta-feira Santa e a outras festas da igreja; e todas elas, incluindo a guarda do domingo, tinham como fundamento a autoridade e a tradição eclesiásticas."[29] Esse edito extraordinário de Constantino levou o domingo a ser observado com maior solenidade do que até então. Todavia, temos provas conclusivas de que essa lei era de origem pagã, de que foi promulgada em favor do domingo como instituição pagã e não como uma festa cristã, e de que o próprio Constantino, além de nessa época não possuir um caráter cristão, era, na verdade, pagão. Deve-se observar que Constantino não chamou o dia que queria que as pessoas guardassem de "dia do Senhor", "sábado cristão", nem de "dia da ressurreição de Cristo"; ele também não apresentou qualquer razão para sua guarda que indicasse se tratar de uma festa cristã. Pelo contrário, ele utiliza linguagem inequívoca para nomear a antiga festa pagã do sol . O Dr. Hessey apoia tal declaração da seguinte forma: "Outros encaram o tratado sob uma luz totalmente diferente, recusando-se a ver no documento, ou a pressupor na mente de seu promulgador, qualquer reconhecimento do dia do Senhor como questão de obrigação divina. Argumentam, e muito verdadeiramente, que Constantino designa o dia por seu título astrológico ou pagão, Dies Solis, e insistem que o epíteto venerabilis, com o qual é introduzido, faz referência aos ritos realizados nesse dia em honra a Hércules, Apolo e Mitra."[30] Acerca desse importante fato, Milman, o culto editor de Gibbon, testifica: "O decreto que ordena a celebração do sábado não faz nenhuma alusão a sua santidade especial como instituição cristã. É o do dia do sol que deveria ser observado por meio de veneração geral. Os tribunais deveriam ser fechados. O barulho e o tumulto do comércio público e dos litígios legais não mais deveriam violar o repouso do dia sagrado. Mas os adeptos do novo paganismo, cuja característica era a adoração ao sol, poderiam aceitar sem receio a santidade do primeiro dia da semana."[31] E ele acrescenta em um capítulo posterior: "Aliás, conforme já observamos, o dia do sol seria voluntariamente santificado por quase todo o mundo pagão, sobretudo por aquela parte que havia aceitado qualquer tendência em relação à teologia do oriente."[32] No dia sete de março, Constantino publicou seu edito ordenando a observância da antiga festa dos pagãos, o venerável dia do sol. No dia seguinte, oito de março,[33] ele promulgou um segundo decreto que em todos os aspectos fazia jus ao conteúdo pagão do anterior.[34] Seu teor era este: se qualquer edifício real fosse atingido por um raio, as antigas cerimônias para aplacar a divindade deveriam ser executadas e os arúspices deveriam ser consultados para descobrir o significado da terrível tragédia.[35] Os arúspices eram videntes que previam o futuro examinando as entranhas de animais sacrificados em holocausto para os deuses![36] O estatuto do dia 7 de março, ordenando a observância do venerável dia do sol, e o do dia 8 do mesmo mês, prescrevendo a consulta aos arúspices, consistem em um belo par de editos pagãos bem combinados. O fato de Constantino ser pagão na época em que esses editos foram promulgados se demonstra não só pela natureza dos decretos em si, mas também porque, segundo Mosheim, sua conversão nominal ao cristianismo ocorreu dois anos depois dessa lei dominical. Assim ele diz: "Depois de analisar bem o assunto, cheguei à conclusão de que, depois da morte de Licínio, no ano 323, quando Constantino passou a ser o único imperador, ele se tornou cristão absoluto, ou seja, alguém que crê que somente a religião cristã é aceitável para Deus. Até então, ele havia considerado a religião de um único Deus mais excelente do que as outras e cria que Cristo em especial deveria ser adorado. Contudo, supunha que havia também divindades inferiores às quais se deveria prestar algum tipo de adoração, seguindo o costume dos antepassados, sem erro ou pecado. E quem não sabe que, naquela época, muitos outros também combinavam a adoração a Cristo com o culto aos deuses da antiguidade, os quais consideravam como ministros do Deus supremo no governo das questões humanas e terrenas?"[37] Por ser pagão, Constantino adorava Apolo, ou o sol, fato que explica seu edito ordenando que as pessoas observassem o venerável dia do sol. Gibbon dá o seguinte testemunho: "A devoção de Constantino era mais especificamente dirigida ao gênio do sol, o Apolo das mitologias grega e romana, e ele gostava de ser representado por símbolos do deus da luz e da poesia. [...] Os altares de Apolo eram coroados com as ofertas votivas de Constantino; e a multidão crédula era ensinada a acreditar que o imperador tinha permissão de contemplar com olhos mortais a majestade visível de sua divindade tutelar. [...] O sol era universalmente celebrado como o guia invencível e protetor de Constantino."[38] Seu caráter como professo cristão é assim descrito: "A sinceridade do homem que, em um período tão curto, efetuou mudanças tão extraordinárias no mundo religioso, é melhor conhecida por Aquele que sonda o coração. É certo, porém, que a vida subsequente de Constantino não demonstrou evidências de conversão a Deus. Ele se embrenhava sem remorso em rios de sangue e era um governante extremamente tirano."[39] Algumas palavras acerca de seu caráter completarão nosso ponto de vista acerca de sua adequação para legislar em prol da igreja. Esse homem, quando elevado à mais elevada posição do poder terreno, ordenou que Crispo, seu filho mais velho, fosse assassinado em segredo, para que a fama do rapaz não obscurecesse a sua. Seu sobrinho Licínio sofreu a mesma ruína, "cuja posição era o único crime", e essa morte foi seguida pela execução "de uma esposa talvez culpada".[40] Esse foi o indivíduo que elevou o domingo ao trono do império romano, e essa era a natureza da instituição que ele dessa forma elevou. Um escritor inglês recente diz que a lei dominical de Constantino "parece ter sido promulgada mais para promover a adoração pagã do que a cristã". Ele mostra como esse imperador pagão se tornou cristão, e como esse estatuto pagão se transformou em uma lei cristã: "Em um período posterior, influenciado pela onda da opinião pública, ele se declarou um converso à igreja. Então, o cristianismo, ou melhor, aquilo que ele quis chamar por esse nome, se transformou na lei da terra, e o edito de 321 d.C., não sendo revogado, passou a ser imposto como ordenança cristã."[41] Assim se vê que uma lei, promulgada para apoiar uma instituição pagã, passou a ser considerada uma ordenança cristã alguns poucos anos depois. E o próprio Constantino, quatro anos após seu edito dominical, conseguiu controlar a igreja, conforme se pode constatar no concílio geral de Niceia, levando os membros desse concílio a estabelecer que a festa anual da Páscoa deveria ocorrer no domingo.42 O paganismo havia preparado essa instituição desde a antiguidade, e agora a elevava ao poder supremo; sua obra estava terminada. Nós já provamos que a festa do domingo na igreja cristã não tinha caráter sabático, ou seja, de descanso, antes da época de Constantino. Também demonstramos que o paganismo, na pessoa de Constantino, conferiu pela primeira vez caráter sabático ao domingo; e, no próprio ato de fazê-lo, o designou como festa pagã, e não cristã, estabelecendo assim um sábado pagão. Era papel agora do papado, por meio de sua autoridade, efetuar a transformação do domingo em uma instituição cristã, e não demorou muito para esse poder realizar tal obra. Silvestre era o bispo de Roma enquanto Constantino foi imperador. O nível de fidelidade com que realizou sua parte no processo de transformar a festa do sol em uma instituição cristã pode ser visto no fato de que ele, mediante sua autoridade apostólica, mudou o nome do dia, conferindo-lhe o imponente título de Dia do Senhor.[43] Portanto, os defensores da observância do primeiro dia devem muito a Constantino e a Silvestre. Um elevou o dia como festa pagã ao trono do império, transformando-o em dia de descanso da maior parte das ocupações; o outro fez dele uma instituição cristã, dando-lhe o honroso nome de "dia do Senhor". Não é um argumento suficiente tentar negar que, por volta de 325 d.C., o papa Silvestre oficialmente concedeu ao domingo o nome de "dia do Senhor", ao se declarar que um dos pais antenicenos, no ano 200 d.C., chama o dia por esse nome, e que cerca de sete autores diferentes, entre 200 e 325 d.C., a saber, Tertuliano, Orígenes, Cipriano, Anatólio, Comodiano, Vitorino e Pedro de Alexandria, podem ser citados como tendo dado esse título ao domingo. Nenhum desses pais jamais reivindicou a esse título qualquer autoridade apostólica; e já se demonstrou que eles não criam que o dia pudesse ser o dia do Senhor por designação divina. Portanto, o uso do termo por esses indivíduos como nome para o domingo, longe de entrar em conflito com a declaração de que Silvestre usou sua autoridade apostólica para estabelecer a expressão como o título legítimo para o dia, mostra, ao contrário, que o ato de Silvestre era decididamente conveniente segundo as circunstâncias do momento. Com efeito, Nicéforo afirma que Constantino, que se considerava tão cabeça da igreja quanto o papa, "orientou que o dia que os judeus consideravam ser o primeiro da semana, e que os gregos dedicavam ao sol, deveria ser chamado de dia do Senhor".[44] As circunstâncias em questão tornam extremamente prováveis as declarações de Lúcio e Nicéforo. Sem dúvida, elas não indicam que o papa achou desnecessário tal ato de sua parte. Um acontecimento recente da história papal pode ilustrar essa situação. Anos atrás, Pio IX decretou que a virgem Maria nasceu sem pecado. Isso vinha sendo afirmado havia muito tempo por diversos autores famosos na igreja católica, mas não possuía autoridade como dogma dessa igreja até que o papa, em 1854, deu sua sanção oficial.[45] Foi obra de Constantino e Silvestre, na primeira parte do quarto século, estabelecer a festa do sol como dia de descanso por autoridade do império, e transformá-la em uma instituição cristã pela autoridade de São Pedro. A declaração a seguir do Dr. Heylyn, distinto membro da igreja anglicana, merece atenção especial. Em linguagem muito convincente, ele menciona os passos que ergueram a festa do domingo a uma posição de poder, contrastando-a, nesse sentido, com o antigo sábado do Senhor. Então, com igual verdade e franqueza, ele reconhece que, assim como a festa do domingo foi estabelecida pelo imperador e pela igreja, o mesmo poder pode removê-la em qualquer momento que achar apropriado: "Dessa maneira vemos sobre qual alicerce está firmado o dia do Senhor. Primeiro, sobre o costume e consagração voluntária desse dia a reuniões religiosas. Tal costume foi encorajado pela autoridade da igreja de Deus, que tacitamente o aprovou e, por fim, o confirmou e ratificou por meio de príncipes cristãos por todo os domínios deles. Como dia de descanso e interrupção dos negócios, este recebeu sua maior força por parte do magistrado supremo enquanto ele manteve o poder que a ele pertence, bem como, posteriormente, dos cânones, decretos de concílios e nas decretais de papas e ordens de prelados específicos, quando a administração de questões eclesiásticas se restringiu exclusivamente à igreja." "Espero que assim não tenha sido com o antigo sábado, que não teve sua origem no costume, uma vez que aquele povo não era tão inclinado a dedicar um dia a Deus, nem exigiu qualquer apoio ou autoridade da parte dos reis de Israel para confirmá-lo e ratificá-lo. O Senhor havia declarado que Ele desejava ter um dia em sete, precisamente o sétimo dia desde a criação do mundo, para ser um dia de descanso para todo o Seu povo. Dito isso, nada mais havia a se fazer senão alegremente se submeter e obedecer à Sua vontade. [...] Mas não foi assim no caso atual. O dia do Senhor não recebeu nenhuma ordem de que fosse santificado, e foi deixado que o povo de Deus escolhesse esse dia, ou qualquer outro, para o uso público. Todavia, apesar de ter sido escolhido pelos cristãos e se tornado um dia de reunião da congregação para práticas religiosas, por trezentos anos, não houve lei que o tornasse obrigatório, nem a imposição de qualquer descanso do trabalho ou dos negócios mundanos nesse dia." "E quando pareceu apropriado aos príncipes cristãos, os pais protetores da igreja de Deus, estabelecer restrições sobre seu povo, ainda assim, a princípio elas não eram generalizadas. Eram somente de que alguns homens, em determinados lugares, deveriam de deixar de lado seus afazeres diários e comuns para participar do culto a Deus na igreja. Trabalhadores cujas atividades eram extremamente fatigantes e muito repugnantes à verdadeira natureza de um dia de descanso sagrado tinham, no entanto, a permissão de dar continuidade a seus labores, uma vez que eram fundamentais ao bem-estar da sociedade. "E em épocas posteriores, quando o governante e o prelado, em seus diversos lugares, tentaram restringi-los até mesmo disso, que até então haviam permitido, e proibiram quase todo tipo de trabalho físico nesse dia, a proibição não se tornou vigente sem que houvesse tremenda luta e oposição por parte do povo. Foram necessários mais de mil anos, desde a ascensão de Cristo, para que o dia do Senhor alcançasse a posição que ele ocupa hoje. [...] E após ter chegado a esse status em que hoje se encontra, ele não se apoia em solo tão firme e seguro, pois os mesmos poderes que o elevaram podem rebaixá-lo se assim o quiserem, sim, podem até removê-lo quanto ao tempo e estabelecê-lo em qualquer outro dia que acharem melhor."[46] O edito de Constantino marca uma mudança assinalada na história da festa do domingo. O Dr. Heylyn dá o seguinte testemunho: "Até aqui falamos sobre o dia do Senhor apropriado por consentimento geral da igreja, e não como algo instituído ou estabelecido por qualquer texto das Escrituras, edito de imperador ou decreto de concílio. [...] Nos períodos que se seguem, veremos que tanto imperadores quanto concílios deram ordens frequentes acerca desse dia e do modo de honrá-lo."[47] Após sua suposta conversão ao cristianismo, Constantino exerceu ainda mais seu poder em prol do venerável dia do sol, agora transformado alegremente no dia do Senhor pela autoridade apostólica do bispo de Roma. Heylyn explica: "É tão natural que um governante cristão tenha poder para ordenar coisas acerca de religião que ele [Constantino] se propôs não só a ordenar o dia, mas também a prescrever como deveria ser a adoração."[48] A influência de Constantino contribuiu poderosamente em ajudar os líderes da igreja que tinham o desejo de trazer formas da adoração pagã para dentro da igreja cristã. Gibbon explica as motivações desses homens e o resultado de suas ações: "Os bispos mais respeitáveis haviam se convencido de que os rústicos ignorantes renunciariam com maior alegria à superstição do paganismo se encontrassem alguma semelhança ou compensação no seio do cristianismo. A religião de Constantino conseguiu, em menos de um século, conquistar todo o império romano. Mas os próprios vencedores foram imperceptivelmente subjugados pelas artimanhas de seus rivais derrotados."[49] A massa de cristãos nominais, que resultou dessa estranha união de ritos pagãos com a adoração cristã, reivindicaram indevidamente para si o título de igreja católica, ao passo que o verdadeiro povo de Deus, que resistiu a essas inovações perigosas, foi rotulado de herege e excluído da igreja. Não é de se estranhar que o sábado tenha perdido território em meio a esse corpo [de cristãos nominais] na luta contra sua instituição rival, a festa do sol. Aliás, após um breve período, a história do sábado só seria encontrada nos registros quase apagados daqueles a quem a igreja católica excomungou e estigmatizou como hereges. Heylyn diz o seguinte acerca do sábado na época de Constantino: "Quanto ao sábado, este manteve sua estima costumeira nas igrejas orientais, pouco inferior ou mesmo igual ao dia do Senhor; não como um dia de descanso, não pense que seja assim, mas como um dia destinado a reuniões sagradas."[50] Não há dúvida de que, após a grande inundação de mundanismo que assolou a igreja na época da suposta conversão de Constantino, e depois de tudo que ele e Silvestre fizeram em prol do domingo, a observância do sábado se tornou, para muitos, apenas nominal. Mas a ação do concílio de Laodiceia, à qual passaremos agora, prova de maneira conclusiva que o sábado ainda era guardado, não só como uma festa, como Heylyn quer nos fazer crer, mas, sim, como dia de abstinência do trabalho, segundo a ordem do mandamento. Todavia, a obra de Constantino consiste em um grande marco na história do sábado e do domingo. Constantino era hostil ao sábado, e sua influência pesou muito contra esse dia em meio a todos aqueles que estavam em busca de vantagens mundanas. O historiador Eusébio era amigo especial e bajulador de Constantino. Tal fato não deve ser negligenciado ao se analisar o peso de seu testemunho sobre o sábado. Ele fala o seguinte acerca do sétimo dia: "Eles [os patriarcas], portanto, não observavam a circuncisão, nem guardavam o sábado. Nós também não o fazemos. Também não nos abstemos de determinados alimentos, nem temos consideração por outras ordens que Moisés entregou posteriormente para serem observadas como tipos e símbolos, visto que coisas como essas não pertencem aos cristãos."[51] Esse testemunho revela precisamente o ponto de vista de Constantino e da corte imperial acerca do sábado, mas não apresenta a opinião dos cristãos como um todo; pois vimos que o sábado havia sido vastamente observado até essa época, e logo teremos a oportunidade de citar outros historiadores, contemporâneos de Eusébio e posteriores a ele, os quais registram a continuação de sua observância. Constantino exerceu influência controladora sobre a igreja, e estava determinado a não ter "nada em comum com aquele populacho de judeus extremamente hostis". Como teria sido bom se sua aversão tivesse se direcionado contra as festas dos pagãos, em vez de contra o sábado do Senhor! Antes da época de Constantino, não há nenhum vestígio da doutrina da mudança do sábado. Pelo contrário, temos evidências decisivas de que o domingo era um dia no qual o trabalho comum era considerado legítimo e adequado. Mas Constantino, enquanto ainda era pagão, ordenou que todo tipo de ocupação, com exceção da agricultura, devia ser deixada de lado nesse dia. Sua lei designou o dia como uma festa pagã, e isso ele era de fato. Contudo, quatro anos depois da promulgação do edito, Constantino havia se tornado não apenas um professo converso à religião cristã, mas, em muitos aspectos, praticamente o cabeça da igreja, conforme revela claramente o rumo dos acontecimentos no concílio de Niceia. Sua lei dominical pagã, estando ainda em vigor, foi imposta dali em diante em benefício do primeiro dia como uma festa cristã. Essa lei concedeu à festa do domingo, pela primeira vez, um caráter de certo modo sabático. Era agora um dia de descanso da maior parte dos trabalhos pela lei do império romano. A partir de então, o dia de descanso de Deus se tornou um intruso como nunca antes. Mas chegamos agora a um fato de notável interesse: uma vez que o caminho já estava preparado, conforme acabamos de ver, para a doutrina da mudança do sábado, e tendo em vista as circunstâncias que exigiam sua elaboração, foi exatamente nesse momento que ela foi proposta pela primeira vez. Eusébio, amigo especial e defensor de Constantino, foi o primeiro a colocar por escrito essa doutrina. Em sua obra Comentário aos Salmos, ele faz esta declaração sobre o salmo 112 no que se refere à mudança do sábado: "Portanto, como eles [os judeus] rejeitaram-na [a lei do sábado], a Palavra [Cristo], pela nova aliança, transpôs e transferiu a festa do sábado para a luz matinal, e nos deu o símbolo do verdadeiro descanso, a saber, o salvífico dia do Senhor, o primeiro [dia] da luz, no qual o Salvador do mundo, após todos os Seus esforços entre os homens, conquistou a vitória sobre a morte e passou pelos portais celestiais, após ter realizado uma obra superior à dos seis dias da criação."[52] "Nesse dia, que é o primeiro [dia] de luz e do Sol verdadeiro, nós nos reunimos, após um intervalo de seis dias, e celebramos sábados santos e espirituais, a saber, todas as nações remidas por Ele ao redor do mundo, e fazemos essas coisas segundo a lei espiritual, as quais foram decretadas para os sacerdotes realizarem no sábado."[53] "E todas as coisas que eram deveres a serem cumpridos no sábado, nós as transferimos para o dia do Senhor, por pertencerem a ele de maneira mais apropriada, pois ele tem precedência e é o primeiro em hierarquia, sendo mais digno de honra que o sábado judaico."[54] Eusébio tinha a forte tentação de agradar e até mesmo bajular Constantino, pois vivia com as regalias do favor imperial. Em certa ocasião, ele chegou ao ponto de dizer que a cidade de Jerusalém, reconstruída por Constantino, poderia ser a nova Jerusalém predita nas profecias![55] Mas é possível que não houve nenhum ato de Eusébio que tenha dado mais prazer a Constantino do que a publicação dessa doutrina acerca da mudança do sábado. Por meio de uma lei civil, o imperador havia dado ao domingo um caráter sabático. Embora tivesse feito isso enquanto ainda era pagão, era de seu interesse preservar essa lei depois de ter conquistado uma posição de liderança dentro da igreja católica. Portanto, quando Eusébio surgiu declarando que Cristo havia transferido o sábado para o domingo, doutrina nunca antes ouvida, em cujo apoio não tinha nenhum texto bíblico para citar, Constantino só poderia ter se sentido lisonjeado no mais alto grau ao ver que seu próprio edito sabático correspondia exatamente ao dia que Cristo havia ordenado para ser o dia de descanso em lugar do sábado do sétimo dia. Tratava-se de uma prova convincente de que Constantino recebera o chamado divino para sua posição elevada na igreja católica, uma vez que sua obra podia ser identificada com a de Cristo, embora ele não tivesse, na época, conhecimento de que Cristo havia realizado qualquer obra desse tipo. Como nenhum autor anterior a Eusébio havia dado qualquer indício quanto à doutrina da mudança do sábado; como há provas extremamente convincentes, conforme demonstramos, que, antes dessa época, o domingo não possuía caráter sabático, ou seja, de interrupção de trabalho; e como Eusébio não afirma que essa doutrina se encontra nas Escrituras, nem em nenhum escritor eclesiástico anterior, é certo que ele foi o pai da doutrina. Essa nova doutrina não foi criada sem motivo. E a razão não foi apresentar textos negligenciados da Bíblia, pois ele não cita uma passagem sequer para apoiá-la. Mas as circunstâncias do momento revelam claramente o motivo. A nova doutrina se mostrou perfeitamente adaptada para a nova ordem de coisas introduzida por Constantino. Além disso, era especialmente adequada para bajular o orgulho do imperador -- e era exatamente esta a mais forte tentação de Eusébio. É notável, porém, que Eusébio, no próprio texto em que anuncia a nova doutrina, sem perceber, acaba expondo sua falsidade. Primeiro ele afirma que Cristo mudou o sábado; e então praticamente contradiz o fato, apontando para os verdadeiros autores da mudança: "E todas as coisas que eram deveres a serem cumpridos no sábado, nós as transferimos para o dia do Senhor."[56] As pessoas aqui mencionadas como autoras dessa obra são o imperador Constantino, bispos como Eusébio, que amavam o favor dos governantes, e Silvestre, o pretenso sucessor de São Pedro. Dois fatos refutam a afirmação de Eusébio de que Cristo mudou o sábado: (1) Eusébio, que viveu trezentos anos após a suposta mudança, foi o primeiro a mencioná-la; (2) Eusébio testemunha que ele e outros fizeram a mudança, o que não seria o caso se Cristo a tivesse realizado no princípio. Além disso, embora a doutrina da mudança do sábado tenha sido anunciada dessa forma por Eusébio, nenhum escritor de sua era a apoiou. A doutrina nunca fora ouvida antes, e Eusébio só podia contar com a sua própria declaração, sem nenhum texto das Sagradas Escrituras para oferecer em apoio. Após Constantino, porém, o sábado começou a recuperar forças, pelo menos nas igrejas do Oriente. O professor Stuart, ao falar sobre o período de Constantino até o concílio de Laodiceia, 364 d.C., afirma: "A prática [de guardar o sábado] foi continuada pelos cristãos que tinham zelo pela honra da lei mosaica, e finalmente se tornou, conforme vimos, predominante por toda a cristandade. Muitos supunham que o quarto mandamento exigia a observância do sábado do sétimo dia (não meramente de uma sétima parte do tempo); e raciocinando conforme certos cristãos da atualidade costumam fazer, ou seja, que tudo que pertencia aos dez mandamentos era imutável e perfeito, as igrejas de modo geral passaram gradualmente a considerar o sábado do sétimo dia como inteiramente santo."[57] Todavia, o professor Stuart liga a isso a declaração de que o domingo era honrado por todos os grupos. Mas o concílio de Laodiceia desferiu um pesado golpe sobre essa observância do sábado na igreja oriental. Assim, o senhor James, dirigindo-se à Universidade de Oxford, apresenta o seguinte testemunho: "Quando a prática de guardar o sétimo dia como o sábado, que havia se tornado bastante generalizada ao fim desse século, começou a ganhar terreno junto à igreja oriental, foi passado um decreto no concílio que ocorreu em Laodiceia [364 d.C.] 'de que os membros da igreja não deveriam descansar do trabalho no sábado como os judeus, mas trabalhar nesse dia, e preferindo honrar o dia do Senhor, se então estiver a seu alcance, deveriam descansar de seus labores como cristãos'."[58] Essas palavras mostram, de maneira conclusiva, que, naquela época, a observância do sábado segundo o mandamento era disseminada nas igrejas orientais. Mas o concílio de Laodiceia não só proibiu a guarda do sábado, como também pronunciou uma maldição sobre aqueles que obedecessem ao quarto mandamento! Prynne testemunha o seguinte: "Não há dúvida de que o próprio Cristo, Seus apóstolos e os cristãos primitivos por um bom período observaram constantemente o sábado do sétimo dia; [...] os evangelistas e São Lucas, em Atos, sempre o chamam de dia de sábado [...] e fazem menção a [...] sua solenização por parte dos apóstolos e outros cristãos, [...] sendo ainda solenizado por muitos cristãos após o tempo dos apóstolos, chegando até ao concílio de Laodiceia [364 d.C.], conforme testemunham escritores eclesiásticos e o vigésimo nono cânone desse concílio, o qual diz o seguinte:[59] 'Porque os cristãos não devem judaizar e descansar no sábado, mas trabalhar nesse dia (algo que muitos na época se recusavam a fazer). Mas, preferindo em honra o dia do Senhor (visto que havia na época uma grande controvérsia entre os cristãos sobre qual desses dois dias [...] deveria ter precedência), se desejarem descansar, devem fazê-lo como cristãos. Por essa razão, se forem encontrados judaizando, que sejam malditos e separados de Cristo'. [...] O sábado do sétimo dia, foi [...] guardado com solenidade por Cristo, pelos apóstolos e pelos cristãos primitivos até o concílio de Laodiceia praticamente abolir sua observância. [...] O concílio de Laodiceia [364 d.C.] [...] foi o primeiro a consolidar a observância do dia do Senhor e a proibir [...] a guarda do sábado judaico sob pena de anátema."[60] A ação desse concílio não extirpou o sábado das igrejas orientais, embora tenha enfraquecido significativamente sua influência e tornado sua observância, por parte de muitos, algo apenas nominal. Por outro lado, o decreto ali feito efetivamente aumentou a santidade e a autoridade da festa do domingo. Um antigo escritor inglês, John Ley, certifica de que esse decreto não extinguiu por completo a guarda do sábado: "Do tempo dos apóstolos até o concílio de Laodiceia, que ocorreu por volta do ano 364, a santa observância do sábado judaico continuou, conforme se pode provar por meio de vários autores; sim, apesar do decreto do concílio contra tal observância."[61] E Gregório, bispo de Nissa, por volta de 372 d.C., faz a seguinte censura: "Com que olhos vocês podem contemplar o dia do Senhor, enquanto desprezam o sábado? Vocês não percebem que são irmãos e que, ao menosprezar um, estão afrontando o outro?"[62] Esse testemunho é valioso por marcar o progresso da apostasia em relação ao sábado. A festa dominical não entrou na igreja como uma instituição divina, mas, sim, como uma observância voluntária. Até mesmo no ano 200 d.C., Tertuliano disse que o primeiro dia só contava com a tradição e o costume para apoiá-lo.[63] Mas em 372 d.C., essa festa humana havia se tornado irmã e igual ao dia que Deus santificou no princípio e ordenou solenemente na lei moral. Quão digna de ser chamada de irmã do sábado era essa festividade dominical pode ser julgado pelo que se seguiu. Quando essa pretensa irmã ganhou posição de reconhecimento dentro da família, expulsou o irmão e o pisoteou no pó. Em nossos dias, a festa do domingo afirma ser exatamente o dia mencionado no quarto mandamento. Os testemunhos a seguir colocam a autoridade dos concílios da igreja em sua verdadeira luz. Cox cita Jortin dizendo: "Em tais assembleias, os melhores e mais moderados raramente estão no controle; e com frequência, são liderados ou induzidos por outros bem inferiores a eles em boas qualidades."[64] O mesmo autor apresenta a opinião de Baxter acerca da célebre assembleia de Westminster. Baxter afirma: "Vivi o suficiente para presenciar uma assembleia de ministros na qual três ou quatro homens da liderança exerceram um domínio tal que chegaram a elaborar uma confissão em nome do grupo inteiro composta por coisas que membros específicos repudiavam. E, quando em certo ponto controverso, certo homem me acusou intensamente de estar questionando as palavras da igreja, e outros, que faziam parte da elaboração daquele artigo, depositaram toda a confiança sobre esse mesmo homem. Os demais se mostraram relutantes em discutir demasiado com ele, de modo que ele, sozinho, era a igreja para cuja autoridade tanto apelava."[65] Essa tem sido a natureza dos concílios em todas as eras. No entanto, eles sempre têm reivindicado infalibilidade e têm usado em grande medida essa infalibilidade para suprimir o sábado e estabelecer a festa do domingo. Kitto dá o seguinte testemunho acerca da santidade do domingo até a época de Crisóstomo: "Embora em épocas posteriores encontremos referências consideráveis a uma espécie de consagração do dia, este não parece, em nenhum período da igreja antiga, ter assumido a forma de observância que algumas comunidades religiosas modernas defendem. Tampouco esses escritores, em nenhum caso, alegam qualquer ordem divina ou até mesmo prática apostólica para apoiá-lo. [...] Crisóstomo (360 d.C.) conclui uma de suas homilias despedindo a congregação para suas respectivas ocupações costumeiras."[66] Ficou reservada para os teólogos modernos a tarefa de descobrir a autoridade divina ou apostólica da observância do domingo. Os antigos doutores da igreja não estavam cientes da existência de tal autoridade. Por isso, consideravam lícito e apropriado participar das tarefas seculares normais nesse dia quando o culto terminava. Heylyn, comentando sobre São Crisóstomo, afirma que ele "confessou que é lícito ao homem cuidar de seus negócios seculares no dia do Senhor depois que a congregação era despedida."[67] São Jerônimo, alguns anos depois, no início do quinto século, ao elogiar sua discípula Paula, dá sua opinião acerca do trabalho no domingo: "Paula, juntamente com as mulheres, assim que voltavam para casa no dia do Senhor, sentavam-se para realizar cada uma seu trabalho, costurando roupas para si e para outras pessoas."[68] Morer justifica o trabalho no domingo usando os seguintes termos: "Caso leiamos que elas realizavam qualquer tipo de trabalho no dia do Senhor, deve-se lembrar que esse engajamento nas tarefas diárias só acontecia depois que a adoração terminava, quando podiam retomar as atividades com toda a inocência, pois a extensão de tempo ou o número de horas destinado à piedade não era tão bem explicado naquela época quanto em eras posteriores. A condição da igreja é bem diferente do que era naqueles primeiros dias. Havia séculos que os cristãos enfrentavam perseguição e pobreza. Além das próprias necessidades, muitos tinham senhores severos que os forçavam a trabalhar e os faziam dedicar menos tempo às questões espirituais do que o fariam sob circunstâncias diferentes. Na era de São Jerônimo, as condições eram melhores, porque o cristianismo havia subido ao trono e também penetrado no império. Por causa de tudo isso, a santificação completa do dia do Senhor prosseguiu devagar. E foi questão de tempo levá-la à perfeição, conforme revelam os vários passos que a igreja deu em suas constituições e os decretos de imperadores e de outros governantes, nos quais as proibições de trabalhos servis e civis avançaram gradualmente de um tipo ao outro, até que o dia alcançou uma importância considerável no mundo. Hoje, portanto, numa época em que as condições são tão diferentes, o uso mais adequado desses antigos exemplos, em termos de doutrina, consiste apenas em mostrar que o trabalho cotidiano, sendo-nos uma dádiva graciosa da providência para o sustento da vida natural, não é pecaminoso nem mesmo no dia do Senhor, quando a necessidade fala mais alto, e as leis da igreja e da nação na qual vivemos não são contrárias a tal ato. É isso o que os primeiros cristãos tinham a dizer em sua defesa nos trabalhos que desempenhavam nesse dia. E ouso acreditar que, se tais obras tivessem sido consideradas naquela época como uma profanação da festa, eles teriam sido vítimas de martírio, e não de culpa."[69] O bispo de Ely dá este testemunho: "Nos dias de São Jerônimo e no lugar onde ele residia, os cristãos mais devotos trabalhavam costumeiramente no dia do Senhor depois que o culto terminava na igreja."[70] Santo Agostinho, contemporâneo de Jerônimo, faz uma síntese do argumento da época a favor da observância do domingo: "As Sagradas Escrituras deixam transparecer que este dia era solene. Foi o primeiro dia de todas as eras, isto é, da existência de nosso mundo. Nele os elementos da Terra foram formados. Nele os anjos foram criados. Nele Cristo também ressuscitou dos mortos. Nele o Espírito Santo desceu do Céu sobre os apóstolos assim como o maná caíra no deserto. Por essas e outras circunstâncias, o dia do Senhor é distinto; portanto, os santos doutores da igreja têm decretado que toda a glória do sábado judaico está transferida para ele. Portanto, guardemos o dia do Senhor como os antigos foram ordenados a guardar o sábado."[71] Deve-se notar que Agostinho não cita, entre os motivos para a observância do primeiro dia, que Cristo ou Seus apóstolos mudaram o sábado, nem que os apóstolos guardaram esse dia, ou que João lhe havia dado o nome de dia do Senhor. Agostinho desconhecia esses argumentos modernos a favor do primeiro dia. Ele deu o crédito por essa obra não a Cristo ou a Seus apóstolos inspirados, mas aos santos doutores da igreja, que, por vontade própria, haviam transferido a glória do antigo sábado ao venerável dia do sol. No quinto século, o primeiro dia da semana era considerado o mais adequado para a investidura de ordens religiosas, isto é, para as ordenações, e por volta da metade desse século, diz Heylyn, "uma lei [foi] feita por Leão, que, na época, era o papa de Roma, e, desde então, foi aceita de modo geral pela igreja do ocidente, determinando que elas [as ordenações] não fossem conferidas em qualquer outro dia."[72] De acordo com o Dr. Justin Edwards, esse mesmo papa também fez este decreto a favor do domingo: "Nós ordenamos, de acordo com a verdadeira intenção do Espírito Santo e dos apóstolos por Ele orientados, que no dia santo, no qual nossa própria integridade foi restaurada, todos descansem e cessem do labor."[73] Pouco depois desse edito papal, o imperador Leão, 469 d.C., promulgou o seguinte decreto: "É da nossa vontade e agrado que os dias santos dedicados ao Deus altíssimo não sejam dedicados a recreações sensuais, ou profanados de outras maneiras por processos judiciais, sobretudo o dia do Senhor, o qual decretamos ser um dia venerável, e, portanto, livre de todas as intimações judiciais, execuções, recursos e ações semelhantes. Que os circos e os teatros não sejam abertos, e que não sejam vistos ali combates com animais selvagens. [...] Se qualquer pessoa tentar transgredir as determinações citadas acima, se for militar, perderá sua patente; se tratar de outra pessoa, sua propriedade ou seus bens serão confiscados."[74] E esse imperador decidiu corrigir a brecha na lei de Constantino, proibindo, assim, o trabalho agrícola no domingo. Por isso, ele acrescenta: "Ordenamos, portanto, que todos, tanto lavradores quanto os demais, deixem de trabalhar neste dia de nossa restauração."[75] Por essa época, os santos doutores da igreja já haviam conseguido, com muita eficiência, despojar o sábado de sua glória, transferindo-o para o dia do Senhor do papa Silvestre, conforme testemunha Agostinho. Todavia, a observância do sábado não havia se extinguido totalmente nem mesmo dentro da igreja católica. O historiador Sócrates, que escreveu na metade do quinto século, relata: "Pois, embora quase todas as igrejas ao redor do mundo celebrem os sagrados misté- rios aos sábados todas as semanas, os cristãos de Alexandria e de Roma, por causa de alguma tradição antiga, se recusam a fazê-lo. Os egípcios das redondezas de Alexandria e os habitantes de Tebaida realizam seus cultos religiosos aos sábados, mas não participam dos mistérios segundo a prática costumeira dos cristãos em geral -- pois, depois de comerem e se satisfazerem com alimentos de todos os tipos, à noite, tendo dado suas ofertas, participam dos mistérios."[76] Sendo que a igreja de Roma havia transformado o sábado em um jejum cerca de duzentos anos antes disso, a fim de se opor a sua observância, é provável que essa seja a tradição antiga mencionada por Sócrates. E Sozomeno, contemporâneo de Sócrates, fala sobre o mesmo assunto da seguinte maneira: "O povo de Constantinopla e de várias outras cidades se reúne aos sábados, bem como no dia seguinte, costume que nunca é observado em Roma, nem em Alexandria. Há várias cidades e vilas no Egito em que, ao contrário das práticas estabelecidas em outros lugares, as pessoas se reúnem nas noites de sábado e, embora jantem antes, participam dos mistérios."[77] Cox comenta o seguinte sobre as declarações desses historiadores: "Eles tinham o costume de sabatizar no sábado e de celebrar o domingo como dia de regozijo e festividades. Contudo, embora em alguns lugares se prestasse respeito geral a esses dois dias, a prática judaizante de guardar o sábado era terminantemente condenada pelas principais igrejas, e havia forte resistência a todas as doutrinas ligadas a isso."[78] Chegara o momento em que, conforme afirmado por Coleman, a observância do sábado passou a ser considerada prática herética; e o fim do quinto século testemunhou a efetiva supressão do sábado na grande massa da igreja católica. Notas: 1. Dialogues on the Lord's Day, p. 189. 2. Morality of the Fourth Commandment, p. 9, Londres, 1641. 3. Eccl. Hist., vol. 1, cap. 2, seção 30. 4. Eccl. Hist., livro 1, séc. 1, parte 2, cap. 4, seção 4. A tradução do Dr. Murdock é mais precisa do que a de Maclaine, citada acima. Ele diz o seguinte: "Além disso, as congregações que eram compostas ou por uma mescla de judeus ou, em grande parte, por judeus, também estavam acostumadas a guardar o sétimo dia da semana como dia santo. Por fazê-lo, os outros cristãos não os condenavam. 5. Idem, margem. 6. Ver cap. 14 desta obra. 7. Ancient Christianity Exemplified, cap. 26, seção 2. 8. Anc. Christ. Exem., cap. 26, seção 2. 9. Ibid. 10. Ibid. 11. Ductor Dubitantium, parte 1, livro 2, regra 6, seção 51. 12. Dialogues on the Lord's Day, p. 66. 13. A Treatise of the Sabbath Day, contendo "A Defense of the Orthodoxal Doctrine of the Church of England against Sabbatarian Novelty" [Defesa da Doutrina Ortodoxa da Igreja Anglicana contra o Modismo Sabatista], p. 8. Foi escrito em 1635 por ordem do rei em resposta a Brabourne, ministro da igreja estatal, cuja obra "A Defense of that most Ancient and Sacred Ordinance of God's, the Sabbath Day" [Defesa da Mais Antiga e Sagrada das Ordenanças de Deus, o Dia de Sábado] foi dedicada ao rei com o pedido de que ele restaurasse o sábado bíblico! Ver o prefácio ao tratado do Dr. White. 14. Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 15. 15. Ver cap. 10. 16. Dialogues on the Lord's Day, p. 67. 17. Treatise of the Sabbath Day, p. 8. 18. Antiquities of the Christian Church, livro 16, cap. 6, seção 2. 19. Página 280. Cox cita aqui a obra chamada The Modern Sabbath Examined. 20. Learned Treatise of the Sabbath, p. 77, Oxford, 1631. 21. Esse edito é a fonte original da autoridade do primeiro dia, e, em muitos aspectos, é para a festa do domingo aquilo que o quarto mandamento é para o sábado do Senhor. O original desse edito pode ser consultado na biblioteca de Harvard, nas seguintes palavras: IMP. CONSTANT. A. ELPIDIO. Omnes Judices, urbanæque plebes, et cunctarum artium officia venerabili die solis quiescant. Ruri tamen positi agrorum culturæ libere licenterque inserviant: quoniam frequenter evenit, ut non aptius alio die frumenta sulcis, aut vineæ scrobibus mandentur, ne occasione momenti pereat commoditas coelesti provisione concessa. Dat. Nonis Mart. Crispo. 2 & Constantino 2. Coss. 321. Corpus Juris Civilis Codicis lib. iii tit. 12. 3. 22. Encyc. Brit., verbete "Sunday", 7ª ed., 1842. 23. Encyc. Am., verbete "Sabbath". 24. Eccl. Hist., séc. 4, parte 2, cap. 4, seção 5. 25. Cap. 14. 26. Duct. Dubitant., parte 1, livro 2, cap. 2, regra 6, seção 59. 27. Dialogues on the Lord's Day, p. 233. 28. Examination of the Six Texts, p. 291. Nota dos editores da edição em língua portuguesa: O termo "sabático" nessa passagem deve ser entendido como interrupção do trabalho ou como descanso de alguma atividade regular, não importando o dia. No caso do edito de Constantino, evidentemente, o termo se refere ao descanso dominical. Para o uso da palavra "Sabbath" [sábado] na cultura anglo-americana, ver nota 43, na página 90. 29. Cox, Sabbath Laws, etc., p. 280, 281. Ele cita The Modern Sabbath Examined. 30. Hessey, Bampton Lectures, p. 60. 31. History of Christianity, livro 3, cap. 1. 32. Idem, livro 3, cap. 4. 33. Essas datas merecem atenção especial. Ver Blair, Chronological Tables, p. 193, ed. 1856; Rosse, Index of Dates, p. 830. 34. Imp. Constantinus A. Ad Maximum. Si quid de Palatio Nostro, aut ceteris operibus publicis, degustatum fulgore esse conatiterit, retento more veteris observantiae. Quid portendat, ob Haruspicibus requiratur, et diligentissime scriptura collecta ad Nostram Scientiam referatur. Ceteris etiam usurpandae huius consuetudinis licentia tribuenda: dummodo sacrificiis domesticis abstineant, quæ specialiter prohibita sunt. Eam autem denunciationem adque interpretationem, quæ de tactu Amphitheatri scriba est, de qua ad Heraclianum Tribunum, et Magistrum Officiorum scripseras, ad nos scias esse perlatum. Dat. xvi. Kal. Jan. Serdicæ Acc. 8. Id. Mart. Crispo ii. & Constantino ii. C. C. Coss. 321. Cod. Theodos. xvi. 10, 1. -- Biblioteca da Harvard. 35. Ver Jortin, Eccl. Hist., vol. 1, seção 31; Milman, Hist. Christianity, livro 3, cap. 1. 36. Ver Webster. Para um antigo registro do ato, ver Ezequiel 21:19-22. 37. Historical Commentaries, séc. 4, seção 7. 38. Dec. and Fall of the Roman Empire, cap. 20. 39. Marsh, Eccl. Hist., período 3, cap. 5. 40. Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 18. 41. Sunday and the Mosaic Sabbath, p. 4; publicado por R. Groombridge & Sons, Londres. 42. Ver cap. 18. 43. Omnium vero dierum per septimanam appellationes (ut Solis, Lunae, Martis, etc.), mutasse in ferias: ut Polydorus (li. 6, c. 5) indicat. Mataphrastes vero, nomina dierum Hebraeis usitata retinuisse eum, tradit; solius primi diei appellatione mutata, quem dominicum dixit. Historia Ecclesiastica per M. Ludovicum Lucium, séc. 4, cap. x. p. 739, 740, Ed. Basilea, 1624. Library of Andover Theological Seminary. A História Eclesiástica de Lúcio nada mais é do que a segunda edição da célebre "Magdeburg Centuries", publicada sob sua supervisão. 44. Citado por Elliott, Horae Apocapyticae, 5 ed., vol. 4, p. 603. 45. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 4, p. 506. 46. Hist. Sab., parte 2, cap. 3, seção 12. 47. Hist. Sab., parte 2, cap. 3, seção 1. 48. Ibid. 49. Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 28. 50. Hist. Sab., parte 2, cap. 3, seção 5. 51. Eccl. Hist., livro 1, cap. 4. 52. Eusébio, Comentário aos Salmos, citado por Cox, Sabbath Literature, vol. 1, p. 361; também em Justin Edward, Sabbath Manual, p. 125-127. 53. Ibid. 54. Ibid. 55. Eusébio, Life of Constantine, 3, 33, citado por Elliott, Horae Apocalypticae, vol. 1, p. 256. 56. Cox, Sabbath Literature, vol. 1, p. 361. 57. Anexo da obra de Gurney, History etc. of the Sabbath, p. 115, 116. 58. Sermon's on the Sacraments and Sabbath, p. 122, 123. 59. Quod non oportet Christianos Judaizere et otiare in Sabbato, sed operari in eodem die. Preferentes autem in veneratione Dominicum diem si vacare voluerint, ut Christiani hoc faciat; quod si reperti fuerint Judaizere Anathema sint a Christo. 60. Dissertation on the Lord's-day Sabbath, p. 33, 34, 41. 1633. 61. Sunday a Sabbath, p. 163. 1640. 62. Dialogues on the Lord's Day, p. 188. Hessey, Bampton Lectures, p. 72, 304, 305. 63. Tertuliano, De Corona, seções 3 e 4. 64. Sabbath Laws etc., p. 138. 65. Sabbath Laws etc., p. 138. 66. Cyc. Bib. Lit., verbete "Lord's Day"; Heylyn, Hist. Sab., parte 2, cap. 2, seção 7. 67. Hist. Sab., parte 2, cap. 3, seção 9. 68. Dialogues on the Lord's Day, p. 234; Hist. Sab., parte 2, cap. 3, seção 7. 69. Dialogues on the Lord's Day, p. 236, 237. 70. Treatise on the Sabbath, p. 219. 71. Sabbath Laws, etc., p. 284. 72. Hist. Sab., parte 2, cap. 4, seção 8. 73. Sabbath Manual, p. 123. 74. Dialogues on the Lord's Day, p. 259. 75. Idem, p. 260. 76. Sócrates, livro 5, cap. 22. 77. Sozomeno, livro 7, cap. 19; Lardner, vol. 4, cap. 85, p. 217. 78. Sabbath Laws, p. 280. Capítulo 20 O Domingo Durante a Idade das Trevas Oinício do sexto século testemunhou o desenvolvimento da grande apostasia a um nível tão avançado que o homem do pecado podia ser visto claramente assentado no templo de Deus. (2 Tessalonicenses 2) O império romano ocidental havia se dividido em dez reinos, e o caminho estava então preparado para a atuação do chifre pequeno. (Daniel 7) Na primeira parte desse século, o bispo de Roma se tornou líder de toda a igreja por ordem do imperador do oriente, Justiniano.[1] O dragão concedeu seu poder à besta, seu trono e grande autoridade. Com a ascensão do pontífice romano à supremacia, iniciam o "tempo, dois tempos e metade de um tempo" ou a profecia dos mil duzentos e sessenta anos de Daniel e João. (Daniel 7:8,24-25; Apocalipse 13:1-5) O verdadeiro povo de Deus se retirou então para lugares obscuros e isolados em busca de segurança, conforme representa a profecia: "A mulher, porém, fugiu para o deserto, onde lhe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias". (Apocalipse 12) Deixemos sua história por um instante para acompanhar a história da Igreja Católica e identificar, em seu registro, a história da festa do domingo ao longo da era das trevas. Referindo-se ao quinto e ao sexto séculos, Heylyn dá este testemunho: "Os fiéis, unindo-se ainda melhor do que antes, tornaram-se mais uniformes em pontos de devoção. Nessa uniformidade, concordaram juntos em dar ao dia do Senhor todas as honras de uma festa sagrada. Todavia, isso não foi feito de uma só vez, mas por etapas. Foram necessários o quinto século e quase todo o sexto antes que ele chegasse a sua elevada posição que desde então tem mantido. Nesses tempos, os imperadores e prelados tinham as mesmas inclinações: ambos estavam ávidos para promover esse dia acima de todos os outros. Com os editos dos imperadores e com as constituições eclesiásticas dos prelados o domingo tem uma dívida pelos muitos privilégios e isenções que desfruta até hoje."[2] Mas o domingo ainda não havia adquirido o título de sábado. Brerewood explica: "O nome sábado permaneceu apropriado para designar o antigo sábado [do sétimo dia], e nunca foi atribuído ao dia do Senhor, a não ser após muitos séculos depois da época de nosso Salvador."[3] Heylyn afirma o seguinte sobre o termo sábado na igreja antiga: "O sétimo dia da semana não tinha outro nome entre eles além daquele pelo qual era chamado no passado: o sábado [ou seja, 'descanso' em hebraico]. Logo, por mil anos ou mais, quando deparamos com o termo sabbatum em qualquer escritor, não importa o nome, ele não deve ser entendido como nenhum outro dia além do sétimo dia da semana."[4] O Dr. Francis White, bispo de Ely, também declara: "Quando os antigos pais distinguem os dias específicos da semana e lhes dão nomes próprios, eles sempre chamam o sábado de sabbatum, isto é, dia de descanso; e o domingo, que é o primeiro dia da semana, de dominicum, ou dia do Senhor."[5] Deve-se observar, porém, que a menção mais antiga ao domingo como o dia do Senhor aparece nos escritos de Tertuliano. Justino Mártir, cerca de 60 anos antes, o intitulou "o dia chamado domingo", ao passo que a aplicação oficial da expressão dia do Senhor, em referência ao domingo, só foi feita por Silvestre, bispo de Roma, mais de cem anos depois da época de Tertuliano. Heylyn faz a seguinte observação quanto à primeira menção do domingo como o "sábado cristão": "O primeiro que usou a expressão para denotar o dia do Senhor (o primeiro com quem me deparei em toda essa pesquisa) foi um certo Pedro Afonso. Ele viveu mais ou menos na mesma época que Rupertus [no início do século 12]. Ele foi o primeiro a chamar o dia do Senhor pelo nome de sábado cristão."[6] Sobre o trabalho aos domingos na igreja oriental, Heylyn conta: "Passaram-se quase ou talvez exatamente novecentos anos desde o nascimento de nosso Salvador para que se pensasse pela primeira vez em proibir o trabalho agrícola nesse dia no oriente. E provavelmente a proibição ali não foi atendida com mais prontidão do que a demonstrada anteriormente nas regiões ocidentais."[7] O Dr. Francis White dá este testemunho acerca do trabalho aos domingos na igreja do ocidente: "Por mais de seiscentos anos depois de Cristo, a Igreja Católica permitiu o trabalho e deu licença para muitos cristãos trabalharem no dia do Senhor, nas horas em que não tinham a ordem de estar presentes no culto público por preceito da igreja."[8] Mas vamos delinear os vários passos dados para que a festa do domingo crescesse em força até alcançar seu pleno desenvolvimento. Atualmente eles se encontram, em sua maioria, nos editos de imperadores e decretos de concílios. Morer nos conta: "No tempo de Clóvis, rei da França, os bispos se reuniram no primeiro concílio de Orleans [507 d.C.], no qual foi firmado o compromisso de que eles e seus sucessores estariam sempre na igreja no dia do Senhor, exceto em caso de doença ou de alguma enfermidade grave. E como eles, juntamente com outros clérigos daquela época, cuidavam de questões judiciais, foi decretado no concílio de Aragão, realizado por volta do ano 518, no reinado de Teodorico rei dos góticos, que 'nenhum bispo, ou qualquer outro pertencente às santas ordens, deve examinar ou julgar qualquer disputa civil no dia do Senhor'."[9] Isso mostra que, às vezes, bispos daquela época realizavam julgamentos civis aos domingos. Do contrário, tal proibição não teria sido feita. Hengstenberg, ao falar sobre o terceiro concílio de Orleans, nos dá um vislumbre da condição da festa do domingo nesse período: "O terceiro concílio de Orleans, 538 d.C., diz em seu vigésimo nono cânone: 'Tem-se espalhado entre as pessoas a opinião de que é errado cavalgar, dirigir, cozinhar ou fazer qualquer coisa para a casa ou para a pessoa no domingo. Mas como tais opiniões são mais judaicas do que cristãs, isso continuará a ser lícito no futuro, assim como tem sido até o presente. Em contrapartida, o trabalho agrícola deve ser deixado de lado, para que as pessoas não sejam impedidas de ir à igreja'."[10] Observe o motivo mencionado. Não era para que eles não transgredissem a lei do sábado como dia de descanso, mas, sim, para que não deixassem de comparecer à igreja. Outra autoridade apresenta a questão da seguinte forma: "O trabalho no campo [aos domingos] só foi proibido no concílio de Orleans, em 538 d.C. Era, portanto, uma instituição da igreja, conforme observou o Dr. Paley. Os primeiros cristãos se reuniam na manhã desse dia para orar e cantar hinos em comemoração à ressurreição de Cristo, e então davam continuidade a suas obrigações costumeiras."[11] Em 588 d.C., outro concílio foi realizado, cuja convocação ocorreu pelo seguinte motivo: "E como, a despeito de todo esse cuidado, o dia não era devidamente observado, os bispos foram convocados mais uma vez a Mascon, cidade da Borgonha, pelo rei Gunthrum, e ali eles elaboraram este cânone: 'Tem-se observado que o povo cristão grandemente negligencia e menospreza o dia do Senhor, dedicando-se ao trabalho comum, como nos outros dias. A fim de corrigir essa irreverência, no futuro, advertimos todos os cristãos que não tomam esse nome em vão a dar ouvidos a nosso conselho, sabendo vocês que nos preocupamos com seu bem e temos poder para impedi-los de fazer o mal. Guardem, portanto, o dia do Senhor, o dia do nosso novo nascimento.'"[12] Depois que mais uma lei foi necessária, somos informados: "Cerca de um ano depois, aconteceu um concílio em Narbona, o qual proibiu todas as pessoas de qualquer país ou posição de realizar qualquer tipo de obra servil no dia do Senhor. Se alguém ousasse desobedecer a esse cânone, pagaria uma multa se fosse livre, ou seria gravemente açoitado, se fosse servo. Surius apresenta a penalidade do edito promulgado pelo rei Recaredus, mais ou menos na mesma época, no ano de 590 d.C., a fim de dar força aos decretos do concílio: 'Os ricos deveriam ser punidos com a perda da metade de suas propriedades e os mais pobres com o exílio perpétuo'. Foi realizado outro sínodo em Auxerre, cidade de Champagne, no reinado de Clotário da França, no qual se decretou [...] 'que nenhum homem deveria ter permissão para arar, usar carro de boi ou fazer qualquer coisa do tipo no dia do Senhor.'"[13] Esses foram alguns dos esforços feitos no sexto século para promover a santidade da festa do domingo. E Morer relata o seguinte: "Por temor de que a doutrina não fosse aceita caso não houvesse milagres para embasá-la, Gregório de Tours [cerca de 590 d.C.] nos apresenta vários com esse propósito."[14] Francis West, escritor inglês favorável ao primeiro dia, cita como evidência, com toda seriedade, um desses milagres que justificam a santidade do primeiro dia: "Gregório de Tours relata que 'certo lavrador saiu no dia do Senhor para arar o campo. Enquanto limpava o arado com um ferro, este grudou de tal forma em sua mão que, por dois anos, não conseguiu se livrar dele, mas teve de carregá-lo continuamente para todos os lados, trazendo-lhe grande dor e vergonha'."[15] Na conclusão do sexto século, o papa Gregório exortou o povo de Roma a "expiar, no dia da ressurreição de nosso Senhor, aquilo que fora desleixadamente feito nos seis dias anteriores".[16] Na mesma epístola, esse papa condenou um grupo de homens em Roma que defendia a estrita observância tanto do sábado quanto do domingo, chamando-os de pregadores do anticristo.[17] Isso revela o sentimento de intolerância do papado em relação ao sábado, mesmo se aliado à estrita observância do domingo. Também mostra que havia guardadores do sábado, até mesmo em Roma, em período tão recente quanto o sétimo século, embora, de tão confusos que estavam pelas trevas predominantes, unissem a essa observância uma rígida abstinência do trabalho aos domingos. Na primeira parte do sétimo século, surgiu outro inimigo do sábado bíblico na pessoa de Maomé. A fim de diferenciar seus seguidores tanto daqueles que guardavam o sábado quanto dos que observavam a festa do domingo, ele escolheu a sexta-feira, o sexto dia da semana, como sua festa religiosa. Assim "os muçulmanos e os católicos crucificaram o sábado do mesmo modo que os judeus e os romanos crucificaram o Senhor do sábado, entre dois ladrões, o sexto e o primeiro dia da semana".[18] De fato, o islamismo e o catolicismo suprimiram o sábado em uma vasta extensão territorial. Por volta da metade do sétimo século, encontramos mais cânones da igreja em prol do domingo: "Em Chalons, cidade da Borgonha, por volta do ano 654, aconteceu um sínodo provinciano que confirmou o que fora feito pelo terceiro concílio de Orleans acerca da observância do dia do Senhor, a saber que 'ninguém deveria arar ou colher, ou fazer qualquer outra atividade relativa à agricultura', sob pena de censuras da igreja, que estava mais resoluta ainda, pois era apoiada pelo poder secular. O mesmo sínodo fez um edito que ameaçava quem transgredisse a ordem: os servos deveriam receber uma forte surra; os livres ganhavam três advertências, e se continuassem em falta, perderiam a terça parte de seu patrimônio, e caso permanecessem em sua obstinação, se transformariam em escravos a partir de então. No primeiro ano de Eringius, por volta da época do papa Agatão, reuniu-se o décimo segundo concílio de Toledo na Espanha, em 681 d.C., no qual os judeus foram proibidos de guardar suas próprias festas, devendo, pelo menos, observar o dia do Senhor no que diz respeito a não realizar nele qualquer tipo de trabalho, pelo qual pudessem expressar seu desprezo por Cristo ou pela adoração a Ele'."[19] Essas eram, de fato, razões de peso para a guarda do domingo. Não é de se estranhar que, na Idade das Trevas, a constante sucessão de coisas desse tipo tenha resultado na observância universal desse dia. Até mesmo os judeus foram forçados a desistir da guarda do sábado e a honrar o domingo, descansando de seus labores nesse dia. Ao que tudo indica, a primeira menção ao domingo nos estatutos ingleses foi a seguinte: 692 d.C. "Ina, rei dos saxões ocidentais, seguindo o conselho de Cenred, seu pai, de Heddes e Erkenwald, seus bispos, com todos seus aldeães e sábios, na grande assembleia dos servos de Deus, para a saúde de sua alma e a preservação comum do reino, fez várias constituições, dentre as quais esta foi a terceira: 'Se um servo realizar qualquer trabalho no domingo por ordem de seu senhor, será liberto, e o senhor pagará trinta shillings; mas se ele sair para trabalhar por conta própria, será açoitado com chicote ou se resgatará por um preço. Um homem livre que trabalhar nesse dia perderá a liberdade ou pagará sessenta shillings. Caso seja sacerdote, o valor será dobrado'."[20] No mesmo ano em que essa lei foi promulgada na Inglaterra, reuniu-se o sexto concílio geral em Constantinopla, o qual decretou: "Se qualquer bispo ou outro clérigo, ou ainda qualquer leigo, se ausentar da igreja por três domingos seguidos, exceto em casos de grande necessidade, deve ser deposto, se clérigo, e excluído da sagrada comunhão, se leigo."[21] No ano 747, ocorreu um concílio do clero inglês sob a liderança de Cuthbert, arcebispo de Canterbury, durante o reinado de Egbert, rei de Kent, no qual esta constituição foi criada: "Ordena-se que o dia do Senhor seja celebrado com a veneração que lhe é devida e totalmente consagrado à adoração a Deus, e que todos os abades e sacerdotes, neste dia santíssimo, permaneçam em seus respectivos monastérios e igrejas, para ali cumprirem seus deveres segundo a posição que ocupam."[22] Outro estatuto eclesiástico do oitavo século foi promulgado em Dingosolinum, na Bavária, onde um sínodo se reuniu por volta do ano 772, o qual decretou: "Se algum homem usar seu carro de boi nesse dia ou realizar qualquer trabalho comum, seus animais serão dados para uso público, e se a pessoa permanecer em sua insensatez, deve ser vendida como escravo."[23] Os ingleses não ficaram atrás de seus vizinhos na dedicada obra de promover a santidade do domingo. Assim lemos: 784 d.C. "Egbert, arcebispo de York, a fim de demonstrar com toda clareza o que deve ser feito aos domingos e qual é a intenção das leis ao proibirem o trabalho comum nesse dia, fez este cânone: 'Que nada mais, disse ele, seja feito no dia do Senhor, além de louvar a Deus com hinos, salmos e cânticos espirituais. Quem se casar no domingo deve cumprir penitência por sete dias.'"[24] No final do oitavo século, foram feitos ainda mais esforços em favor desse dia favorecido: "Carlos Magno convocou os bispos em Friuli, na Itália, onde [...] decretaram [791 d.C.] que todas as pessoas deveriam honrar o dia do Senhor, com a devida reverência e devoção. [...] Sob o governo desse mesmo governante, convocou-se outro concílio três anos depois em Frankfurt, na Alemanha, no qual se determinou que os limites do dia do Senhor iam do início da noite de sábado ao início da noite de domingo."[25] Os cinco concílios de Mentz, Rheims, Tours, Chalons e Arles foram convocados no mesmo ano, 813, por Carlos Magno. Seria enfadonho para o leitor se demorar nos vários votos tomados nesses concílios a favor do domingo. São da mesma natureza daqueles já citados. No entanto, o concílio de Chalons é digno de nota, pois, de acordo com Morer, "Eles solicitaram o auxílio do poder secular, desejando que o imperador [Carlos Magno] providenciasse meios para que houvesse uma observância mais estrita dele [do domingo]. Foi exatamente isso que ele fez, sem deixar pedra sobre pedra, a fim de garantir a honra desse dia. Seu cuidado foi bem-sucedido, e durante seu reinado, o dia do Senhor teve importância considerável. Mas depois de sua época, assumiu outra reputação."[26] O papa fez sua parte para impedir a profanação do domingo: "Por causa disso, o papa Eugênio, em um sínodo realizado em Roma por volta de 826, [...] orientou que os padres das paróquias advertissem os transgressores e os orientassem a ir à igreja e fazer suas orações, para que, caso não seguissem as orientações, não trouxessem alguma grande calamidade sobre eles próprios e seus vizinhos."[27] Contudo, tudo isso não foi suficiente, e, por essa razão, outro concílio foi convocado. Nele, foi mencionado -- talvez pela primeira vez -- o famoso argumento a favor do primeiro dia, tão familiar a todos, de que o domingo é o sábado verdadeiro porque homens são atingidos por raios enquanto trabalham nesse dia. Assim lemos: "Mas como tais admoestações paternais foram de pouca valia, foi realizado em Paris um concílio provinciano três anos depois [...] em 829, no qual os prelados reclamaram que 'o dia do Senhor não era guardado com a devida reverência exigida pela religião; [...] e essa era a razão por que Deus havia enviado diversos juízos sobre eles e, de maneira muito notável, castigado algumas pessoas por menosprezarem o dia e abusarem dele. Eles dizem, muitos com conhecimento de causa e outros por ouvirem falar, que diversos conterrâneos que deram continuidade ao trabalho agrícola nesse dia foram mortos por raios; outros foram acometidos por convulsões nas juntas e pereceram miseravelmente. Dessa forma, ficou evidente como é grande o desprazer de Deus pela negligência desse dia'. Por fim, concluíram que, "em primeiro lugar, se deve suplicar a sacerdotes e ministros, depois a reis e príncipes e a todo o povo fiel que dediquem seus maiores esforços e cuidados para que o dia seja restaurado a sua honra e, para a boa reputação do cristianismo, seja mais devotamente observado no futuro'."[28] Tornando-se necessárias mais leis, "Foi decretado, cerca de sete anos depois, num concílio em Aken, sob o comando de Luís, o Piedoso, que nem processos, nem casamentos deveriam ser permitidos no dia do Senhor."[29] Mas a lei de Carlos Magno, embora apoiada pela autoridade da igreja, conforme expressa nos cânones dos concílios já citados, se tornou muito fraca, por causa da omissão de Luís, seu sucessor. Fica evidente que os cânones e decretos de concílios, embora reforçados pela menção de juízos terríveis que haviam recaído sobre seus transgressores, ainda eram insuficientes para impor o dia santo. Procurou-se um novo estatuto, mais terrível do que qualquer outro até então promulgado, que saísse das mãos do imperador. Assim lemos: "Então foi feito um apelo aos imperadores, Luís e Lotário, rogando que dessem atenção especial à situação e emitissem um preceito ou uma ordem mais severa do que as existentes até então, a fim de amedrontar seus súditos e forçá-los a deixar de arar a terra, fazer processos judiciais e negócios -- trabalhos que haviam novamente voltado a ser feitos aos domingos. O pedido foi atendido no ano 853, e, para esse fim, foi convocado um sínodo em Roma durante o papado de Leão IV."[30] Os defensores do descanso sabático aos domingos têm buscado, em todas as eras, uma lei capaz de aterrorizar aqueles que não santificam esse dia. Eles continuam até hoje nesse vão esforço. Mas se honrassem o dia que Deus separou como o sábado, descobririam na lei de fogo, procedente de Sua destra, um estatuto que torna desnecessária toda e qualquer legislação humana.[31] Nesse sínodo, o papa assumiu com toda avidez a responsabilidade pela questão. Heylyn relata que, na época dos imperadores Luís e Lotário, foi realizado um sínodo em Roma, em 853 d.C., sob a liderança do papa Leão IV: "Ali foi ordenado de maneira mais precisa do que em anos anteriores que nenhum ser humano deveria, a partir de então, ousar fazer qualquer tipo de comércio no dia do Senhor, nem mesmo daquilo destinado à alimentação; nem deveriam realizar qualquer tipo de trabalho pertinente à agricultura. Uma vez que esse cânone foi feito em Roma, confirmado em Compienha e depois incorporado ao corpo das leis canônicas, ele passou a ser aceito, sem maiores questionamentos, na maior parte da cristandade, sobretudo quando os papas chegaram ao apogeu e submeteram todos os governantes cristãos para que lhes prestassem lealdade. O povo, então, que até o momento fizera grande oposição a esse tipo de decreto, disse com toda propriedade: 'Dois reis não puderam resistir a ele; como, pois, poderemos nós fazê-lo?'. Com essa atitude de consternação, todos os homens imediatamente obedeceram, e trabalhadores de toda natureza deixaram de lado seus afazeres; inclusive os donos de moinhos, embora o ofício deles fosse o mais fácil e o que menos exigia sua presença."[32] Isso representou uma consolidação extremamente eficaz da santidade do primeiro dia. Cinco anos depois, lemos o seguinte: 858 d.C. "Os búlgaros enviaram algumas perguntas ao papa Nicolau, para as quais queriam respostas. E a [resposta] referente ao dia do Senhor foi que deveriam se abster de qualquer trabalho secular."[33] Morer nos informa acerca do poder civil: "Neste século, o imperador Leão [de Constantinopla], chamado o filósofo, proibiu o trabalho agrícola, o qual, segundo a tolerância de Constantino, era permitido no oriente. O mesmo cuidado se tomou no ocidente por Teodoro, rei dos bávaros, que deu a seguinte ordem: 'Se, no dia do Senhor, qualquer pessoa colocar jugo em seus bois ou dirigir sua carroça, perderá imediatamente o boi do lado direito; ou se fizer palha e a carregar para dentro, deve receber duas advertências para cessar a prática. Caso não o faça, deve ganhar no mínimo cinquenta chibatadas'."[34] Sobre as leis dominicais naquele século na Inglaterra, lemos: 876 d.C. "Alfredo, o Grande, foi o primeiro a unir a Heptarquia Saxã, e cuidou intensamente para que fosse criada uma lei que, dentre outras festas, tornasse mais especialmente solene a guarda desse dia, pois foi o dia no qual nosso Salvador Cristo venceu o diabo, isto é, o domingo, que é o memorial semanal da ressurreição de nosso Senhor, derrotando assim a morte e aquele que tem poder sobre a morte, a saber, o diabo. E ao passo que anteriormente o único castigo para o sacrilégio cometido em qualquer outro dia era restaurar o valor do objeto roubado e perder uma mão, ele acrescentou que se alguém fosse culpado desse crime no dia do Senhor, deveria ser duplamente punido."[35] Dezenove anos depois, o papa e seu concílio fortaleceram ainda mais o dia sagrado. O concílio de Friburgo, realizado na Alemanha em 895 d.C., convocado pelo papa Formoso, decretou que as pessoas deveriam passar o dia do Senhor "em oração, dedicando-o completamente ao serviço a Deus, para que Sua ira não fosse provocada".[36] A obra de consolidar a santidade do domingo na Inglaterra foi levada avante com perseverança: "O rei Athelston, [...] no ano 928, criou uma lei segundo a qual não deveria haver nenhum tipo de comércio ou disputa judicial no dia do Senhor, sob pena de abrir mão das mercadorias, além de pagar uma multa de trinta shillings por ofensa."[37] Em uma convocação do clero inglês por volta dessa época, decretou-se que deveria cessar aos domingos todo tipo de comércio, de julgamentos, e etc. "E quem transgredisse em qualquer desses casos, se fosse livre, deveria pagar doze orae, e se fosse servo, deveria ser severamente açoitado". Também somos informados: "Por volta do ano 943, Otho, arcebispo de Canterbury, decretou que o dia do Senhor deveria ser guardado acima de todas as coisas com toda a cautela imaginável, de acordo com o cânone e a prática antiga."[38] 967 d.C. O rei Edgar "ordenou que a festa fosse guardada das três da tarde no sábado até o alvorecer da segunda-feira."[39] "O rei Ethelred, o moço, filho de Edgar, coroado por volta do ano 1009, convocou um concílio geral de todo o clero inglês, liderado por Elfeagus, arcebispo de Canterbury, e Wolstan, arcebispo de York. E ali foi exigido que todas as pessoas guardassem o domingo da maneira mais zelosa, bem como todos os preceitos ligados a esse dia."[40] A festa do domingo também conseguiu ganhar espaço na Noruega. Heylyn nos conta sobre a piedade de um rei norueguês chamado Olaus, em 1028 d.C. "Por ter se deixado levar, certo domingo, em sérios pensamentos, e tendo em mãos uma pequena bengala, ele pegou sua faca e fez pequenos cortes na bengala, como fazem às vezes os homens quando estão preocupados ou concentrados em alguma atividade comercial. Quando lhe disseram, em tom de brincadeira, como ele havia transgredido o dia de descanso dessa maneira, ele pegou as farpas da madeira, colocou- -as sobre a mão e lhes ateou fogo, para que, conforme contou Crantzius, a vingança de ter transgredido, sem pensar, o mandamento de Deus recaísse sobre si mesmo."[41] Na Espanha, o trabalho também continuou. Foi realizado um concílio em Coy, cidade desse país, em 1050 d.C., sob a liderança de Fernando, rei de Castela, nos dias do papa Leão IX, no qual se decretou que o dia do Senhor "deveria ser completamente dedicado a ouvir a missa".[42] A fim de fortalecer a santidade desse dia venerável na mente das pessoas, os doutores da igreja não pouparam esforços. Heylyn faz a seguinte afirmação: "Pedro Damião, que viveu em 1056 d.C., afirmou que, todo dia do Senhor, as almas do purgatório eram liberadas de suas dores e esvoaçavam, como pássaros, para cima e para baixo no lago Avernus."[43] Na mesma época, outro argumento de natureza semelhante foi criado para tornar ainda mais estrita a observância do domingo. Morer nos conta o seguinte sobre o grupo de pessoas que, nessa época, eram extremamente zelosos em sua defesa da guarda do domingo: "Todavia, os outros continuavam a fazer as coisas como de costume. Assim, a fim de induzir os prosélitos a guardar o dia com mais exatidão e cuidado, eles citaram o velho argumento da compaixão e caridade pelos condenados ao inferno, que, durante esse dia, têm algum alívio de seus tormentos; e a natureza e a liberdade desse alívio dependeriam do zelo e da forma como eles o observassem."[44] Portanto, se o povo guardasse estritamente essa festa sagrada, seus amigos no inferno colheriam os benefícios por meio de um alívio de seus tormentos nesse dia! Em um concílio em Roma, em 1078 d.C., o papa Gregório VII decretou que, como o sábado tinha sido considerado dia de jejum por muito tempo, aqueles que desejavam ser cristãos deveriam se abster do consumo de carne nesse dia.[45] Na parte oriental da Igreja Católica, no século 11, o sábado continuava a ser considerado uma festa tão santa quanto o domingo. Heylyn mostra, em contrapartida, qual era a atitude da parte ocidental da igreja: "Mas, na igreja de Roma, as coisas eram bem diferentes há muito tempo; pois, nesse dia, eles trabalhavam e jejuavam. [...] E isso, com pouca oposição ou interrupção, salvo aquilo que fora feito na cidade de Roma no início do sétimo século e logo fora suprimido por Gregório, bispo local na época, conforme já observamos. De qualquer forma, Urbano II consagrou o dia ao culto semanal à bendita virgem, instituindo no concílio realizado em Clermont, 1095 d.C., que o culto a nossa senhora deveria ser oficiado nesse dia e que nele todos os cristãos deveriam adorá-la com a maior devoção."[46] Essa parece ter sido a maior das ofensas ao Altíssimo. O memorial do grande Criador foi separado como uma festa para adorar Maria, sob o título de mãe de Deus! Na metade do século 12, o rei da Inglaterra foi advertido a não tolerar que as pessoas trabalhassem no domingo. Henrique II subiu ao trono por volta de 1155. "Conta-se, a seu respeito, que teve uma visão em Cardiff ([...] no sul do País de Gales) de São Pedro, que lhe ordenou que, em todo o seu domínio, aos domingos, não se deveria comprar, vender, nem realizar qualquer obra servil."[47] Mas a santidade do domingo ainda não estava consolidada o bastante, pois faltava um mandado divino de sua observância. O modo como essa carência foi satisfeita é relatado por Roger Hoveden, historiador de alta reputação que viveu exatamente na época em que esse tão necessário preceito foi fornecido pelo papa. Hoveden nos informa que o abade Eustace, de Flaye, na Normandia, foi à Inglaterra no ano 1200 a fim de pregar a palavra do Senhor, e que sua pregação foi acompanhada por muitos milagres maravilhosos. Ele era muito fervoroso na defesa do domingo. Hoveden afirma: "Em Londres também, assim como em muitos lugares através da Inglaterra, ele fez, por sua pregação, que, daquele momento em diante, as pessoas não mais ousassem abrir mercados de produtos expostos para venda no dia do Senhor."[48] Mas Hoveden nos conta que "o inimigo da humanidade levantou contra esse homem de Deus os ministros da iniquidade", e parece que, por ele não ter nenhum mandamento ordenando o domingo, ele se encontrou em uma posição complicada. O historiador continua: "No entanto, esse abade, por ser censurado pelos ministros de Satanás, não estava mais disposto a incomodar os prelados da Inglaterra com sua pregação e voltou para a Normandia, ao lugar de onde veio."[49] Embora repelido, não passava pela cabeça de Eustace abandonar a batalha. Ele não tinha nenhum mandamento do Senhor quando foi à Inglaterra pela primeira vez. Contudo, a permanência de um ano na parte continental da Europa foi suficiente para lhe proporcionar o que faltava. Hoveden nos conta como ele voltou no ano seguinte com o necessário preceito: "No mesmo ano [1201], Eustace, abade de Flaye, voltou para a Inglaterra, pregando a palavra do Senhor de cidade em cidade e de lugar em lugar, proibindo a todos de colocar mercadorias à venda no dia do Senhor; pois ele disse que o mandamento escrito abaixo, sobre a observância do dia do Senhor, havia descido do céu: "O SANTO MANDAMENTO SOBRE O DIA DO SENHOR, "Que desceu do céu até Jerusalém e foi encontrado no altar de São Simeão, no Gólgota, onde Cristo foi crucificado pelos pecados do mundo. O Senhor enviou esta epístola, que foi encontrada no altar de São Simeão; e, depois de olhá-la, por três dias e três noites, alguns homens caíram por terra, implorando misericórdia a Deus. E depois da terceira hora, o patriarca se levantou, junto com Acharias, o arcebispo, e eles abriram o rolo e receberam a santa epístola de Deus. E quando eles a tomaram, encontraram ali esta escritura: "'Eu sou o Senhor, que ordenei que observem o santo dia do Senhor, e vocês não o têm guardado, nem se arrependido de seus pecados, conforme Eu disse em Meu evangelho: 'Passará o céu e a terra, porém as Minhas palavras não passarão'. Visto que, apesar de Eu ter feito com que fosse pregado a vocês arrependimento e mudança de vida, vocês não creram em Mim, então enviei contra vocês os pagãos que derramaram seu sangue na Terra. Ainda assim vocês não acreditaram; e porque vocês não santificaram o dia do Senhor, sofreram fome por alguns dias, mas logo lhes dei fartura e, depois disso, vocês procederam de forma ainda pior. Mais uma vez, é da Minha vontade que ninguém, da nona hora do sábado até o nascer do sol da segunda, realize qualquer trabalho, a não ser aquilo que é bom. "'E se alguém o fizer, deve reparar o dano com penitências. E se não obedecerem a este mandamento, em verdade lhes digo e lhes juro por Meu trono, e pelo querubim que guarda Meu santo trono, que não lhes darei Minha ordem por meio de nenhuma outra epístola, mas abrirei os céus e, em vez de chuva, mandarei pedras, madeira e água quente durante a noite, para que ninguém consiga se precaver contra a calamidade, e assim destruirei todos os ímpios. "'Isto lhes digo: por causa do dia santo do Senhor, vocês hão de morrer, e por causa de todas as outras festas de Meus santos que vocês não têm guardado, mandarei sobre vocês bestas com cabeça de leão, cabelo de mulher e rabo de camelo. Elas serão tão vorazes que devorarão sua carne, e vocês desejarão fugir para as sepulturas dos mortos e se esconder de medo. Eu tirarei a luz do sol de diante de seus olhos e enviarei trevas sobre vocês, para que, por não conseguirem enxergar, vocês se matem uns aos outros. Assim, removerei de vocês Minha face e não lhes demonstrarei misericórdia, pois queimarei o corpo e o coração de vocês e de todos aqueles que não guardarem o santo dia do Senhor. "'Ouçam Minha voz, para que não pereçam na terra por causa do santo dia do Senhor. Afastem-se do mal e se arrependam de seus pecados. Caso contrário, assim como Sodoma e Gomorra, vocês perecerão. Fiquem sabendo que vocês foram salvos pelas preces de Minha santíssima mãe Maria e de Meus santíssimos anjos, que oram por vocês todos os dias. Eu lhes dei trigo e vinho em abundância, mas mesmo assim vocês não Me obedeceram, pois as viúvas e os órfãos clamam diariamente, e vocês não lhes estendem misericórdia. Os pagãos demonstram misericórdia, mas vocês, de modo algum. Farei as árvores frutíferas secarem por causa de seus pecados. Os rios e as fontes não darão água. "'Eu lhes dei uma lei no monte Sinai, que vocês não guardaram. Dei-lhes uma lei com Minhas próprias mãos, que vocês não observaram. Por vocês Eu nasci neste mundo, e Meu dia de festa vocês ignoram. Sendo perversos, não guardam o dia do Senhor de Minha ressurreição. Por Minha destra Eu lhes juro que, se não observarem o dia do Senhor e as festas dos Meus santos, mandarei sobre vocês as nações pagãs para que os matem. E ainda assim vocês cuidam dos negócios alheios e não dão nenhuma atenção a isso? Por esse motivo, enviarei contra vocês bestas ainda piores, que devorarão os seios de suas mulheres. Amaldiçoarei aqueles que têm praticado o mal no dia do Senhor. "'Aqueles que agem de maneira injusta com seus irmãos, Eu os amaldiçoarei. Amaldiçoarei também aqueles que julgam injustamente os pobres e os órfãos da terra, pois vocês Me abandonam e seguem o príncipe deste mundo. Deem ouvidos a Minha voz e receberão a bênção da misericórdia. Mas vocês não cessam suas obras más, nem as obras do diabo. Por serem culpados de perjúrios e adultérios, as nações os cercarão e, como bestas, os devorarão'".[50] Há tantas provas, que não resta espaço para dúvidas, de que tal documento foi levado para a Inglaterra nessa época, e da maneira que aqui será descrita.[51] Matthew Paris, assim como Hoveden, foi contemporâneo de Eustace. Na verdade, Hoveden pertence, de fato, ao século 12, pois morreu logo depois da chegada de Eustace com o rolo. Mas Matthew Paris viveu no século 13 e era um juvenil na época em que o rolo (1201 d.C.) foi levado para a Inglaterra. A reputação de ambos é de que falam a verdade. Ao se referir aos escritores desse século, Mosheim dá o seguinte testemunho em relação à credibilidade de Matthew Paris: "Dentre os historiadores, o primeiro lugar é devido a Matthew Paris, escritor do mais alto mérito, tanto em conhecimento quanto em prudência."[52] E o Dr. Murdock diz a respeito dele: "É considerado o melhor historiador da Idade das Trevas, culto, independente, honesto e sensato."[53] Matthew Paris relata o retorno do abade Eustachius (sua forma de grafar o nome dele) da Normandia e nos apresenta uma cópia do rolo que ele trouxe, bem como um relato de sua queda do céu feita pelo próprio abade. Ele também conta como o abade narrou a história do rolo, desde o momento em que o patriarca criou coragem para pegá-lo nas mãos até a hora em que o abade foi comissionado a levá-lo para a Inglaterra. Ele diz: "Mas quando o patriarca e o clero de toda a terra santa examinaram com grande diligência o conteúdo dessa epístola, foi decretado por meio de uma deliberação geral que a carta deveria ser enviada para o pontífice romano, a fim de que este a julgasse, uma vez que tudo aquilo que ele decretasse que deveria ser feito agradaria a todos. Quando, por fim, a epístola chegou ao conhecimento do senhor papa, ele imediatamente ordenou mensageiros que foram enviados a diferentes lugares do mundo, a fim de pregar em toda parte a doutrina dessa carta; e o Senhor trabalhou com eles e confirmou as palavras deles por meio dos sinais que se seguiram. Dentre eles, o abade de Flay, chamado Eustachius, homem devoto e instruído, que, tendo entrado no reino da Inglaterra, ali brilhou com muitos milagres."[54] Agora sabemos o que o abade estava fazendo no ano em que se ausentou da Inglaterra. Ele não conseguiu estabelecer a santidade do primeiro dia em sua primeira missão no país, uma vez que não contava com nenhuma ordem divina a seu favor. Então, retirou-se da missão por tempo suficiente para tornar o caso conhecido ao "senhor papa". Quando foi pela segunda vez, levou consigo a ordem divina para guardar o domingo, bem como o mandato do papa, autorizando- -o a proclamar a ordem ao povo. Ele lhes informou que a carta fora enviada a "Sua Santidade de Jerusalém" por aqueles que viram o rolo cair do céu. Se Eustace tivesse criado o documento sozinho e forjado uma ordem papal, alguns meses seriam suficientes para revelar a farsa. Mas o caráter genuíno do documento nunca foi questionado, como mostra a preservação do rolo pelos melhores historiadores da época. Logo, atribuímos a responsabilidade por este rolo ao papa de Roma. A declaração do papa de que ele recebeu o documento das mãos daqueles que o viram cair do céu é a garantia, dada por Sua Santidade ao povo, de que o rolo de fato veio de Deus. Os historiadores que viveram na época, os quais registraram essa operação, se contentaram com a informação de que Eustace trouxera o rolo das mãos do papa e creram na declaração papal de que o documento viera do céu. Era Inocêncio III que ocupava o cargo de papa nessa época. A respeito dele, Bower declara: "Inocêncio era perfeitamente qualificado para elevar o poder e a autoridade papal ao mais alto nível, e o vemos aproveitar, com grande zelo, cada oportunidade oferecida para alcançar esse objetivo."[55] Outro autor de destaque faz esta declaração: "As circunstâncias externas dessa época também contribuíram para promover os pontos de vista de Inocêncio. Isso permitiu que ele tornasse seu pontificado o mais marcante dos anais de Roma e o apogeu da supremacia temporal e espiritual da Santa Sé."[56] "Seu pontificado pode, com toda propriedade, ser considerado o período de maior poder da Santa Sé."[57] As densas trevas da Idade das Trevas ainda cobriam a terra quando esse pontífice ocupou o assento do trono papal, erguendo o papado a sua mais elevada posição. É importante citar dois fatos relacionados e dignos de nota: 1. O primeiro ato de usurpação papal ocorreu por meio de um edito a favor do domingo.[58] 2. O apogeu da usurpação papal foi marcado por uma ação do papa em fornecer um preceito divino para a observância do domingo. A missão de Eustace foi confirmada por milagres, considerados dignos de ser citados por aqueles que creem na santidade do primeiro dia simplesmente porque seus pais criam assim. Por meio desse episódio, eles podem descobrir o que foi feito nos séculos desde então a fim de fixar tais ideias na mente de seus pais. Eustace foi para York, no norte da Inglaterra e, sendo recebido com grandes honras, "pregava a palavra de Deus no início do dia do Senhor e de outras festas, impunha penitência ao povo e concedia-lhes absolvição, sob a condição de que, no futuro, eles prestassem a devida reverência ao dia do Senhor e a outras festas dos santos, não realizando em tais dias nenhuma obra servil."[59] "Diante disso, as pessoas que, ao ouvirem sua pregação, se mostravam fiéis a Deus, faziam o voto diante do Senhor de que, no futuro, no dia do Senhor, não comprariam ou venderiam nada, com exceção, talvez, de comida e bebida para os viajantes."[60] O abade também cuidou da coleta de esmolas para os pobres e proibiu o uso das igrejas para vender mercadorias e realizar processos judiciais. Por causa disso, o rei interferiu da seguinte forma: "Consequentemente, por causa dessa e de outras advertências desse homem santo, o inimigo da humanidade, tomado de inveja, colocou no coração do rei e dos príncipes das trevas ordenar que todos aqueles que observassem as doutrinas que acabamos de mencionar, mais especificamente aqueles que desaprovassem os mercados no dia do Senhor, fossem levados perante o tribunal de justiça do rei a fim de dar satisfações quanto à guarda do dia do Senhor."[61] Ao que tudo indica, os mercados aos domingos eram realizados nas igrejas, e Eustace estava tentando acabar com eles ao proibir a venda de mercadorias nas igrejas. Então, para confirmar a autoridade do rolo e neutralizar a oposição do rei, foram relatados prodígios muito extraordinários. O rolo proibia o trabalho "da nona hora [isto é, 15h] do sábado até o nascer do sol da segunda". Agora leia o que aconteceu com os desobedientes: "Num sábado, certo carpinteiro de Beverly, depois da hora nona do dia, contrariou o conselho sensato de sua esposa e continuou a fazer uma cunha de madeira. Ele caiu por terra, acometido de paralisia. Uma tecelã, depois da nona hora do sábado, em sua ansiedade por terminar parte da trama, persistiu em trabalhar. Então caiu ao chão, tomada por paralisia, e perdeu a voz. Também em Rafferton, vilarejo pertencente ao mestre Roger Arundel, um homem fez pão para si e o assou debaixo das cinzas após a hora nona do sábado. Comeu um pedaço e reservou o restante para a manhã seguinte. Quando, porém, o partiu no dia do Senhor, sangue começou a jorrar. Aquele que o viu, dá testemunho a respeito destas coisas, e seu testemunho é verdadeiro." "Em Wakefield, certo sábado, enquanto um moleiro cuidava de moer seu milho após a hora nona, de repente surgiu, em vez de farinha, uma torrente tão grande de sangue que a vasilha colocada embaixo quase transbordou de sangue. A roda do moinho ficou imóvel, a despeito da forte correnteza. Aqueles que contemplaram tal fato ficaram assombrados, dizendo: 'Poupa-nos, ó Senhor, poupa Teu povo!'." "Além disso, em Lincolnshire, uma mulher havia preparado uma massa e a levou para assar após a hora nona do sábado, quando o forno estava bem aquecido. Mas quando tirou a massa, descobriu que estava crua. Então colocou a massa de pão no forno quente de novo e, tanto no dia seguinte quanto na segunda-feira, quando supôs que encontraria os pães assados, viu que a massa continuava crua." "Na mesma região, depois de certa mulher preparar sua massa, com a intenção de colocá-la no forno, ouviu do marido: 'É sábado, e já passou da hora nona. Deixe a massa de lado até segunda'. A mulher, obedecendo ao esposo, fez o que ele dissera. Então cobriu a massa com um pano de linho e, no dia seguinte, foi dar uma olhada para ver se a massa, pela ação do fermento, havia crescido e transbordado pelas bordas da vasilha. Ali encontrou os pães já prontos, feitos pela vontade divina, bem assados, sem nenhum tipo de fogo do material deste mundo. Foi uma mudança operada pela mão direita Daquele que habita nas alturas."[62] O historiador lamenta o fato de tais milagres não terem causado o devido impacto sobre o povo, que temia mais ao rei do que a Deus. Assim, "como um cão volta a seu vômito, as pessoas voltaram a comprar e vender no dia do Senhor".[63] Essa foi a primeira tentativa, na Inglaterra, após a aparição de São Pedro em 1155 d.C., de conferir autoridade divina à observância do domingo. "Isso revela" -- conforme Morer singularmente observa -- "como as pessoas se esforçavam, naquela época, para que esse grande dia fosse observado com solenidade".[64] E Gilfillan, que teve a oportunidade de mencionar a história do rolo do céu, não tem uma palavra sequer de condenação acerca da piedosa fraude a favor do domingo. Ele simplesmente se refere ao abade como "essa pessoa fervorosa".[65] Em 1203 d.C., dois anos depois da chegada de Eustace à Inglaterra com o rolo, foi realizado um concílio na Escócia para debater a introdução e a consolidação do dia do Senhor nesse reino.[66] O rolo que caíra do céu para suprir a falta de testemunho bíblico acerca desse dia foi adaptado, de maneira admirável, à agenda desse concílio, embora o Dr. Heylyn nos informe que os escoceses estavam tão prontos a cumprir os desejos do papa que a encomenda da corte celeste, bem como os milagres que o acompanharam, não foram necessários.[67] Ainda assim, Morer afirma que o rolo foi, na verdade, apresentado nessa ocasião: "Com essa finalidade, ele foi mais uma vez apresentado e lido em um concílio na Escócia, realizado na época do [papa] Inocêncio III, [...] 1203 d.C., no reinado do rei William, que fez com que suas admoestações [...] se transformassem numa lei segundo a qual o sábado, a partir do meio-dia, deveria ser considerado santo, e que ninguém poderia cuidar de questões mundanas proibidas em dias de festa. Além disso, ao toque de um sino, as pessoas deveriam se ocupar com atos santos, como ouvir sermões e coisas do tipo, continuando assim até a manhã da segunda-feira, sofrendo uma penalidade quem agisse de forma contrária. Por volta de 1214, onze anos depois do concílio, foi promulgado mais uma vez, em um parlamento em Scone, por Alexander III, rei dos escoceses, que ninguém deveria pescar desde a oração da tarde do sábado até o nascer do sol da segunda. Tal lei foi confirmada posteriormente pelo rei James I [da Escócia]."[68] A santidade do dia do Senhor papal parece ter sido consolidada com maior facilidade ao se atribuir a ele características do antigo sábado. A obra de estabelecer essa instituição foi levada adiante em todos os lugares com perseverança. Sobre a Inglaterra, lemos: "No ano de 1237, quando Henrique III era rei e Edmund de Abendon arcebispo de Canterbury, foi criada uma constituição exigindo que todos os ministros proibissem seus paroquianos de frequentar mercados no dia do Senhor, e de sair da igreja, onde deveriam se reunir para passar o dia em oração e ouvindo a palavra de Deus. Tudo isso sob pena de excomunhão."[69] Acerca da França, somos informados: "O concílio de Lião se reuniu em torno do ano 1244 e proibiu o povo de realizar trabalho comum no dia do Senhor e em outras festas, sob pena de censuras eclesiásticas." 1282 d.C. O concílio de Angeirs, na França, "proibiu os moleiros de moerem o milho com o uso de água, ou de qualquer outro meio, desde o início da noite de sábado até o começo da noite de domingo."[70] Os espanhóis não ficaram para trás nessa obra: 1322 d.C. Nesse ano, "foi convocado um sínodo em Valladolid, Castela, onde se ratificou aquilo que já fora exigido no passado, que 'ninguém deve realizar trabalho agrícola, ou se envolver em qualquer trabalho mecânico no dia do Senhor ou nos outros dias santos, a menos que se trate de uma obra necessária ou de caridade, a qual o ministro da paróquia deve julgar de antemão'."[71] Os líderes da igreja e do reino da Inglaterra foram diligentes no estabelecimento da santidade desse dia. Contudo, os estatutos a seguir mostram que eles não tinham conhecimento de nenhuma autoridade bíblica que promovesse sua observância: 1358 d.C. "Istippe, arcebispo de Canterbury, com grande preocupação e zelo, assim se expressou: 'Temos o relato, proveniente de várias pessoas dignas da maior credibilidade, de que, em diversos lugares de nossa província, um costume muito perverso, ou melhor, abominável, tem prevalecido, a saber, o de realizar feiras e mercados no dia do Senhor. [...] Por isso, em virtude da obediência canônica, ordenamos estritamente a toda a irmandade que, se encontrarem pessoas culpadas no que diz respeito ao assunto em questão, advirtam-nas imediatamente a não frequentar mercados nem feiras no dia do Senhor. [...] Quanto àqueles que forem obstinados e falarem ou agirem contra vocês nessa questão, vocês devem procurar detê-los por meio de censuras eclesiásticas e lançar mão de todos os meios lícitos para dar fim a essas extravagâncias.'" "O poder civil também não ficou em silêncio, pois, mais ou menos na mesma época, o rei Edward fez um decreto de que a lã não deveria ser exibida em mercados aos domingos nem nas outras festas solenes do ano. Durante o reinado de Henrique VI, quando o Dr. Stafford era arcebispo de Canterbury, 1444 d.C., foi decretado que feiras e mercados não podiam mais ser realizados nas igrejas e nos pátios das igrejas no dia do Senhor, nem em outras festas, com exceção do período da colheita."[72] Note que as feiras e os mercados eram realizados aos domingos dentro das igrejas, na Inglaterra, até o ano 1444! E, mesmo depois disso, tais feiras continuaram a ser permitidas na época da colheita. Na parte continental da Europa, a santidade do domingo era promovida com insistência. O concílio de Bourges insistiu em sua observância da seguinte forma: 1532 d.C. "O dia do Senhor, bem como outras festas, foram instituídos para este propósito: de que os cristãos fiéis se abstenham de qualquer trabalho externo e, com maior liberdade e piedade, possam se dedicar à adoração a Deus."[73] Todavia, eles não pareciam se dar conta do fato de que, quando o temor do Senhor é ensinado por meio de preceitos humanos, tal adoração é vã. (Isaías 29:13; Mateus 15:9) O concílio de Rheims, realizado no ano seguinte, fez este decreto: 1533 d.C. "Que o povo se reúna, nas paróquias, no dia do Senhor e em outros dias santos. Que estejam presentes na missa, nos sermões e nas orações vespertinas. Nesses dias, que ninguém se entregue a brincadeiras ou danças, especialmente durante o culto." E o historiador acrescenta: "No mesmo ano, outro sínodo em Tours ordenou que o dia do Senhor e outras festas fossem observados com reverência, sob pena de excomunhão."[74] Um concílio que se reuniu no ano seguinte confessou, com toda franqueza, a origem divina do sábado e a origem humana da festa que o suplantou: 1534 d.C. "Que todos os cristãos se lembrem de que o sétimo dia foi consagrado por Deus, e tem sido aceito e observado não só pelos judeus, mas por todos os outros que professam adorar ao Senhor, embora nós, cristãos, tenhamos mudado o sábado deles para o dia do Senhor. Logo, é um dia a ser guardado pela abstenção de todos os negó- cios mundanos, processos judiciais, contratos, transporte de mercadorias, etc.; e pela santificação do descanso da mente e do corpo, na contemplação de Deus e das coisas divinas. Nada devemos fazer além de obras de caridade, orações e cântico de salmos."[75] Assim descrevemos a observância do domingo na Igreja Católica até um período posterior à Reforma. Esse último concílio que mencionamos confessa distintamente que o domingo é uma ordenança humana que usurpou o lugar do sábado bíblico. No entanto, eles tentam reparar a viola- ção do sábado ao dedicar o domingo à caridade, à oração e ao cântico de salmos, caminho adotado com muita frequência no presente para desculpar a violação do quarto mandamento. Quem é capaz de ler essa longa lista apresentada de leis dominicais, que não vieram Daquele "que pode salvar e fazer perecer", mas sim de papas, imperadores e concílios, sem adotar a convicção de Neander de que "a festa do domingo, assim como todas as outras, sempre foi uma mera ordenança de homens"? Notas: 1. Shimeall, Bible Chronology, parte 2, cap. 9, seção 5, p. 175-176; Croly on the Apocalypse, p. 167-173. 2. Hist. Sab., parte 2, cap. 4, seção 1. 3. Learned Treatise of the Sabbath, p. 73, ed. 1631. 4. Hist. Sab., parte 2, cap. 2, seção 12. 5. Treatise of the Sabbath Day, p. 202. 6. Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 13. 7. Idem, parte 2, cap. 5, seção 6. 8. Treatise of the Sabbath Day, p. 217-218. 9. Dialogues on the Lord's Day, p. 263-264. 10. The Lord's Day, p. 58. 11. Dictionary of Chronology, p. 813, verbete "Sunday". 12. Dialogues on the Lord's Day, p. 265. 13. Idem, p. 265-266; Hist. Sab., parte 2, cap. 4, seção 7. 14. Dialogues on the Lord's Day, p. 68. 15. Historical and Practical Discourse on the Lord's Day, p. 174. 16. Dialogues on the Lord's Day, p. 282. 17. Fleury, Hist. Eccl., tomo 8, livro 36, seção 22; Heylyn, Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 1. O Dr. Twisse, porém, afirma que o papa se refere a dois grupos. Ele cita as palavras de Gregório da seguinte forma: "Foi-me relatado que alguns homens de espírito perverso têm semeado entre vocês algumas doutrinas corruptas, contrárias a nossa santa fé, como proibir a realização de qualquer trabalho no dia de sábado. Podemos com propriedade chamar tais indivíduos de pregadores do anticristo. [...] Outro relato me foi trazido. E qual seria? Que alguns perversos pregam entre vocês que nada deve ser lavado no dia do Senhor. Essa sem dúvida é outra questão defendida por outras pessoas, diferentes das primeiras" (Morality of the Fourth Commandment, p. 19-20). Se o Dr. Twisse estiver correto, não se pode imputar aos guardadores do sábado em Roma, por volta do ano 660, a observância ao domingo citada acima. 18. A ideia é sugerida pelas palavras usadas por um escritor anônimo do século 17, defensor do primeiro dia, cujo pseudônimo era Irenaeus Philalethes, em uma obra chamada Sabbato-Dominica, pref. p. 11, Londres, 1643. 19. Dialogues on the Lord's Day, p. 267. 20. Idem, p. 283. 21. Dialogues etc., p. 268. 22. Idem, p. 283-284. 23. Idem, p. 268. 24. Idem, p. 284. 25. Dialogues etc., p. 270. 26. Idem, p. 270. 27. Idem, p. 271. 28. Dialogue etc., p. 271; Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 7. 29. Dialogues etc., p. 272. 30. Dialogue, etc., p. 261. 31. Êxodo 20.8-11; Deuteronômio 33.2. 32. Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 7; Morer, p. 272. 33. Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 7; Morer, p. 272. 34. Dialogues, etc., p. 261-262. 35. Idem, p. 284-285. 36. Dialogues etc., p. 274. 37. Idem, p. 285. 38. Idem, p. 286. 39. Ibid. 40. Idem, p. 286-287. 41. Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 2. 42. Dialogues, etc., p. 274. 43. Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 2. 44. Dialogues etc., p. 68. 45. Binius, vol. 3, p. 1285, ed. 1606. 46. Hist. Sab., parte 2, cap. 5, seção 13. 47. Morer, p. 288; Heylyn, parte 2, cap. 7, seção 6. 48. Roger de Hoveden, Annals, ed. Bohn, vol. 2, p. 487. 49. Ibid. 50. Hoveden, vol. 2, p. 526-528. 51. Ver Matthew Paris, Historia Major, p. 200-201, ed. 1640; Binius, Councils, ad ann. 1201, vol. 3, p. 1448-1449; Wilkins, Concilia Magnae Britaniae, et Hibernae, vol. 1, p. 510-511, Londres, 1737; Sir David Dalrymple, Historical Memorials, p. 7-8; ed. 1769; Heylyn,History of the Sabbath, parte 2, cap. 7, seção 5; Morer,Lord's Day, p. 288-290; Hessey,Sunday, p. 90, 231; Gilfillan,Sabbath, p. 399. 52. Maclaine's Mosheim, séc. 13, parte 2, cap. 1, seção 5. 53. Murdock's Mosheim, séc. 13, parte 2, cap. 1, seção 5, nota 19. 54. Matthew Paris, Historia Major, p. 201. Suas palavras são: "Cum autem l'atriarcha et clerus omnis Terræ sanctæ, hunc epistolæ tenorem diligenter examinassent; communi omnium deliberatione dectretum est, ut epistola ad judicium Romani Pontificis transmitteretur; quatenus, quicquid ipse agendum dectrevit, placaet universis. Cumque tandem epistola ad domini Papæ notitiam pervenisset, continuo praedicatotres ordinavit; qui per diversas mundi partes profecti, praedicaverun ubuque epistolaftenerem; Domino cooperante et sermonem eorum confirmante, sequentibus signis. Inter quos Abbos de Flai nomine Eustachius, vir religiosus et literali scientia eruditis, regnum Angliæ agrressus: multis ibidem miraculis corruscavit" -- Biblioteca de Harvard. 55. History of the Popes, vol. 2, p. 535. 56. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 4, p. 590. 57. Idem, vol. 4, p. 592. 58. Ver p. 274 desta obra. 59. Hoveden, vol. 2, p. 528. 60. Ibid. 61. Idem, p. 529. 62. Hoveden, vol. 2, p. 529-530. 63. Ibid. 64. Dialogues, etc., p. 290. 65. Gilfillan, Sabbath, p. 399. 66. Binius, Councils, vol. 3, p. 1448-1449; Heylyn, parte 2, cap. 7, seção 7. 67. Heylyn, parte 2, cap. 7, seção 7. 68. Dialogues, etc., p. 290-291. 69. Idem, p. 291. 70. Idem, p. 275. 71. Ibid. 72. Idem, p. 293, 294. 73. Idem, p. 279. 74. Morer, p. 280. 75. Idem, p. 281-282. Capítulo 21 Vestígios do Sábado durante a Idade das Trevas Com a ascensão do bispo romano à supremacia, a Idade das Trevas teve início;1 e, à medida que sua força aumentou, as sombras da escuridão tomaram conta do mundo com intensidade cada vez maior. O auge do poder papal marca o último momento da Idade das Trevas, antes do surgimento do primeiro raio tênue de sol.2 Esse poder foi providencialmente enfraquecido em preparação para a reforma do século 16, quando a luz do dia começou a dissipar fortemente as densas trevas que cobriam a Terra. A dificuldade de acompanhar o curso do verdadeiro povo de Deus durante esse período é bem expressa nas seguintes palavras de Benedict: "Como não temos quase nenhum fragmento de sua história, tudo que sabemos a seu respeito vem dos relatos de seus inimigos, relatos que eram sempre proferidos em tom de censura e reclamação, e sem os quais jamais teríamos conhecimento da existência de milhões deles. Roma tinha a política estabelecida de obliterar todo vestígio de oposição a suas doutrinas e seus decretos -- tudo que fosse herético, quer pessoas quer escritos, e que pudesse contaminar e desviar os fiéis. Em conformidade com essa firme determinação, todos os livros e registros de seus opositores eram caçados e lançados às chamas. Antes da descoberta da arte da imprensa no século 15, todos os livros eram feitos pela pena. Os exemplares, é claro, eram tão raros que escondê-los era bem mais difícil do que seria agora. E se uns poucos escapassem da vigilância dos inquisidores, logo ficariam gastos e se acabariam. Nenhuma dessas obras podia ser admitida e preservada nas bibliotecas públicas dos católicos -- o único lugar em que teriam sido guardadas da destruição do tempo e das mãos dos bárbaros que assolaram todas as partes da Europa em diferentes períodos."[3] Os cinco primeiros séculos da era cristã conseguiram suprimir o sábado nas igrejas que se encontravam sob controle especial do pontífice romano. Daí em diante, precisamos procurar guardadores do sábado fora da comunhão da igreja de Roma. Foi predito que o poder romano deitaria por terra a verdade. (Daniel 8:12) As Escrituras definem que a lei de Deus é a verdade divina. (Salmos 119:142,151) A Idade das Trevas foi o resultado da obra da grande apostasia. A escuridão foi tão densa e abrangente que a pura verdade divina ficou relativamente obscurecida até mesmo entre o verdadeiro povo do Senhor, em seus lugares de retiro. Conforme vimos, por volta do ano 600 havia um grupo de cristãos guardadores do sábado dentro da própria cidade de Roma, muito zeloso na observância do quarto mandamento. Afirma- -se que, a isso, eles aliaram a estrita abstenção do trabalho aos domingos. Mas o Dr. Twisse, culto escritor favorável ao primeiro dia, que examinou em detalhes os registros a respeito deles, afirma que a guarda do domingo se refere a "outras pessoas, diferentes das primeiras".[4] Esses guardadores do sábado não eram católicos romanos, e o papa os censurou com fortes palavras. Os cristãos da Grã-Bretanha, antes da missão de Agostinho [de Canterbury] a essa região, em 596 d.C., não eram submissos ao bispo de Roma. Eram, em grande medida, cristãos bíblicos. Eles são descritos da seguinte maneira: "Quando se depararam pela primeira vez com os olhos da civilização, a igreja escocesa não era romana, nem mesmo seguia a hierarquia dos prelados. Quando o monge Agostinho, com seus quarenta missionários, na época da Heptarquia Saxã, chegou à Bretanha sob os auspícios de Gregório, bispo de Roma, a fim de converter os saxões bárbaros, encontrou a parte norte da ilha já bem repleta de cristãos e instituições cristãs. Tais cristãos eram os culdianos, cuja sede ficava na pequena ilha de Hi ou Iona, na costa oeste da Escócia. Columba, presbítero irlandês, sentindo-se inflamado por zelo missionário e, sem dúvida, ciente da condição miserável dos escoceses e pictos selvagens, levou consigo mais doze missionários, no ano de 565, para a Escócia. Eles estabeleceram sua missão na pequena ilha mencionada acima, e, a partir de então, tornaram-se missionários de toda a Escócia, penetrando até mesmo na Inglaterra."[5] "O povo do sul da Inglaterra, convertido por Agostinho e seus auxiliares, e aqueles do norte, que haviam sido ganhos pelo esforço culdiano, logo se encontraram, à medida que a conquista cristã avançava de ambos os lados. Quando se juntaram, logo ficou claro que o cristianismo romano e o culdiano eram decididamente distintos em muitos aspectos." "Os culdianos, em sua maioria, nutriam uma forma simples e primitiva de cristianismo, ao passo que Roma apresentava um vasto acúmulo de superstições e se mostrava revestida de sua conhecida pompa."[6] "Os culdianos iam para Iona a fim de que, em meio à tranquilidade, com meditação, estudo e oração, pudessem se preparar para sair ao mundo como missionários. Com efeito, Iona era um grande instituto missionário, onde pregadores foram capacitados para evangelizar as rudes tribos da Escócia em apenas pouco tempo. O fato de terem realizado uma obra como essa em menos de meio século denota atuação apostólica, pureza e sucesso."[7] "Após o sucesso de Agostinho e de seus monges na Inglaterra, os culdianos se fecharam dentro dos limites da Escócia e resistiram por séculos a todos os esforços de Roma para ganhá-los. Por fim, porém, foram sujeitados por seus próprios dirigentes."[8] Há fortes evidências de que Columba, em sua época o principal ministro entre os culdianos, era guardador do antigo sábado bíblico. A esse respeito, cito dois autores de referência dos católicos romanos. Sem dúvida, eles não têm nenhum motivo para colocar, de maneira fraudulenta, as palavras que citarei na boca de Columba, pois consideram-no um santo, além de não serem, de modo nenhum, defensores do sábado bíblico. Tampouco conseguiríamos entender como Columba teria dito essas palavras, com a satisfação evidente que demonstrou em seu leito de morte, caso tivesse transgredido, ao longo de toda a vida, o antigo dia de descanso do Senhor. Estas são as palavras do Dr. Alvan Butler: "Tendo continuado seus esforços na Escócia por 34 anos, ele predisse sua morte clara e abertamente. No sábado [o sétimo dia da semana], dia 9 de junho, falou a seu discí- pulo Diermit: 'Este dia se chama o sábado [o Shabbat], isto é, o dia de descanso, e é isso que ele verdadeiramente será para mim, pois dará fim a todos os meus labores'."[9] Outro distinto autor católico cita da seguinte forma suas últimas palavras: "Hoje é o sétimo dia [da semana], que as Sagradas Escrituras chamam de sábado [o Shabbat], ou descanso. E verdadeiramente será meu dia de descanso, pois será o último de minha laboriosa vida."[10] Estas palavras revelam que: (1) Columba acreditava que o sétimo dia da semana era o verdadeiro sábado bíblico; (2) ele não cria que o sábado havia sido mudado para o domingo; (3) sua confissão de fé acerca do sábado bíblico foi feita com satisfação evidente, mesmo diante da morte iminente. Será que algum defensor do primeiro dia afirmaria com prazer, no leito de morte, que o sétimo dia é o sábado bíblico? Mas Gilfillan cita essas palavras de Columba como se tivessem sido proferidas a favor do domingo! Ao mencionar uma lista de homens proeminentes que declararam que o sábado havia sido mudado para o domingo, ou que chamaram o domingo de sábado, ensinando que ele deveria ser observado como dia de descanso sagrado, ele menciona Columba da seguinte forma: "O testemunho de Columba é especialmente interessante, uma vez que exprime os sentimentos do coração em um momento que testa a sinceridade da fé e o valor de um credo: 'Este dia' -- disse ele a seu servo -- 'no volume sagrado é chamado de sábado, isto é, descanso; e ele de fato será um sábado para mim, pois é meu último dia nesta penosa vida, o dia no qual vou descansar (sabatizar), depois de todas as minhas labutas e aflições, pois nesta santa noite vindoura do Senhor (Dominica nocte), à meia-noite, irei, como dizem as Escrituras, para o caminho de meus pais'."[11] Mas o dia que Columba afirmou que "de fato será um sábado para mim" não era o domingo, mas, sim, o sábado, o sétimo dia da semana. Dentre os grupos que discordavam da igreja romana no período da Idade das Trevas, é possível que o primeiro lugar seja devido aos valdenses, tanto por sua antiga origem quanto pela vasta extensão de sua influência e doutrina. Benedict comenta o seguinte a respeito da origem antiga dos valdenses, citando as palavras dos inimigos deles: "Já observamos, com base em Claudius Seyssel, o arcebispo papal, que certo Leo foi acusado de introduzir a heresia valdense nos vales, na época de Constantino, o Grande. Quando emanaram as severas medidas do imperador Honório contra os rebatizadores, os batistas deixaram a região de opulência e poder e buscaram refúgio no campo e nos vales de Piemonte; e foi este último lugar que especialmente se tornou para eles um refúgio da opressão imperial."[12] Dean Waddington cita estas palavras de Rainer Saccho, escritor papal que tinha as melhores fontes de informação a respeito dos Valdenses: "Não existe outra seita mais perigosa que a dos leonistas por três motivos. Primeiro: é a mais antiga, datando, dizem alguns, da época de Silvestre [papa dos dias de Constantino]; outros afirmam que remonta ao tempo dos próprios apóstolos. Segundo: está disseminada por toda parte. Não há país onde ela não tenha ganhado algum espaço. Terceiro: enquanto outras seitas são profanas e blasfemas, esta conserva grande aparência de piedade. Eles vivem de forma justa perante os homens e não creem em nada que não seja bom a respeito de Deus."[13] O Sr. Jones apresenta a opinião de Saccho da seguinte forma: "Seus inimigos confirmam que o grupo é antigo. Reinerius Saccho, inquisidor, e um de seus perseguidores mais cruéis, que viveu apenas oitenta anos depois de Valdo [1160 d.C.], admite que os valdenses floresceram quinhentos anos antes desse pregador. Gretser, o jesuíta, que também escreveu sobre os valdenses e pesquisou de forma completa a questão, não apenas admite que eram muito antigos, como também declara sua firme crença de que os toulousianos e albigenses condenados nos anos 1177 e 1178 não eram ninguém senão os valdenses."[14] Jortin data a retirada deles para a região despovoada dos Alpes da seguinte maneira: "Ano de 601 d.C. No sétimo século, o cristianismo foi propagado na China pelos nestorianos. Supõe-se que os valdenses, que abominavam as usurpações papais, estabeleceram-se nos vales de Piemonte. O monasticismo floresceu prodigiosamente, e os monges e papas estavam ligados pela mais firme união."[15] O presidente Edwards afirmou: "Alguns escritores papais admitem que esse povo nunca se submeteu à igreja de Roma. Um deles, ao falar acerca dos valdenses, diz: 'A heresia dos valdenses é a mais antiga do mundo'. Supõe-se que eles foram os primeiros a encontrar um lugar entre as montanhas, a fim de se esconder da severidade das perseguições pagãs que existiam antes de Constantino, o Grande. E assim a mulher fugiu da face da serpente para o deserto (Apocalipse 12:6,14). 'E foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar, aí onde é sustentada durante um tempo, tempos e metade de um tempo, fora da vista da serpente'. Depois que o povo se estabeleceu ali, sua posteridade continuou [ali] de geração em geração. E como estavam, por assim dizer, separados do restante do mundo por paredes naturais, bem como pela graça de Deus, nunca participaram da corrupção transbordante."[16] Benedict faz outras citações acerca da origem dos valdenses: "Theodore Belvedre, monge papista, diz que a heresia sempre estivera presente nos vales. No prefácio à Bíblia francesa, os tradutores dizem que eles [os valdenses] sempre desfrutaram plenamente da verdade celeste contida nas Sagradas Escrituras, desde que foram enriquecidos com as mesmas pelos apóstolos, tendo preservado, de geração em geração, a Bíblia inteira em sua língua materna em nítidos manuscritos."[17] Acerca de sua vasta influência pelos países da Europa, Benedict diz: "No século 13, com base nos relatos de historiadores católicos, todos eles falando sobre os valdenses em tom de queixa e reprimenda, descobrimos que os mesmos haviam fundado igrejas individuais ou estavam dispersos em colônias na Itália, Espanha, Alemanha, Holanda, Boêmia, Polônia, Lituânia, Albânia, Lombardia, em Milão, Romanha, Vicenza, Florença, Veleponetine, Constantinopla, Filadélfia, Esclavônia, Bulgária, Diognitia, Livônia, Sarmácia, Croácia, Dalmácia, Bretanha e Piemonte."[18] O Dr. Edgar apresenta as palavras de um antigo historiador da seguinte forma: "Os valdenses, afirma Popliner, se espalharam não só pela França, mas também por quase toda a costa europeia, aparecendo na Gália, Espanha, Inglaterra, Escócia, Itália, Alemanha, Boêmia, Saxônia, Polônia e Lituânia."[19] De acordo com o testemunho de seus inimigos, eles eram, até certo ponto, divididos entre si. O Dr. Allix cita um antigo escritor católico romano que comenta sobre a parte do grupo que era chamada de albigense: "Eles também eram divididos entre si; por isso, o que alguns deles dizem é negado por outros."[20] E Crosby faz uma declaração semelhante: "Havia várias seitas de valdenses ou albigenses, assim como os dissidentes da Inglaterra. Alguns negavam todas as formas de batismo, ao passo que outros negavam somente o batismo de bebês. O fato de que muitos deles defendiam a segunda opinião pode ser comprovado em várias histórias desse povo, tanto antigas quanto modernas."[21] Alguns de seus inimigos afirmam que eles rejeitavam o Antigo Testamento. Outros, porém, bem mais verdadeiros, deram um testemunho muito diferente.[22] Um inquisidor romano, conforme citado por Allix, fez o seguinte relato acerca dos valdenses da Boêmia: "Eles sabem dizer de cor grande parte do Antigo e do Novo Testamento. Desprezam as decretais, as palavras e as exposições de homens santos, apegando-se somente ao texto das Escrituras. [...] [Eles dizem] que a doutrina de Cristo e dos apóstolos é suficiente para a salvação, sem a necessidade de qualquer estatuto ou ordenança eclesiástica. Afirmam que as tradições da igreja não são em nada melhores do que as tradições dos fariseus, e que se coloca mais ênfase sobre a observação de tradições humanas do que sobre a guarda da lei de Deus. Por que vocês violam a lei de Deus com suas tradições? [...] Eles desdenham de todos os costumes eclesiásticos aprovados que não encontram no evangelho, como a observância da Candelária [festa da Purificação da Virgem Maria], o Domingo de Ramos, a reconciliação dos penitentes e a adoração da cruz na Sexta-Feira da Paixão. Desprezam a festa da Páscoa e todas as outras festas de Cristo e dos santos, por terem se multiplicado em tão grande número, dizendo que um dia é tão bom quanto o outro. Eles trabalham nos dias santos onde podem fazê-lo sem que sejam notados."[23] O Dr. Allix cita um documento valdense de 1100 d.C., denominado "Nobre Lição", e comenta: "O autor, supondo que o mundo se aproximava do fim, exorta seus irmãos a orar, vigiar e a renunciar a todos os bens mundanos." "Ele afirma que todos os juízos divinos no Antigo Testamento foram retribuições de um Deus justo e bom; especialmente o decálogo, como uma lei dada pelo Senhor do mundo inteiro. Ele repete os diversos artigos da lei, sem se esquecer daquele que menciona os ídolos."[24] Allix explica um pouco mais sobre seus pontos de vista religiosos: "Eles se declaram sucessores dos apóstolos, com autoridade apostólica e as chaves para ligar e desligar. Afirmam que a igreja de Roma é a prostituta de Babilônia, e que todos aqueles que lhe obedecem estão condenados, especialmente o clero que se sujeita a ela desde os tempos do papa Silvestre. [...] Defendem que nenhuma das ordenanças da igreja introduzidas após a ascensão de Cristo devem ser observadas, pois não têm valor algum. Rejeitam terminantemente as festas, os jejuns, as ordens, as bênçãos, os ofícios da igreja e coisas semelhantes."[25] Parte considerável do povo chamado valdenses recebia a designação significativa de Sabbati, ou Sabbatati ou Insabbatati. Jones alude a esse fato com as seguintes palavras: "Como eles não guardavam os dias dos santos, supunha-se falsamente que também negligenciassem o sábado, sendo chamados de Insabbatati ou Insabbatistas."[26] Benedict faz esta declaração: "Descobrimos que os valdenses às vezes eram chamados de Insabbatos, isto é, sem consideração pelos sábados. Milner supõe que esse nome lhes foi dado porque não guardavam as festas católicas e só descansavam de suas ocupações comuns aos domingos. Um guardador do sábado suporia que a razão era por que eles se reuniam para adorar no sétimo dia, e não respeitavam o descanso sabático do primeiro dia."[27] Robinson apresenta as declarações de três escritores acerca do significado desses nomes atribuídos aos valdenses. Ele, porém, rejeita todas elas, alegando que tais pessoas foram induzidas às conclusões pelo significado aparente das palavras, não pelos fatos. Eis o que ele diz: "Alguns desses cristãos eram chamados de Sabbati, Sabbatati, Insabbatati ou, com mais frequência, de Inzabbatati. Enganado pelo som, mas sem atentar para os fatos, um afirma que receberam esse nome por causa da palavra hebraica para sábado, por guardarem o sétimo dia como dia do Senhor. Outro afirma que assim foram denominados por rejeitarem todas as festas ou sábados, no sentido da palavra em baixo latim, que eram religiosamente observados pela igreja católica. Um terceiro diz, assim como muitos outros depois dele, com várias alterações e diversos acréscimos, que o nome deriva de sabot ou zabot, um tipo de sapato, pois se diferenciavam das outras pessoas usando sapatos marcados na parte superior com determinada peculiaridade. Será que seria provável que pessoas que não podiam descer das montanhas sem arriscar a vida por causa do zelo enfurecido dos inquisidores se exporiam a um risco maior colocando uma marca visível em seus sapatos? Além disso, os sapatos dos camponeses são famosos nesse país; eles têm um modelo diferente e são chamados de abarca."[28] Robinson rejeita as três declarações e então apresenta seu ponto de vista, afirmando que eles eram assim chamados porque viviam nas montanhas. Essas quatro opiniões abrangem tudo o que já foi dito a respeito do significado desses nomes. Mas a própria explicação de Robinson não passa de imaginação e não parece ter sido adotada por nenhum outro escritor. Ele oferece, porém, razões conclusivas para rejeitar a declaração de que o nome era derivado do modelo de sapato. Resta, portanto, somente a primeira e a segunda dessas quatro afirmações, a saber, que eles receberam o nome porque guardavam o sétimo dia como o dia do Senhor ou porque não guardavam os sábados do papado. Essas duas declarações não entram em conflito uma com a outra. Aliás, se uma delas for verdadeira, é quase certo que a outra também será. Nesses fatos haveria algo digno o suficiente de modo a criar um nome distintivo, que identificaria o verdadeiro povo de Deus, cercado por tão grande apostasia. E a interpretação óbvia e natural dos nomes revelaria a característica mais marcante do povo que recebia esses rótulos. Jones e Benedict concordam com Robinson, rejeitando a ideia de que os valdenses receberam esses nomes por causa dos sapatos que usavam. Jones afirmou, por sua vez, que foram assim denominados por não guardarem as festas católicas.[29] Já Benedict favorece o ponto de vista de que o nome era devido ao fato de guardarem o sétimo dia.[30] Mas vejamos agora quem são as pessoas, mencionadas por Robinson, que fazem essas declarações relacionadas à observância do sábado pelos valdenses. Robinson, com base em Gretser, cita as seguintes palavras do historiador Goldastus: "[Eram chamados de] Insabbatati não por serem circuncidados, mas, sim, por guardarem o sábado judaico.[31] Goldastus foi "um culto historiador e jurista, nascido perto de Bischofszell na Suíça, em 1576". Ele morreu em 1635.[32] Foi um notório escritor calvinista.[33] Não há dúvida de que ele não tinha nenhum motivo para favorecer a causa do sétimo dia. Gretser se opõe a essa declaração, dizendo que os valdenses aboliram todas as festas; mas isso seria a coisa mais natural do mundo para pessoas que tinham sob sua custódia o próprio dia de descanso de Deus. Gretser alega ainda que os valdenses negavam todo o Antigo Testamento, mas tal acusação é fruto de uma completa distorção dos fatos, conforme já demonstramos neste capítulo. Robinson também cita, a esse respeito, o testemunho do arcebispo Usher. Embora esse prelado defendesse que esses nomes dados aos valdenses derivavam de seu tipo de sapato, ele reconhece claramente que muitos entendiam que eles eram assim denominados por adorarem no sábado judaico. Tal testemunho é valioso, pois revela que muitos escritores antigos reconheceram a observância do "[sábado do] sétimo dia como o dia do Senhor" por parte de pessoas chamadas de Sabbatati.[34] Em consequência das perseguições que sofreram, e também por seu zelo missionário, as pessoas chamadas de valdenses se espalharam amplamente por toda a Europa. Entretanto, eles adotaram vários nomes em diferentes épocas e países. Temos o testemunho indiscutível de que alguns desses grupos guardavam o sétimo dia. Outros observavam o domingo. Eneas Sylvius conta que os valdenses da Boêmia defendiam que "não [deveriam] deixar de trabalhar em nenhum outro dia, a não ser no dia do Senhor".[35] É importante observar que tal declaração se refere apenas à Boêmia. Mas já se afirmou que os valdenses eram tão distintos da igreja de Roma que não poderiam ter recebido dela o domingo como dia do Senhor. Por isso, só poderiam tê-lo recebido dos apóstolos! Mas algumas poucas palavras de D'Aubigné são suficientes para mostrar que tal declaração se encontra fundamentada em erro. Ele relata uma conversa entre Oecolampadius e dois pastores valdenses que haviam sido enviados por seus irmãos, desde as fronteiras da França e Piemonte, a fim de iniciar um diálogo com os reformadores. Isso aconteceu na Basileia, no ano de 1530. Muitas coisas que eles disseram agradaram a Oecolampadius, mas ele desaprovou algumas outras. D'Aubigné disse o seguinte: "Os barbes [pastores valdenses] ficaram, a princípio, um pouco confusos ao perceberem que os mais velhos precisavam aprender com os mais jovens. Todavia, eram homens humildes e sinceros. Quando o doutor de Basileia lhes perguntou sobre os sacramentos, eles confessaram que, por fraqueza e temor, seus filhos eram batizados por sacerdotes católicos romanos, e que eles até se comunicavam com eles e, às vezes, iam à missa. Essa confissão inesperada chocou o manso Oecolampadius."[36] Quando a delegação informou aos valdenses que os reformadores requeriam deles "uma reforma mais estrita", D'Aubigné diz que "alguns apoiaram e outros rejeitaram" a ideia. Ele também nos informa que a exigência de que os valdenses "se separassem completamente de Roma [...] causou divisões entre eles".[37] Essa é uma declaração muito reveladora. A luz de muitas dessas antigas testemunhas estava prestes a se extinguir em meio às trevas, quando Deus levantou os reformadores. Eles haviam permitido que a mulher Jezabel ensinasse em seu meio e seduzisse os servos de Deus. Haviam até chegado ao ponto de praticar o batismo de bebês, e sacerdotes católicos ministravam o rito! Além de tudo isso, às vezes participavam com eles da missa! Se, na época da Reforma, parte dos valdenses no sul da Europa havia trocado o batismo dos que creem pelo batismo de crianças, realizado por sacerdotes católicos, não é difícil acreditar que eles também poderiam aceitar o domingo como dia do Senhor, vindo da mesma fonte, em lugar do santificado dia de descanso de Deus. Nem todos haviam feito isso, mas alguns certamente o fizeram. D'Aubigné fez uma declaração muito interessante acerca dos valdenses franceses do século 15. Suas palavras indicam que eles tinham um sábado diferente do guardado pelos católicos. Ele nos conta algumas das histórias que os padres faziam circular sobre os valdenses, ridicularizando-os: "A Picardia, no norte, e Delfinado, no sul, eram as duas províncias da França melhor preparadas [no início da Reforma protestante] para aceitar o evangelho. Durante o século 15, muitos habitantes da Picardia, segundo se conta, iam a Vaudery. Sentados ao redor de uma fogueira durante as longas noites, católicos simplórios costumavam contar uns aos outros como os vaudois (valdenses) se reuniam em terríveis assembleias, em locais solitários, onde encontravam mesas postas com inúmeras iguarias e carnes. De fato, esses pobres cristãos, oriundos de regiões frequentemente muito remotas, amavam se reunir. Eles viajavam à noite até o lugar de encontro por meio de estradas secundárias. Os mais instruídos citavam alguma passagem das Escrituras e, depois disso, eles conversavam juntos e oravam. Mas tais humildes reuniões leigas eram ridiculamente caricaturadas. 'Vocês sabem o que eles fazem para ir até lá' -- dizia o povo -- 'sem que sejam detidos pelos oficiais? O diabo lhes deu um tipo de bálsamo, e quando eles vão a Vaudery, eles untam um pequeno graveto com ele. Eles então montam nesse pedaço de pau, como se fosse um cavalo, e logo em seguida são carregados no ar e chegam ao sábado deles, e ninguém os encontra. No meio deles, assenta-se um bode com rabo de macaco: é Satanás, que recebe sua adoração'. [...] Essas histórias estúpidas não se restringiam às pessoas comuns: os monges, em especial, as divulgavam. Foi nesse tom que o inquisidor Jean de Broussart falou, em 1460, em um púlpito colocado na grande praça de Arras. Uma multidão imensa o cercava. Um cadafalso foi erguido em frente ao púlpito. Vários homens e mulheres, ajoelhados e usando capuzes pintados com a imagem do diabo, aguardavam sua punição. Talvez a fé daquelas pobres pessoas estivesse misturada com o erro. Seja como for, porém, todos foram queimados vivos após o sermão."[38] Parece que esses valdenses tinham um sábado que lhes era peculiar. E o próprio D'Aubigné alude a algo específico da fé deles que ele não podia confessar como verdade, mas escolhe não denunciar como erro. Ele diz: "Talvez a fé daquelas pobres pessoas estivesse misturada como o erro". Esse meticuloso historiador, guardador do primeiro dia da semana, depara-se com um dilema ao falar sobre a observância, por cristãos do Novo Testamento, do sétimo dia como o sábado do Senhor. Temos mais um relato dos valdenses na França, pouco antes do início da Reforma do século 16: "Luís 12, rei da França, após ser informado pelos inimigos dos valdenses que habitavam em uma parte da província de Provença, de que estes eram culpados de vários crimes hediondos, mandou um juiz de alto escalão e certo doutor de Sorbonne, confidente de sua majestade, a fim de investigarem a questão. Ao voltarem, relataram que haviam visitado todas as paróquias nas quais eles moravam e inspecionado seus locais de adoração, mas não encontraram imagens, nem sinais de ornamentos pertencentes à missa, nem qualquer das cerimônias da igreja católica romana; nem haviam descoberto qualquer vestígio de crimes dos quais eles haviam sido acusados. Pelo contrário, eles guardavam o dia de sábado, observavam a ordenança do batismo de acordo com a igreja primitiva e instruíam seus filhos nas crenças da fé cristã e nos mandamentos de Deus. Ao ouvir o relatório de seus enviados, o rei disse, com um juramento, que aqueles homens eram melhores do que ele e seu povo."[39] Lemos ainda acerca dos vaudois, ou valdenses: "O respeitável historiador francês De Thou conta que os vaudois guardavam os mandamentos do decálogo e não permitiam nenhuma maldade entre eles, abominando perjúrios, imprecações, brigas, sedições, etc.[40] É apropriado acrescentar que, em 1686, todos os valdenses foram expulsos dos vales de Piemonte. Aqueles que voltaram e se estabeleceram nesses vales três anos depois, dos quais descende a raça atual dos valdenses, lutaram para voltar, com espada em mãos, seguindo, em todos os aspectos, um comportamento completamente diferente dos antigos valdenses.[41] Outra classe de testemunhas da verdade que viveu durante a Idade das Trevas recebeu o nome de cátaros [do grego katharos, "puro"], ou seja, puritanos, também conhecidos como albigenses. Jones fala a respeito deles: "Eram um tipo de cristãos simples, despretensioso, inofensivo e trabalhador, que carregavam com perseverança a cruz de Cristo e, tanto em suas doutrinas como em seus modos, condenavam todo o sistema de idolatria e superstição que imperava na igreja de Roma, afirmando que a verdadeira religião se encontrava na fé, esperança e obediência do evangelho. Eles tinham consideração suprema pela autoridade de Deus em Sua Palavra e regulavam seus sentimentos e suas práticas por esse padrão divino. Mesmo no século 12, grande era seu número nas redondezas de Cologne, em Flandres, no sul da França, em Savoy e Milão. 'Eles cresceram' -- conta Egbert -- 'até chegarem a grandes multidões por todos os países'."[42] Os cátaros, ou albigenses, mantiveram a guarda do antigo sábado, conforme atestam seus adversários católicos romanos. O Dr. Allix cita um escritor católico do século 12 falando sobre três classes de hereges: os cátaros, os passagini e os arnoldistas. Acerca desse autor católico, Allix afirma: "Ele também expressou que uma das opiniões deles era de que 'a lei de Moisés deve ser guardada segundo a letra, e a observância do sábado, da circuncisão e de outras ordenanças legais deve ocorrer. Também defendem que Cristo, o Filho de Deus, não é igual ao Pai, e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, essas três pessoas, não são um único Deus e uma única substância. Em acréscimo a esses erros, julgam e condenam todos os doutores da igreja e, de modo universal, toda a igreja romana. Então, como eles se esforçam para defender seus erros usando testemunhos extraídos do Novo Testamento e dos profetas, com a ajuda da graça de Deus, eu lhes calarei a boca, assim como Davi fez Golias emudecer, usando a própria espada deles.'"[43] O Dr. Allix cita outro autor católico a esse mesmo respeito: "Alanus atribui aos albigenses quase que as mesmas opiniões [como as que já enumeramos], em seu primeiro livro contra os hereges, escrito por volta do ano 1192."[44] Elliott menciona um episódio acerca dos albigenses que harmoniza com o que esses historiadores contam sobre sua observância do sétimo dia: "Nesse ano [1163 d.C.], certos hereges da seita dos cátaros [albigenses], vindos de partes de Flandres para Cologne, começaram a habitar secretamente em um celeiro perto da cidade. Mas, como no dia do Senhor eles não iam à igreja, foram pegos por seus vizinhos e denunciados. Ao serem levados diante da igreja católica, depois de uma longa investigação acerca de sua seita, eles não se convenceram por nenhuma evidência, por mais persuasiva que fosse. Em vez disso, persistiram da maneira mais pertinaz em sua doutrina e resolução, sendo expulsos da igreja e entregues nas mãos dos leigos. Estes, levando-os para fora da cidade, entregaram-nos às chamas, sendo quatro homens e uma garotinha."[45] Essas declarações dizem respeito a três grupos de cristãos que viveram durante a Idade das Trevas: os cátaros (puritanos ou albigenses), os arnoldistas e os passagínios. Seus pontos de vista são apresentados na linguagem preconceituosa e tendenciosa de seus inimigos. Mas o testemunho de antigos historiadores católicos é claro ao afirmar que eles eram guardadores do sétimo dia. A acusação de que também praticavam a circuncisão será analisada em seguida. Robinson entende que os passagínios eram um grupo de valdenses que vivia nas passagens das montanhas. Ele afirma: "É bem possível acreditar que eles receberam o nome de passageros ou passagini [...] por viverem nas passagens das montanhas, subsistindo em parte por guiar viajantes ou viajar, eles próprios, comercializando mercadorias."[46] Elliott diz acerca do nome Passagini: "A explicação do termo como significando 'peregrinos', tanto em seu sentido espiritual quanto missionário, representa nada mais do que a tradução do nome grego com que eles eram designados, sendo um título tanto distintivo quanto belo."[47] Mosheim faz este relato a respeito deles: "Na Lombardia, a principal residência dos hereges na Itália, surgiu uma seita singular, conhecida, por um motivo que não sei explicar, pelo nome de passagínios e também de circuncisos. Assim como as outras seitas já mencionadas, eles tinham a mais completa aversão ao domínio e à disciplina da igreja de Roma. Ao mesmo tempo, porém, distinguiam-se por dois pilares religiosos peculiares a seu grupo. O primeiro era a noção de que os cristãos eram obrigados a observar a lei de Moisés em tudo, com exceção da oferta de sacrifícios. Por isso, circuncidavam seus seguidores, abstinham-se das carnes proibidas na jurisdição mosaica e celebravam o sábado dos judeus. O segundo pilar que distinguia essa seita era a oposição à doutrina das três pessoas na natureza divina."[48] Benedict diz o seguinte acerca deles: "Sem dúvida, o relato de que praticavam a circuncisão é uma história difamatória forjada por seus inimigos, e provavelmente surgiu da seguinte forma: como guardavam o sétimo dia, eram chamados de judeus em tom de zombaria, como os sabatistas com frequência são assim chamados em nossa época. E, se eram judeus, conclui-se que eles circuncidavam ou deveriam circuncidar seus seguidores. É bem provável que essa fosse a linha de raciocínio de seus inimigos. Mas é absolutamente improvável que praticassem de fato o sangrento rito."[49] Michael Geddes, proeminente historiador da igreja, dá o seguinte testemunho: "Esse [ato] de atribuir algo totalmente abominável a seus adversários tem sido prática constante da igreja de Roma."[50] O Dr. Allix apresenta o mesmo fato -- o qual devemos manter em mente sempre que lemos sobre o povo de Deus nos registros da Idade das Trevas: "Desejo que o leitor reflita que não é um pecado extraordinário, por parte da igreja de Roma, espalhar mentiras sobre os inimigos dessa fé.[51] "Não há nada mais comum entre os partidários do catolicismo do que lançar mão das mais horríveis calúnias para enegrecer e expor aqueles que renunciaram a sua comunhão."[52] Acerca da origem dos petrobrussianos temos também o relato a seguir, escrito pelo Sr. Jones: "Mas os cátaros, ou puritanos, não foram a única seita que surgiu no século 12 fazendo oposição à superstição da igreja de Roma. Por volta do ano 1110, no sul da França, nas províncias de Languedoc e Provença, Pedro de Bruys apareceu pregando o evangelho do reino do Céu, exercendo os esforços mais louváveis para reformar os abusos e remover as superstições que desfiguravam a bela simplicidade da adoração evangélica. Seus esforços foram coroados com abundante sucesso. Ele converteu grande número de discípulos à fé de Cristo; e, após um ministério infatigável que prosseguiu por vinte anos, foi queimado em St. Giles, cidade de Languedoc, na França, em 1130, por um populacho enraivecido, instigado pelo clero, os quais temeram que seu comércio corresse riscos por causa desse novo e intrépido reformador."[53] O Dr. Francis White, bispo de Ely, certifica expressamente que esse grupo de cristãos franceses, o qual, à meia-noite da Idade das Trevas, testemunhou em favor da verdade, observava o antigo sábado. Ele foi convocado, pelo rei da Inglaterra, a escrever contra o sábado em oposição a Brabourne, que havia apelado ao rei em favor desse dia. A fim de mostrar que a guarda do sábado era contrária à doutrina da igreja católica -- um argumento de peso para um membro da igreja anglicana -- ele cita várias classes de hereges condenados pela igreja católica por santificar o sétimo dia. Dentre eles, menciona os petrobrussianos: "Nos dias de São Bernardo, a prática foi condenada nos petrobrussianos."[54] Vimos que, de acordo com autores católicos, os cátaros (albigenses) defendiam a observância do sétimo dia. O Dr. Allix confirma a declaração do Dr. White de que os petrobrussianos guardavam o antigo sábado, dizendo que as doutrinas desses dois grupos se pareciam muito: "Petrus Cluniacensis levantou cinco objeções contra os petrobrussianos, que apresentam grande semelhança com a crença dos cátaros da Itália."[55] Os guardadores do sábado do século 11 tinham proeminência suficiente para chamarem sobre si a excomunhão do papa. O Dr. Heylyn declara: "Gregório, o sétimo a receber esse nome [por volta de 1074 d.C.], condenou aqueles que ensinavam que não era lícito trabalhar no dia de sábado."[56] Esse ato do papa corrobora os testemunhos que apresentamos como prova da existência de guardadores do sábado ao longo da Idade das Trevas. Gregório VII foi um dos maiores a ocupar a posição papal. Todos os grupos que ele excomungava tinham alguma importância, pois ele não perdia tempo com insignificâncias.[57] No século 11, havia guardadores do sábado também em Constantinopla e suas redondezas. O papa, em 1054 d.C., enviou três núncios apostólicos ao imperador do oriente e ao patriarca de Constantinopla, com o propósito de reunificar as igrejas grega e latina. O cardeal Humberto foi o chefe da delegação. Os mensageiros, ao chegarem ao destino, começaram a obra de refutar as doutrinas que distinguiam a igreja de Constantinopla da de Roma. Depois de abordarem as questões que separavam as duas igrejas, também acharam necessário discutir o tema do sábado. Isso porque um dos homens mais instruídos do oriente havia elaborado um tratado defendendo que os ministros tinham permissão para se casar, que o sábado deveria ser santificado e que o pão com fermento deveria ser usado na ceia -- questões estas consideradas heresias mortais para a igreja de Roma. Citamos uma declaração concisa de Bower sobre o tratamento que este escritor sabatista recebeu: "Humberto também refutou uma obra que havia sido publicada por um monge do monastério de Studium [próximo a Constantinopla], chamado Nicetas, considerado um dos homens mais cultos do oriente na época. Nessa obra, o monge se propôs a provar que somente o pão com fermento deveria ser usado na eucaristia, que o sábado deveria ser santificado e que os sacerdotes deveriam ter permissão para se casar. Mas o imperador, que desejava de todo modo conquistar o papa, pelos motivos acima mencionados, estava tão plenamente convencido, ou fingiu estar, dos argumentos do núncio, refutando os apresentados por Nicetas, que obrigou o monge a se retratar publicamente e excomungar todos aqueles que defendessem a opinião que ele tentara consolidar, com respeito ao pão sem fermento, ao sábado e ao casamento de padres." "Ao mesmo tempo, Nicetas, submetendo-se à ordem do imperador, condenou como anátemas todos que questionassem a primazia da igreja romana sobre todas as outras igrejas cristãs, ou que ousassem censurar sua indiscutível fé ortodoxa. Após o monge ter assim se retratado de tudo o que havia escrito contra a Santa Sé, seu livro foi queimado por ordem do imperador, e ele, absolvido pelos mensageiros das censuras que havia recebido."[58] Esse relato mostra que, nas densas trevas do século 11, "um dos homens mais cultos do oriente na época" escreveu um livro para provar que "o sábado deveria ser santificado" e para fazer oposição à doutrina papal do celibato do clero. Também revela como a igreja de Roma lança a verdade de Deus por terra usando a espada de imperadores e reis. Embora Nicetas tenha se retratado, com medo do imperador e do papa, parece que outros tinham a mesma opinião, pois ele foi "obrigado" a condenar como anátemas todas essas pessoas, e não há evidências de que alguma delas tenha se afastado da verdade por causa da queda de seu líder. Aliás, se não houvesse um grupo considerável de guardadores do sábado, o núncio papal não se teria dado ao trabalho de escrever uma resposta a Nicetas. Os anabatistas são citados com frequência nos registros da Idade das Trevas. O termo significa "rebatizadores" e lhes foi atribuído porque negavam a validade do batismo de bebês. Todavia, a designação não é precisa, pois esse grupo considerava que as pessoas batizadas por eles nunca haviam se batizado antes, embora tivessem sido aspergidas ou até mesmo imersas em água na infância. Essas pessoas têm sido alvo de opróbrio por causa da insurreição fanática a elas atribuída na época de Lutero. Acerca dos que se envolveram na insurreição, Buck diz: "Os primeiros insurgentes sofriam pesada opressão e pegaram em armas a fim de defender sua liberdade civil. E parece que os anabatistas se aproveitaram dessas comoções, em vez de terem sido os primeiros a levantá-las. É inquestionável que grande parte era anabatista. Ao mesmo tempo, a história revela que grande parte também era formada de católicos romanos, e que uma porção ainda maior praticamente não tinha nenhum princípio religioso."[59] Stebbing coloca a questão sob sua verdadeira luz: "A subversão da sociedade civil e os danos fatais à religião foram ameaçados por aqueles que se denominavam anabatistas. Mas grandes números pareciam discordar da validade do batismo infantil, os quais só se identificavam com eles nesse ponto, não tendo nada em comum em outros aspectos. Contudo, por causa dessa única circunstância, foram alvos de infâmia e receberam o castigo plenamente devido a um fanatismo igualmente fraudulento e devasso."[60] O antigo sábado foi conservado e observado por uma porção dos anabatistas, ou, para usar um termo mais apropriado, dos batistas. O Dr. Francis White dá este testemunho: "Aqueles que defendem que o sábado do sétimo dia está em vigor estão de acordo com alguns dos anabatistas."[61] O testemunho de um escritor francês do século 16 está em harmonia com essa declaração do Dr. White. Ele cita todos os grupos de pessoas que receberam o nome de anabatistas. Acerca de um desses grupos, ele escreveu: "Alguns enfrentaram grandes tormentas, pois não guardavam os domingos e dias de festa, a despeito do anticristo. Percebendo que eram dias designados pelo anticristo, não estavam dispostos a defender nada que fosse semelhante a ele. Outros observam esses dias, mas motivados por espírito de caridade."[62] Assim se vê que, dentro dos limites do antigo império romano e em meio aos países que se submeteram ao domínio do papa, Deus reservou para Si um povo que não dobrou os joelhos a Baal e, dentre esses, o sábado bíblico foi observado de geração em geração. Passaremos agora a procurar o sábado em meio àqueles países que nunca se sujeitaram ao pontífice romano. Na África central, desde a primeira parte da era cristã -- possivelmente desde a época da conversão de um oficial etíope de grande autoridade, (Atos 8:26-40) mas certamente a partir de 330 d.C.[63] -- existem as igrejas da Abissínia e Etiópia. Na época em que o bispo romano alcançou a supremacia, as nações da Europa perderam qualquer contato com tais igrejas. Gibbon afirma: "Cercados de todos os lados pelos inimigos de sua religião, os etíopes dormiram por quase mil anos, esquecidos do mundo que havia se esquecido deles".[64] Na última parte do século 15, eles voltaram a ser conhecidos pelo mundo com as descobertas dos navegadores portugueses. Sem dúvida, foram grandemente afetados pelas densas trevas dos erros pagãos e muçulmanos que os cercavam. Em muitos aspectos, eles perderam a religião pura e espiritual de nosso Redentor divino. Um viajante moderno disse acerca deles: "Eles possuem diversos erros e muitas verdades antigas".[65] Michael Geddes diz a seu respeito: "Os abissínios defendem que as Escrituras são a regra perfeita da fé cristã. Por isso, negam que um concílio geral tenha o poder de obrigar as pessoas a crer em qualquer coisa como artigo de fé sem uma expressa ordem bíblica."[66] Eles praticavam a circuncisão, mas não por dever religioso.[67] Geddes diz mais sobre seus pontos de vista: "Os abissínios abominam a transubstanciação e a adoração do pão consagrado no sacramento. [...] Eles negam o purgatório e nada sabem acerca da confirmação e da extrema unção. Condenam as imagens de escultura. Guardam tanto o sábado quanto o domingo."[68] A opinião deles sobre o sábado foi expressa nas seguintes palavras pelo embaixador do rei da Etiópia, na corte de Lisboa, ao este explicar porque se abstinham de trabalhar no sétimo dia: "Visto que Deus, após terminar a criação do mundo, nesse dia descansou, assim, sendo Sua vontade que o dia seja chamado de santo dos santos, não celebrá-lo com grande honra e devoção parece totalmente contrário à vontade e aos preceitos do Senhor, que permitiria que os céus e a terra passassem antes do que Sua palavra. Especialmente, também, porque Cristo não veio para destruir a lei, mas, sim, para cumpri-la. Portanto, não é por imitação aos judeus, mas, sim, por obediência a Cristo e a Seus santos apóstolos que observamos esse dia."[69] O embaixador explicou o motivo para eles guardarem o primeiro dia da seguinte maneira: "Observamos o dia do Senhor seguindo o costume de todos os outros cristãos, em memória da ressurreição de Cristo."[70] Ele não tinha nenhum texto bíblico para oferecer em apoio a essa festa e claramente justificou sua observância com base na tradição. Esse relato foi feito pelo embaixador em 1534. Na primeira parte do século seguinte, o imperador da Abissínia foi induzido a se submeter ao papa, declarando as seguintes palavras: "Eu confesso que o papa é o vicário de Cristo, o sucessor de São Pedro e o soberano do mundo. A ele juro obediência verdadeira e a seus pés deponho minha pessoa e meu reino".[71] Assim que o bispo romano conseguiu obter a sujeição do imperador, este foi compelido a ceder ao ódio papal pelo sábado por meio de um edito proibindo sua observância futura. Nas palavras de Geddes, ele "fez uma proclamação proibindo todos os súditos, sob severas penas, de continuar guardando o sábado".[72] Ou, conforme Gibbon exprime: "Os abissínios foram obrigados a trabalhar e se divertir no sábado". Mas a tirania do poder papal, após uma luta terrí- vel, fez com que o papado fosse derrubado e banido [da Abissínia] e a antiga fé fosse restaurada. As igrejas ecoaram um cântico de triunfo, dizendo que "as ovelhas da Etiópia estavam agora libertas das hienas do ocidente, e os portões desse reino solitário estavam para sempre fechados para as astúcias, a ciência e o fanatismo da Europa".[73] Provamos, em um capítulo anterior, que o sábado era amplamente observado até o meio do quinto século na chamada igreja católica, sobretudo na parte da igreja que estava mais intimamente ligada aos abissínios, e que, por diversos motivos, o domingo conquistou honras sabáticas; por isso, os dois dias foram chamados de irmãos. Também demonstramos, em outro capítulo, que a supressão efetiva do sábado na Europa se deveu, principalmente, à influência papal. Então, por mil anos, acompanhamos a história do sábado nos registros daqueles homens a quem a igreja de Roma tentou matar. Esses fatos são notoriamente comprovados pelo caso dos abissínios. Por causa de sua localiza- ção no interior da África, eles desapareceram do conhecimento do restante da cristandade por volta do quinto século. Nessa época, o sábado e o domingo dentro da igreja católica eram considerados irmãos. Mil anos mais tarde, essas igrejas africanas foram visitadas e, embora cercadas pelas densas trevas das superstições pagãs e islâmicas -- e consequentemente afetadas até certo ponto por elas --, foram encontradas, ao fim desse período, defendendo o sábado e o primeiro dia, assim como a igreja católica o fazia quando perdeu contato com as igrejas africanas. Em contrapartida, os católicos da Europa haviam, nesse meio tempo, pisoteado ao chão o antigo sábado. Por que vemos esse contraste tão grande? Simplesmente porque o papa dominava na Europa, ao passo que a África central, por mais que tenha sofrido outras influências, não foi amaldiçoada com a presença papal e sua influência. Mas assim que o papa ficou sabendo da existência das igrejas abissínias, tentou controlá-las e, quando conseguiu, um de seus primeiros atos foi suprimir o sábado! Por fim, os abissínios readquiram sua independência e, daí em diante, até o presente, têm se mantido fiéis ao sábado do Senhor. Os armênios das Índias Orientais são dignos de nossa atenção especial. J. W. Massie, membro da Academia Real Irlandesa, diz o seguinte a respeito dos cristãos dessa região: "Distantes dos grandes centros de comércio, ou dos populosos centros da indústria manufatureira, eles podem ser considerados os piemonteses orientais, os valdenses da Índia, as testemunhas profetizando em panos de saco ao longo dos séculos agitados, embora, na verdade, seus corpos estejam mortos nas ruas das cidades que um dia habitaram."[74] Geddes conta o seguinte sobre os de Malabar: "As três grandes doutrinas do papado -- a supremacia do papa, a transubstanciação e a adoração de imagens -- nunca foram aceitas ou praticadas, em momento algum, nesta antiga igreja apostólica. [...] Acredito que é possível arriscar dizer que, antes do período da Reforma [Protestante], não havia nenhuma igreja, até onde sabemos, nem mesmo a dos valdenses [...] com tão poucos erros doutrinários quanto a de Malabar." A respeito dessas igrejas que "sempre ficaram localizadas fora dos limites do império romano", ele diz: "É nessas igrejas que encontramos as menores quantias do fermento papal."[75] Massie traz mais informações sobre esses cristãos: "O credo que esses representantes de uma antiga linhagem de cristãos entesouravam não estava em conformidade com os decretos papais, e foi com dificuldade que veio a se ajustar aos 39 artigos do episcopado anglicano. Separados do mundo ocidental por mil anos, naturalmente ignoravam as muitas novidades introduzidas pelos concílios e decretos de Latrão; e sua conformidade com a fé e a prática das primeiras eras os deixou vulneráveis à culpa imperdoável de heresia e cisma, segundo a avaliação da igreja de Roma. 'Somos cristãos, não idólatras' -- era sua expressiva resposta quando lhes era ordenado que fizessem reverência à imagem da virgem Maria. [...] La Croze afirma que eles compunham 1.500 igrejas, e um mesmo número de cidades e vilas. Recusavam-se a reconhecer o papa e declaravam que nunca haviam ouvido falar dele. Defendiam a pureza e a verdade primitiva de sua fé pelo fato de terem vindo do lugar onde os seguidores de Jesus foram chamados de cristãos pela primeira vez, de onde também vinham os seus bispos por 1.300 anos."[76] Yeates alude ao caráter sabatista desses cristãos. Ele afirma que o sábado "entre eles é um dia de festa, em conformidade com a antiga prática da igreja".[77] "A antiga prática da igreja", conforme vimos, era a de santificar o sétimo dia em memória do descanso do Criador. Esse costume foi eliminado em todos os lugares em que a grande apostasia teve poder suficiente para fazê-lo. Mas os cristãos das Índias Orientais, assim como os da Abissínia, viveram a uma distância suficiente de Roma para se preservarem, até certo ponto, de sua influência destruidora. O mesmo escritor se refere indiretamente a esse fato usando as seguintes palavras: "A inquisição foi estabelecida em Goa, nas Índias, por obra de Francisco Xavier [famoso santo católico], que informou em carta ao papa João III, em 10 de novembro de 1545, 'que a impiedade judaica se disseminou cada vez mais nas partes das Índias Orientais sujeitas ao reino de Portugal'. Por isso ele suplicou fervorosamente ao dito rei que, a fim de curar tão grande mal, ele pudesse enviar o ofício da inquisição para aquelas terras."[78] Sem dúvida, a "impiedade judaica" se referia à observância do sábado como "dia de festa, em conformidade com a antiga prática da igreja", da qual esse autor acabou de falar. A história das eras passadas, conforme vimos, mostra o ódio da igreja papal em relação ao sábado. E o esforço dessa igreja para suprimir o sábado na Abissínia e sujeitar aquele povo ao papa, que, nessa época, estava apenas começando, mostra que os jesuítas não estariam dispostos a tolerar a observância sabática nas Índias Orientais, muito embora ela também estivesse unida à guarda do domingo. Tudo indica, portanto, que esse missionário jesuíta desejava que o papa e o rei de Portugal instituíssem a inquisição naquela região das Índias que estava sujeita a Portugal, a fim de extirpar a guarda do sábado nessas antigas igrejas. A inquisição foi estabelecida em resposta a essa súplica, e Xavier foi posteriormente canonizado, ou seja, considerado santo! Nada pode mostrar com mais clareza a malignidade do pontífice de Roma direcionada para o sábado do Senhor. E nada pode ilustrar melhor o tipo de homens que ele canoniza, transformando-os em santos. A partir da época de Xavier, as Índias Orientais caíram no domínio britânico. Um distinto clérigo da igreja anglicana visitou, anos depois, o império britânico na Índia, com o propósito de se familiarizar com as igrejas dali. Ele fez uma descrição extremamente interessante desses antigos cristãos e destacou, em especial, seu caráter sabatista: "A história da igreja armênia é muito interessante. De todos os cristãos na Ásia Central, foram eles os que mais se preservaram das corrupções muçulmanas e papais. O papa os atacou por um tempo com grande violência, mas isso surtiu pouco efeito. As igrejas da Armênia Inferior de fato consentiram com uma união, que não foi mantida por muito tempo. Mas as da Armênia Persa mantiveram sua independência e conservam as Escrituras, doutrinas e adoração antigas até hoje. 'É maravilhoso' -- disse um viajante inteligente que passou muito tempo entre eles -- 'como os cristãos armênios preservaram a fé, tanto contra a penosa opressão dos muçulmanos, seus soberanos, quanto contra a persuasão da igreja católica durante os mais de dois séculos em que tentou, por intermédio de seus missionários, sacerdotes e monges, ligá-los a sua comunhão. É impossível descrever os artifícios e sacrifícios da corte de Roma para alcançar esse objetivo, mas tudo foi em vão'." "A Bíblia foi traduzida para a língua armênia no quinto século, sob circunstâncias muito favoráveis, segundo a história que chegou até nós. Os mais competentes estudiosos do idioma admitem que foi uma tradução extremamente fiel. La Cruze a chama de 'Rainha das Versões'. Esta Bíblia sempre ficou em posse do povo armênio, e muitos exemplos ilustres de genuína e iluminada piedade ocorreram em sua história. [...] "Os armênios na Índia são nossos próprios súditos. Eles reconhecem nosso governo na Índia, assim como reconhecem o de Sophi na Pérsia, e merecem nossa consideração. Preservaram a Bíblia em sua pureza; e suas doutrinas, até onde o autor tem conhecimento, são as doutrinas da Bíblia. Além disso, eles mantêm a solene observância da adoração cristã em todo nosso império, no sétimo dia, e têm tantas torres de igreja apontando para o céu entre os hindus quanto nós. Será que esse povo não tem o direito de receber o reconhecimento de nossa parte, como irmãos em Cristo? Será que nós os classificaremos para sempre junto com os judeus, muçulmanos e hindus?"[79] Já se afirmou, porém, que Buchanan deveria estar se referindo ao domingo ao usar o termo "sétimo dia". Essa é uma interpretação muito injustificada de suas palavras. Os clérigos anglicanos não têm o costume de chamar o domingo de sétimo dia. Temos, porém, um testemunho que não pode ser honestamente desconsiderado. É o de Purchas, escrito no século 17. O autor fala sobre várias seitas do cristianismo oriental, "em existência desde os tempos antigos", como os sírios, jacobitas, nestorianos, maronitas e armênios. Acerca dos sírios, ou súrios, como ele em vários momentos os denomina, os quais, segundo o relato que ele faz, parecem ter características idênticas às dos armênios, o escritor declara: "Eles santificam o sábado [do sétimo dia] e não consideram lícito o jejum aos sábados, exceto na véspera da Páscoa. Têm cultos solenes aos sábados, comem carne e festejam ousadamente como os judeus."[80] Esse autor fala em tom desrespeitoso acerca desses cristãos, e usa as declarações preconceituosas de seus adversários, que, aliás, não são em nada piores do que as feitas em relação àqueles que santificam o sábado bíblico na atualidade. Esses fatos demonstram com clareza que o sábado continuou sendo observado durante todo o período da Idade das Trevas. A igreja de Roma conseguiu efetivamente exterminar o sábado de sua comunhão, mas ele foi conservado pelo verdadeiro povo de Deus, que se manteve providencialmente escondido do papado nas desabitadas regiões da Europa central. Ao mesmo tempo, aquelas igrejas na África e nas Índias Orientais que nunca se encontraram dentro dos limites do domínio do papa, perseveraram na guarda do sábado até o dia de hoje. Notas: 1. Croly diz: "Com o título de 'bispo universal', o poder do papado e a Idade das Trevas começaram juntos" (Croly on the Apocalypse, p. 173). 2. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 4, p. 591. 3. History of the Baptist Denomination, p. 50, ed. 1849. 4. Ver cap. 20 desta obra. 5. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 2, p. 600-601; D'Aubigné, History of the Reformation, livro 17. 6. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 2, p. 601. 7. Ibid. 8. Ibid. 9. Butler, Lives of the Fathers, Martyrs, and Principal Saints, verbete "St. Columba, 597 d.C." 10. The Monks of the West, vol. 2, p. 104. 11. Gilfillan, Sabbath, p. 389. 12. Idem, p. 32-33. 13. Waddington, History of the Church, parte 4, cap. 18. 14. Jones, History of the Church, vol. 2, cap. 5, seção 1. 15. Jortin, Eccl. Hist., vol. 2, seção 38. 16. Edward, Hist. of Redemption, período 3, parte 4, seção 2. 17. Hist. Bapt. Denom., p. 32-33. 18. Idem, p. 31. 19. Variations of Popery, p. 52. 20. Eccl. Hist. of the Ancient Churches of Piedmont, p. 167. 21. History of the English Baptists, vol. 1, pref. p. 35. 22. Jones, em Church History, vol. 1, cap. 3, em uma nota ao fim do capítulo, explica da seguinte forma essa acusação: "É fácil explicar tal calúnia. Os defensores do papado, a fim de justificar suas usurpações e inovações no reino de Cristo, se dirigiam ao Antigo Testamento em busca de autoridade, citando como exemplo o reinado de Davi. E quando seus adversários rebatiam o argumento, insistindo que o paralelo não fazia sentido, uma vez que o reino de Cristo não é deste mundo e tem uma ordem completamente distinta da encontrada no reinado de Davi, os oponentes os acusavam de abrir mão da autoridade divina do Antigo Testamento". 23. Eccl. Hist. of the Ancient Churches of Piedmont, p. 231, 236, 237. 24. Idem, p. 175-177. 25. Idem, p. 209. 26. Hist. Church, cap. 5, seção 1. 27. Gen. Hist. Bapt. Denom., vol. 2, p. 413, ed. 1813. 28. Ecclesiastical Researches, cap. 10, p. 303-304. 29. Jones, Hist. Church, vol. 2, cap. 5, seção 1. 30. General Hist. Bapt. Denom., vol. 2, p. 413. 31. Circumcisi forsan illi fuerint, qui aliis Insabbatati, non quod circumciderentur, inquit Calvinista [Goldastus] sed quod in Sabbato judaizarent (Eccl. Researches, cap. 10. p. 303). 32. Thomas, Dictionary of Biography and Mythology, verbete "Goldast". 33. D'Aubigné, Reformation in the time of Calvin, vol. 3, p. 456. 34. Nec quod in Sabbato colendo Judaizarent, ut multi putabant, sed a zapata (Eccl. Researches, cap. 10, p. 304; Usher, De Christianar. Eccl. Success et Stat., cap. 7). 35. Jones, Church History, vol. 2, cap. 5, seção 2. 36. Reformation in the Time of Calvin, vol. 3, p. 249. 37. Idem, p. 250, 251. 38. Reformation in the Time of Calvin, vol. 1, p. 349. D'Aubigné cita, como fonte, L. Rossier, Histoire des Protestants de Picardie, p. 2. 39. Jones, Church History, vol. 2, cap. 5, seção 4. 40. Bresse, History of the Vaudois, p. 126. 41. Benedict, Hist. Bapt., p. 41. 42. Hist. Church, cap. 4, seção 3. 43. Eccl. Hist. of the Ancient Churches of Piedmont, p. 168-169, Boston Pub. Lib. O autor, o reverendo Peter Alix, doutor em divindade, foi um protestante francês, nascido em 1641, e se distinguiu por sua piedade e erudição (Lemprier, Universal Biography). 44. Idem, p. 170. 45. Horae Apocalypticae, vol. 2, p. 291. 46. Eccl. Researches, cap. 10, p. 305-306. 47. Horae Apocalypticae, vol. 2, p. 342. 48. Eccl. Hist., séc. 12, parte 2, cap. 5, seção 14. 49. General Hist. Bapt. Denom., vol. 2, p. 414, ed. 1813. 50. Acts and Decrees of the Synod of Diamper, p. 158, Londres, 1694. 51. Eccl. Hist. of the Ancient Churches of Piedmont, p. 224. 52. Idem, p. 225. 53. Hist. of the Church, cap. 4, seção 3. 54. Treatise of the Sabbath Day, p. 8. 55. Eccl. Hist. of the Ancient Churches of Piedmont, p. 162. 56. History of the Sabbath, parte 2, cap. 5, seção 1. 57. Bower diz o seguinte sobre Gregório: "Era um homem de constituição extremamente notável, com ambição sem limites, temperamento orgulhoso e ditatorial, coragem e resolução incapazes de ceder diante das maiores dificuldades, perfeitamente familiarizado com a condição das igrejas do ocidente, bem como com os diferentes interesses dos governantes cristãos" (History of the Popes, vol. 2, p. 378). 58. History of the Popes, vol. 2, p. 358. 59. Theological Dict., verbete "Anabaptists". 60. Hist. Church, vol. 1, p. 183-184. 61. Treatise of the Sabbath Day, p. 132. Ele cita Hist. Anabapt., lib. 6, p. 153. 62. Guy de Brez, 1565 d.C., The Rise, Spring and Foundation of the Anabaptists or Rebaptized of our Times. 63. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 1, p. 40. 64. Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 47. 65. Maxson, Hist. Sab., p. 33, ed. 1844. 66. Church Hist. of Ethiopia, p. 31. 67. Idem, p. 96; Gibbon, cap. 15, nota 25; cap. 47, nota 160. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 1, p. 40. 68. Church Hist. of Ethiopia, p. 34-35; Purcha, Pilgrimage, livro 2, cap. 5. 69. Ch. Hist. Eth., p. 87-88. 70. Ibid. 71. Gibbon, cap. 47. 72. Ch. Hist. Eth., p. 311-312; Gobat, Abyssinia, p. 88, 93. 73. Gibbon, cap. 47. 74. Continental India, vol. 2, p. 120. 75. Acts and Decrees of the Synod of Diamper, prefácio. 76. Continental India, vol. 2, p. 116-117. 77. East Indies Church History, p. 133-134. 78. Idem, p. 139-140. 79. Buchanan, Christian Researches in Asia, p. 159-160. 80. Purchas, His Pilgrimes, parte 2, livro 8, cap. 6, seção 5, p. 1269, Londres, 1625. A Encyclopedia Britannica, vol. 8, p. 695, 8 ed., fala que Purchas foi "um inglês admiravelmente versado na língua, nas artes humanas e divinas, um grande filósofo, historiador e teólogo". Capítulo 22 Posição dos Reformadores acerca do Sábado e do Primeiro Dia Agrande reforma do século 16 surgiu de dentro do seio da própria igreja católica. O sábado já tinha sido extirpado dessa igreja havia muito tempo; e, em lugar da misericordiosa instituição ordenada pelo Legislador divino para o descanso e refrigério da humanidade, a fim de que o ser humano pudesse reconhecê-Lo como Criador, o papado havia ordenado inúmeras festas que, como um fardo terrível, oprimiam o povo até o pó da terra. O Dr. Heylyn enumera cada uma dessas festas: "Esses dias santos foram estabelecidos sobretudo na decretal do papa Gregório. Assim, uma lista completa de todos eles foi feita no sínodo de Lião, em 1244 d.C. Uma vez que um grande número de pessoas de todas as partes da cristandade participou desse sínodo, os cânones e decretos estabelecidos ali começaram rapidamente a ser aceitos de forma generalizada. Os dias santos reconhecidos ali foram: a festa do nascimento de Cristo, de Santo Estêvão, de São João evangelista, dos Inocentes, de São Silvestre, da circuncisão de nosso Senhor, a Epifania, a Páscoa, junto com a semana anterior e a semana seguinte, os três dias da semana da Ascensão, o dia da Ascensão de Cristo, o Pentecostes, com os dois dias seguintes, o dia de São João Batista, as festas de todos os doze apóstolos, todas as festividades de Nossa Senhora, São Lourenço, todos os dias do Senhor do ano, a festa do Arcanjo São Miguel, o dia de Todos os Santos, de São Martinho, as vigílias, ou dedicações de igrejas específicas, assim como as festas de santos locais que algum povo em particular achasse por bem honrar por meio de um dia escolhido por eles mesmos. Em cada um desses dias, as pessoas eram proibidas, conforme já dito antes, de realizar vários tipos de trabalho, sob pena de censura eclesiástica sobre quem transgredisse a ordem, a menos que fossem liberadas dessas restrições por causa de alguma necessidade inusitada ou para realizar alguma obra de caridade. [...] Peter de Aliaco, cardeal de Cambray, em um discurso feito ao concílio de Constança [1416 d.C.] fez uma solicitação pública aos padres ali reunidos de que, dali em diante, se pusesse um fim a isso; que, com exceção do domingo e das grandes festas, fosse lícito ao povo, após o culto divino, voltar ao trabalho, em especial os pobres, por não lhes restar tempo suficiente para ganhar seu sustento nos dias de trabalho. Mas essas foram apenas as expressões de homens bem-intencionados. Os papas tinham outra postura, e não só conservaram os dias santos que já haviam sido estabelecidos, como também acrescentavam regularmente outros dias, sempre que encontravam motivo para isso. [...] Assim permaneceram as coisas, como já disse antes, tanto em questão de doutrina quanto de prática, até que surgiram homens que começaram a olhar com mais seriedade para os erros e os abusos da igreja católica romana do que havia sido feito até então."[1] Essa era a situação quando os reformadores começaram seus labores. Dessa forma, seria demais esperar que homens educados no seio da igreja de Roma deixassem de lado essas festas e voltassem à observância do antigo sábado. De fato, embora esses homens tenham sido compelidos a golpear a obrigatoriedade religiosa dessas festas, não deveria nos surpreender, no entanto, o fato de eles terem mantido a observância da mais importante delas. Sobre essa questão, os reformadores disseram o seguinte: A Confissão das igrejas suíças declara: "A observância do dia do Senhor não se fundamenta em nenhum mandamento de Deus, mas, sim, na autoridade da igreja, e esta pode alterar o dia a seu bel-prazer."[2] Descobrimos ainda que: "Na Confissão de Augsburg, elaborada por Melâncton [e aprovada por Lutero], a resposta à pergunta 'O que devemos pensar sobre o dia do Senhor?' é que o dia do Senhor, a Páscoa, o Pentecostes e todos os outros dias santos semelhantes a esses deveriam ser guardados por terem sido estabelecidos pela igreja, a fim de que tudo seja feito com ordem. A observância desses dias, porém, não deve ser entendida como necessária para a salvação, nem a violação deles, se ocorrer sem ofensa aos outros, ser considerada pecado."[3] Zuínglio declarou "que é lícito no dia do Senhor, após o culto divino, que qualquer homem retome seus labores".[4] Beza ensinava que "não se exige dos cristãos que cessem o trabalho no dia do Senhor".[5] Bucer vai ainda mais longe, "chamando não só de superstição, mas também de apostasia de Cristo pensar que o trabalho no dia do Senhor, em si mesmo, seja algo pecaminoso".[6] E Cranmer, em seu catecismo publicado em 1548, disse: "Nós não mais guardamos o sábado no sétimo dia, como fazem os judeus, mas observamos o domingo e alguns outros dias considerados convenientes pelos magistrados, a quem, nessas coisas, devemos obedecer."[7] Tyndale disse: "Quanto ao sábado, nós somos senhores do sábado e podemos até mesmo alterá-lo para a segunda-feira ou para qualquer outro dia, conforme acharmos necessário, ou tornar santo cada décimo dia se encontrarmos razão para isso."[8] Fica claro que tanto Cranmer quanto Tyndale criam que o antigo sábado fora abolido e que o domingo não passava de uma ordenança humana, estabelecida sob o poder dos magistrados e da igreja, que poderiam licitamente mudá-lo sempre que entendessem que havia motivo para isso. O Dr. Hessey apresenta a opinião de Zuínglio a respeito do poder de cada igreja de transferir o suposto dia do Senhor para outro dia da semana, sempre que houvesse alguma grande necessidade, como, por exemplo, a época da colheita. Assim disse Zuínglio: "Se amarrássemos o dia do Senhor ao tempo, de tal maneira que se torne impiedade transferi-lo para outro momento em que pudéssemos descansar igualmente de nossos labores a fim de ouvir a palavra de Deus, caso a necessidade assim o exigisse, esse dia, tão cuidadosamente observado, se imporia sobre nós como cerimônia. Nós não somos de modo algum presos pelo tempo. Em vez disso, o tempo deve nos servir de tal modo que se torne lícito e permitido a cada igreja, quando a necessidade exigir (conforme costuma ser feito na época da colheita), transferir a solenidade e o descanso do dia do Senhor, ou descanso sabático, para algum outro dia."[9] Não é possível, portanto, que Zuínglio tenha considerado o domingo um memorial da ressurreição instituído por Deus, ou, de fato, qualquer outra coisa além de uma festa da igreja. João Calvino afirmou o seguinte acerca da origem da festa do domingo: "No entanto, os antigos não substituíram, sem razões suficientes, o sábado por aquilo que nós chamamos de dia do Senhor; pois, visto que a ressurreição do Senhor representou o fim e a consumação daquele descanso verdadeiro prefigurado pelo antigo sábado, este mesmo dia [o domingo], que colocou fim às sombras, admoesta os cristãos a não aderir a uma cerimônia que serviu de sombra. Não coloco, porém, tanta ênfase no número sete a ponto de obrigar a igreja a aderir invariavelmente a ele, nem condeno as igrejas que determinaram outros dias solenes para suas assembleias, contanto que guardem distância de qualquer superstição."[10] É digno de nota o fato de Calvino não atribuir a Cristo e a Seus discípulos a instituição do domingo em lugar do sábado. Ele diz que isso foi feito pelos "antigos",[11] ou conforme outra tradução, "os antigos pais". Ele também não diz "o dia que João chamou de o dia do Senhor", mas, sim, "o dia que nós chamamos de o dia do Senhor". Além disso, é digno de atenção especial o fato de ele não insistir que o dia reservado para adoração devesse ser um em cada sequência de sete, pois ele não dava ênfase ao "número sete". O dia poderia ocorrer a cada seis dias, ou de oito em oito. Essa é uma prova conclusiva de que ele não considerava o domingo uma instituição divina no sentido literal da palavra. Pois, caso considerasse, ele certamente teria demonstrado a convicção de que a festa deveria ser semanal e incentivaria as igrejas "a aderir invariavelmente [ao número sete]". Mas Calvino não abandona a questão nesse ponto. Ele condenou como "falsos profetas" os que tentam impor a festa do domingo usando o quarto mandamento, e que, para esse fim, afirmam que a parte cerimonial, que requer de forma específica a observância do sétimo dia, foi abolida, ao passo que a parte moral, que simplesmente ordena a guarda de um dia em sete, continua em vigor. Estas são suas palavras: "Assim desaparecem todos os sonhos dos falsos profetas, que, em eras passadas, contaminaram o povo com um conceito judaico, afirmando que foi abolida somente a parte cerimonial do mandamento, que, segundo eles, é a designação do sétimo dia, mas que a parte moral da observância de um dia em sete ainda permanece. Mas isso não passa de mudar o dia por desprezo aos judeus, ao passo que se mantém a mesma opinião sobre a santidade de um dia."[12] Todavia, são exatamente esses "sonhos dos falsos profetas", para usar as palavras de Calvino, que constituem a base da doutrina moderna da mudança do sábado. Pois, não importa o que seja dito acerca da santidade do primeiro dia no Novo Testamento, o quarto mandamento só pode ser usado para reconhecer esse dia por meio dessa doutrina de um em sete, que Calvino tão claramente denuncia. Passo agora para outro fato importante. Com exceção de Apocalipse, os comentários de Calvino sobre o Novo Testamento abrangem todos os livros dos quais se extraem citações para defender o domingo. No entanto, o que Calvino diz a respeito da mudança do sábado no relato da ressurreição de Cristo?[13] Nenhuma palavra. Ele nem sequer sugere qualquer santidade própria a esse dia, ou que o mesmo deva ser comemorado. Será que ele afirma que a reunião "após oito dias" caiu no domingo? Ele não cita em que dia foi.[14] O que ele fala sobre o domingo ao abordar o dia de Pentecostes?[15] Nada. Ele nem chega a afirmar que tal festa ocorreu no primeiro dia da semana. O que ele fala sobre o partir do pão em Trôade? Calvino acredita que ocorreu no antigo sábado! Ele diz: "Ou ele quis dizer o primeiro dia da semana, que vinha logo depois do sábado, ou então algum sábado. A última opção me parece mais provável nesse caso, pois esse dia era mais apropriado para uma reunião, segundo o costume."[16] Ele diz, porém, que essa passagem poderia "muito bem" ser traduzida por "o dia depois do sábado", mas prefere ficar fiel a sua própria tradução, "um dia dos sábados" e não "primeiro dia da semana". Calvino diz mais: "Por que motivo é ali mencionado o sábado, se não para ressaltar a oportunidade e a escolha do tempo? Além disso, é provável que Paulo tenha esperado pelo sábado, a fim de que, no dia anterior a sua partida, pudesse reunir com maior facilidade todos os discípulos em um mesmo lugar."[17] "Portanto, penso que designaram um dia solene, para celebrarem a santa ceia do Senhor entre eles, que fosse cômodo para todos."[18] Isso demonstra de maneira conclusiva que Calvino cria que o sábado, não o primeiro dia da semana, era o dia de reuniões na igreja apostólica. Mas o que ele diz acerca de colocar de parte em casa no primeiro dia da semana? Ele afirma que o preceito de Paulo não está relacionado ao primeiro dia da semana, mas, sim, ao sábado! E comenta que era no sábado que as santas reuniões eram realizadas, a comunhão celebrada, e afirma que, por causa dessas coisas, este era o dia mais conveniente para coletar as contribuições. Assim ele escreve: "Em um dos sábados. O objetivo é este: que as doações estejam prontas a tempo. Portanto, ele exorta às pessoas que não o esperassem chegar, uma vez que nada que é feito de repente, com pressa, é bom, mas que contribuíssem no sábado conforme parecesse bom e segundo a capacidade de cada um, isto é, no dia em que realizavam suas santas reuniões."[19] "Pois ele tinha em vista, antes de tudo, a conveniência, e também que a reunião, na qual a comunhão dos santos é celebrada, fosse um incentivo adicional para eles. Também não sinto a inclinação de admitir o ponto de vista de Crisóstomo de que o termo sábado é aqui empregado com o sentido de dia do Senhor (Apocalipse 1:10), pois o mais provável é que os apóstolos, no princípio, tenham conservado o dia já em uso, mas depois, compelidos pelas superstições dos judeus, eles deixaram de lado esse dia e o substituíram por outro. O dia do Senhor foi escolhido principalmente porque a ressurreição de Cristo colocou fim às sombras da lei. Por isso, o dia em si nos chama a atenção para nossa liberdade cristã."[20] Essas palavras são muito impressionantes. Elas revelam, em primeiro lugar, que, ao falar sobre o sábado, Calvino não está se referindo ao primeiro dia da semana, mas, sim, ao sétimo; em segundo lugar, que, em sua opinião, até a época dessa epístola e da reunião em Trôade [60 d.C.], o sábado era o dia em que ocorriam as reuniões solenes dos cristãos e da celebração da comunhão; em terceiro lugar, que "depois, compelidos pelas superstições dos judeus, eles deixaram de lado esse dia e o substituíram por outro". Calvino, portanto, não cria que Cristo havia mudado o sábado para o domingo a fim de celebrar Sua ressurreição, pois ele disse que a ressurreição aboliu o sábado.[21] Entretanto, ele cria que o sábado era o dia sagrado dos cristãos, excluindo completamente o domingo de sua observância, até pelo menos o ano 60 d.C. Tampouco poderia ele acreditar que os apóstolos separaram o domingo para comemorar a ressurreição de Cristo, pois, a seu ver, eles não haviam escolhido esse dia até o ano 60, e, quando o fizeram, foi meramente por se verem compelidos a fazê-lo devido à superstição dos judeus! O Dr. Hessey ilustra as ideias de Calvino sobre a guarda do domingo por meio do seguinte episódio: "Knox era amigo íntimo de Calvino, e conta-se que, certa vez, ao visitá-lo, o encontrou se recreando no domingo, jogando boliche."[22] Não há dúvida de que Calvino estava agindo em harmonia com suas ideias acerca da natureza da festa do domingo. Mas o célebre caso de Miguel Servet nos oferece uma ilustração ainda mais clara sobre seus pontos de vista acerca da santidade desse dia. Servet foi preso em Genebra por um pedido pessoal de João Calvino aos magistrados da cidade. Esse fato é relatado por Teodoro de Beza, amigo de Calvino ao longo de toda sua vida.[23] O tradutor de Beza acrescenta ao fato esta notável declaração: "A necessidade de agir rápido o induziu a fazer com que o líder da heresia fosse preso em um domingo."[24] Robinson também narra a prisão de Servet por pedido de Calvino: "Enquanto ele [Servet] esperava um barco para cruzar o lago a caminho de Zurique, de algum modo Calvino ficou sabendo de sua chegada; e, embora fosse domingo, persuadiu o procurador geral a capturá-lo e colocá-lo na prisão. Pelas leis de Genebra, nesse dia, ninguém poderia ser preso, salvo em caso de crime capital. Mas essa dificuldade foi facilmente removida, pois João Calvino fingiu que Servet era herege e que a heresia era um crime capital."[25] "O médico foi capturado e preso no domingo, 13 de agosto [de 1553 d.C.]. Nesse mesmo dia, foi julgado."[26] As palavras do próprio Calvino acerca da prisão de Servet foram: "Não nego que ele se tornou prisioneiro a meu pedido."[27] Os mais fervorosos defensores da santidade do primeiro dia não negariam que a parte menos pecaminosa desse ato foi ter ocorrido em um domingo. No entanto, o fato de Calvino ter provocado a prisão de Servet nesse dia mostra que ele não tinha nenhuma convicção de que o dia possuísse alguma santidade inerente. John Barclay,[28] homem culto de origem escocesa, católico romano moderado, que nasceu pouco tempo depois da morte de Calvino e cuja infância foi passada no leste da França, não muito longe de Genebra, publicou a declaração de que Calvino e seus amigos, em Genebra, "debatiam se os reformados, com o propósito de se separar de maneira mais completa da igreja romana, não deveriam adotar a quinta-feira como o sábado cristão." Outro motivo especificado por Calvino para essa proposta de mudança foi "que seria um exemplo apropriado de liberdade cristã."[29] Essa declaração tem recebido crédito por parte de vários protestantes eruditos,[30] muitos dos quais merecem ser reconhecidos como homens sinceros e de bom senso. Mas o Dr. Twisse[31] lança dúvida sobre a declaração de Barclay porque ele não cita os indivíduos que Calvino teria consultado, nem os apresenta como testemunhas; e porque, certa vez, o rei James I da Inglaterra suspeitou que Barclay o houvesse traído. Mas tal crime nunca foi provado, e nem parece que o soberano continuou a vê-lo dessa forma posteriormente.[32] A veracidade de Barclay nunca foi refutada. É possível que a declaração de Barclay seja incorreta, mas não é inconsistente com a doutrina de Calvino de que a igreja não se encontra presa a uma festa que deve ocorrer a cada sete dias -- um pensamento semelhante ao de Tyndale, ao dizer que se poderia mudar o sábado para a segunda-feira ou "tornar santo cada décimo dia se encontrarmos razão para isso"; ela também está em perfeita harmonia com o conceito de Calvino sobre a santidade do domingo, conforme demonstrado em seus atos já destacados. Assim como os outros reformadores, Calvino nem sempre é consistente consigo mesmo em suas afirmações. Todavia, temos sua opinião sobre os diversos textos usados para provar a mudança do sábado, bem como sobre a teoria de que o mandamento pode ser usado para colocar em vigor, não a guarda do sétimo dia, mas de um em sete; e a opinião de Calvino é fatal para a doutrina moderna da santidade do primeiro dia. John Knox, o grande reformador escocês, foi um amigo íntimo de Calvino, tendo morado com ele em Genebra durante parte de seu exílio da Escócia. Embora os fundamentos da igreja presbiteriana escocesa tenham sido lançados por Knox, ou melhor, por Calvino, pois Knox levou para lá o sistema calvinista, e, embora essa igreja seja hoje muito rigorosa na observância do domingo como o sábado cristão, o próprio Knox, todavia, partilhava da opinião de Calvino quanto à obrigatoriedade desse dia. A Confissão de Fé original dessa denominação foi elaborada por Knox em 1560 d.C.[33] Nesse documento, Knox fala da seguinte forma sobre os deveres encontrados na primeira tábua da lei: "Ter um só Deus, adorá-Lo e honrá-Lo; clamar a Ele em todas as nossas aflições; reverenciar Seu santo nome; ouvir Sua palavra; crer nela; participar de Seus santos sacramentos, tudo isso corresponde às obras da primeira tábua."[34] Fica claro que Knox cria que o mandamento do sábado fora eliminado da primeira tábua. O Dr. Hessey, após falar sobre algumas referências ao domingo encontradas em uma obra posterior de Knox, faz a seguinte declaração sobre a doutrina atual do dia de descanso na igreja presbiteriana: "Como um todo, qualquer que seja a linguagem usada na Escócia no presente, certamente ela não tem nenhum respaldo no grande homem a quem os escoceses consideram o apóstolo da Reforma em sua terra."[35] Essa igreja defende hoje que o domingo é o memorial da ressurreição de Cristo autorizado por Deus, e posto em vigor pela autoridade do quarto mandamento. Mas não era essa a opinião de Calvino e Knox. Um autor britânico escreveu o seguinte sobre a situação do domingo na Escócia, por volta do ano 1601: "No início do século 17, alfaiates, sapateiros e padeiros em Aberdeen estavam acostumados a trabalhar até às oito ou nove horas da manhã todos os domingos. Embora a violação da observância aos rituais prescritos fosse punida com multa, a consagração exclusiva do domingo, que passou a prevalecer futuramente, era desconhecida na época. Na verdade, havia 'domingos de jogos' regulares na Escócia até o fim do século 16."[36] Entretanto, após a morte de Knox, a igreja presbiteriana realizou uma mudança completa no que se refere à observância do domingo. O mesmo autor afirma: "O presbiteriano Kirk introduziu na Escócia a observância judaica do dia de descanso [domingo], mantendo com alguma inconsistência a festa dominical da igreja católica, ao mesmo tempo em que rejeitava todas as outras festas que a autoridade dela havia consagrado."[37] Dr. Hessey revela o método usado para fazer isso: "É claro que algumas dificuldades precisavam ser superadas. O sábado era o sétimo dia, e o domingo, o primeiro dia da semana. Mas a engenhosa teoria de que a essência do quarto mandamento era guardar um dia em sete logo harmonizou essa discrepância."[38] As circunstâncias da estruturação dessa nova doutrina, o nome de seu autor e a data de sua publicação serão mencionados no devido momento. O fato de a maioria dos reformadores ter deixado de reconhecer a autoridade do quarto mandamento e não ter conduzido as pessoas das festas católicas ao sábado do Senhor, é um motivo mais de lástima do que de surpresa. A inadequação de transformar os reformadores em padrão da verdade divina é expressa com toda clareza por meio das seguintes palavras: "Lutero e Calvino reformaram muitos abusos, sobretudo na disciplina da igreja, e também algumas corrupções doutrinárias grosseiras. Contudo, deixaram outras coisas de importância muito maior da maneira como estavam. [...] Deve-se reconhecer o grande mérito deles por terem chegado até onde chegaram; e o ônus da culpa deve recair sobe nós, e não sobre eles, se a autoridade deles nos induz a não ir além. Em vez disso, devemos imitá-los na ousadia e no espírito que os levaram a questionar e corrigir tantos erros por tanto tempo arraigados; e, munindo-nos de suas conquistas, fazer mais progresso do que eles foram capazes de empreender. Pouco motivo temos para reivindicar o nome, a autoridade e o exemplo desses homens, quando eles tanto fizeram e nós não fazemos absolutamente nada. Nisso não os imitamos, mas, sim, àqueles que se opuseram a eles e os atrapalharam, mostrando a disposição de manter as coisas como estavam."[39] Notas: 1. Hist. Sab., parte 2, cap. 6, seções 3, 5. 2. Cox, Sabbath Laws, etc., p. 287. 3. Ibid. 4. Cox, Sabbath Laws, etc., p. 287. 5. Idem, p. 286. 6. Ibid. 7. Idem, p. 289. 8. Tyndale, Answer to More, livro 1, cap. 25. 9. Hessey, p. 352. 10. Calvino, Institutes of the Christian Religion, livro 2, cap. 8, seção 34, traduzido por John Allen. 11. Quanquam non sine delectu Dominicum quem vocamus diem veteres in locum Sabbati subrogarunt. 12. Calvino, Institutes, livro 2, cap. 8, seção 34. 13. Calvino, Harmony of the Evangelists on Matthew 28; Mark 16; Luke 24. 14. Calvino, Commentary on John 20. 15. Calvino, Commentary on Acts 2:1. 16. Calvino, Commentary on Acts 20:7. 17. Ibid. 18. Calvino, Commentary on Acts 20:7. 19. Calvino, Commentary on 1 Corinthians 16:2. 20. Ibid. 21. Calvin, Institutes, livro 2, cap. 8, seção 34. 22. Hessey, Bampton Lectures on Sunday, p. 201, ed. 1866. Nas notas anexas, p. 366, ele afirma: "Em Genebra, existe a tradição de que, quando John Knox visitou Calvino em um domingo, encontrou seu austero coadjutor jogando boliche em um gramado". Sem dúvida, o Dr. Hessey dava crédito a essa tradição. 23. Beza, Life of Calvin, trad. Sibdon, p. 55, ed. 1836. 24. Idem, p. 115. 25. Eccl. Researches, cap. 10, p. 338. 26. Idem, p. 339. 27. Beza, Life of Calvin, p. 168. 28. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 1, p. 663. 29. Hessey, p. 341, dá uma pista quanto ao título da obra de Barclay. Era Paraenesis ad Sectarios hujus temporis, livro 1, cap. 13, p. 160, Roma, 1617. 30. Ver Heylyn, Hist. of the Sabbath, parte 2, cap. 6, seção 8; Morer, Lord's Day, p. 216-217, 228; An Inquiry into the Origin of Septenary Institutions, p. 55; Whitaler, Treacher e Arnot, The Modern Sabbath Examined, p. 26, Londres, 1832; Cox, Sabbath Literatura, vol. 1, p. 165-166; Hessey, p. 141-142, 198, 341 e os autores ali citados. 31. Morality of the Fourth Commandment, p. 32, 36, 39-40. 32. Na verdade, a história relatada por Twisse de que não se deve acreditar no que Barclay fala sobre Calvino pelo fato de Barclay ter sido traiçoeiro para com o rei James I, o qual, por esse motivo, não queria favorecê-lo em sua corte, parece ser completamente infundada. A Encyclopedia Britannica, vol. 4, p. 439, 8 ed., menciona um motivo bem diferente: "Naquela época, a concessão de pensão a um defensor escocês do papa teria se enquadrado entre os atos causadores de indignação nacional". Em outras palavras, a opinião pública não toleraria a concessão de favores a um católico romano. Mas o autor acredita que o rei beneficiava Barclay em segredo. Por isso, na página 440, ele acrescenta: "Embora não pareça que ele recebesse provisões regulares do rei, é possível supor que ganhasse no mínimo gratificações ocasionais". Esse escritor nada sabia sobre Barclay ter sido flagrado como espião dentro da corte do rei. A respeito de seu caráter, ele afirma na página 441: "Se tivesse havido qualquer mancha moral importante em Barclay, alguns de seus numerosos adversários logo a teriam apontado". McClintock e Strong, em Cyclopedia, vol. 1, p. 663, dizem que "sem dúvida, ele teria conquistado êxito na corte, caso não fosse católico romano". Confira também Knight, Cyclopedia of Biography, verbete "Barclay". 33. Cox, Sabbath Laws, etc., p. 123; McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 5, p. 137-140. 34. Citado por Hessey, Bampton Lectures, p. 200. 35. Idem, p. 201. 36. Westminster Review, julho de 1858, p. 37. 37. Ibid. 38. Hessey, p. 203. 39. Dr. Priestly, citado por Cox, Sabbath Laws, p. 260. Capítulo 23 Lutero e Carlstadt Ofato de pelo menos um dos reformadores de proeminência considerável -- Carlstadt -- ser guardador do sábado é digno de nota. É impossível ler os registros da Reforma sem sentir a convicção de que Carlstadt desejava uma obra de reforma mais completa do que Lutero. Embora Lutero estivesse disposto a tolerar alguns abusos para que a Reforma não corresse riscos, Carlstadt desejava, a todo custo, um retorno completo às sagradas Escrituras. Os princípios sabatistas de Carlstadt, sua íntima ligação com Lutero, sua proeminência na história do início da Reforma e a grande importância da decisão de Lutero em relação ao sábado sobre toda a história da igreja protestante, fazem com que Carlstadt mereça lugar de destaque na história do sábado. Apresentaremos os registros desse reformador por meio das palavras exatas dos melhores historiadores, nenhum deles simpatizante da observância do sétimo dia. O modo como eles retratam as falhas de Carlstadt revela que não tinham qualquer parcialidade em relação a ele. Pouco depois de Lutero começar a pregar contra o mérito das boas obras, seu profundo interesse na obra de livrar as pessoas da servidão papal o levou a negar a inspiração de algumas partes das Escrituras que eram citadas contra ele. O Dr. Sears apresenta a questão da seguinte forma: "Lutero era tão zeloso na defesa da doutrina da justificação pela fé que estava disposto até mesmo a questionar a autoridade de alguns trechos da Bíblia que não pareciam se harmonizar com essa ideia. Especialmente ao falar sobre a epístola de Tiago, suas expressões revelam a mais forte repugnância."[1] Antes de Lutero ficar preso no castelo de Wartburg, surgiu uma disputa entre ele e Carlstadt exatamente sobre esse assunto. Afirma-se, acerca de Carlstadt, que, no ano de 1520, "Ele publicou um tratado 'A Respeito do Cânon das Escrituras', que, embora depreciado por fortes ataques de Lutero, era uma obra de qualidade, que defendia o grande princípio do protestantismo, a saber, a autoridade primordial das Escrituras. Nessa ocasião, ele também defendeu a autoridade da epístola de São Tiago, contrariando Lutero. Ao ser publicada a bula de Leão X contra os reformadores, Carlstadt demonstrou coragem real e honesta ao se manter firme ao lado de Lutero. Sua obra Santidade Papal (1520) ataca, com base na Bíblia, a infalibilidade do papa."[2] Lutero, como se sabe muito bem, ao voltar da Dieta de Worms, foi capturado pelos agentes do Eleitor da Saxônia e escondido de seus inimigos no castelo de Wartburg. Nessa ocasião, lemos o seguinte acerca de Carlstadt: "Em 1521, durante o confinamento de Lutero em Wartburg, Carlstadt assumiu o controle quase que completo do movimento da Reforma em Wittemberg, e era supremo na universidade. Ele atacou a reclusão monástica e o celibato no tratado 'Do celibato, da reclusão monástica e da viuvez'. Seu ponto de ataque seguinte foi a celebração da eucaristia, e um levante de estudantes e jovens cidadãos contra a missa logo se seguiu. No Natal de 1521, ele deu o sacramento de ambos os tipos [pão e vinho] aos leigos, e na língua alemã. Em janeiro de 1522 ele se casou. Seu zelo impetuoso o levava a fazer qualquer coisa que julgasse correta, repentina e arbitrariamente. Mas logo foi além de Lutero, e um de seus maiores erros foi colocar o Antigo Testamento em pé de igualdade com o Novo. Em 24 de janeiro de 1522, Carlstadt conseguiu a adoção de uma nova constituição eclesiástica em Wittemberg, que só tem algum valor por ser a primeira organização protestante da Reforma."[3] Havia em Wittemberg, nessa época, alguns mestres fanáticos, que, por causa de sua cidade de origem, eram denominados "profetas de Zwickau". Por um período, eles conseguiram influenciar Carlstadt a tal ponto que este concluiu que os títulos acadêmicos eram pecaminosos, e que, uma vez que a inspiração do Espírito era suficiente, não havia necessidade de ensino humano. Por isso, ele aconselhou os alunos da universidade a voltar para casa.[4] A instituição corria risco de ter suas portas fechadas. Essas foram as ações de Carlstadt durante a ausência de Lutero. Com exceção dessa última ação, seus atos estavam corretos. A responsabilidade pelas mudanças realizadas em Wittemberg durante a ausência de Lutero, tenham elas sido efetuadas no momento apropriado ou não, costuma ser atribuída a Carlstadt, e afirma-se que ele as fez de maneira individual e fanática. Mas a situação foi bem diferente. O Dr. Maclaine faz a seguinte análise da situação: "Talvez o leitor imagine, pelo relato do Dr. Mosheim, que Carlstadt introduziu essas mudanças meramente com base em sua própria autoridade. Mas isso está longe de ser verdade. A supressão da missa privativa [isto é, não concedida aos leigos], a retirada de imagens da igreja e a abolição da lei que impunha o celibato ao clero, que são as mudanças citadas por nosso historiador como precipitadas e perigosas, foram efetuadas por Carlstadt juntamente com Bugenhagius, Melâncton, Jonas Amsdorf, dentre outros, e confirmadas pela autoridade do Eleitor da Saxônia. Por isso, há motivos para inferir que uma das principais causas do descontentamento de Lutero com as mudanças foi o fato de terem sido implementadas durante sua ausência, a menos que suponhamos que ele ainda não estivesse livre dos grilhões da superstição, a ponto de não se sensibilizar quanto ao absurdo e aos efeitos perniciosos do uso de imagens.[5] Carlstadt deu aos leigos o privilégio de participar do vinho, de que Roma por tanto tempo lhes privara, e abandonou a adoração ao pão consagrado. O Dr. Sears analisa a obra de Carlstadt e então nos conta o que Lutero fez ao retornar. Estas são suas palavras: "Ele [Carlstadt] havia restaurado o sacramento da ceia do Senhor a ponto de chegar a distribuir tanto o vinho quanto o pão aos leigos. Lutero, 'para não ofender as consciências fracas', insistiu na distribuição somente do pão, e prevaleceu. Ele [Carlstadt] rejeitou a prática de enaltecer e adorar a hóstia. Lutero a aceitou e a introduziu novamente.[6] A posição de Carlstadt nessa época se tornou muito delicada. Ele não tinha aceitado "muitas coisas ensinadas pelos novos mestres" de Zwickau, mas havia ensinado em público algumas das ideias fanáticas deles acerca da influência do Espírito de Deus superar a necessidade de estudo. No entanto, ao suprimir os cultos idólatras da Igreja Católica, ele estava absolutamente correto. Teve a tristeza de ver boa parte do que combatera voltar a ser realizado. Além disso, o Eleitor não lhe permitia pregar ou escrever sobre os pontos em que discordava de Lutero. D'Aubigné diz o seguinte sobre a atitude de Carlstadt: "Todavia, ele sacrificou seu amor próprio pela paz, refreou o desejo de defender sua doutrina, reconciliou-se, pelo menos em aparência, com o colega [Lutero], e retomou logo em seguida seus estudos na universidade.[7] Mas como Lutero ensinava algumas doutrinas que Carlstadt não podia aprovar, ele sentiu finalmente que precisava se posicionar. O Dr. Sears escreve: "Depois de Carlstadt ser forçado a se manter em silêncio, de 1522 a 1524, e a se sujeitar ao poder e à autoridade superior de Lutero, ele não conseguiu mais se conter. Partiu então de Wittemberg e estabeleceu um prelo em Jena, por meio do qual poderia, em uma série de publicações, dar vazão a suas convicções, reprimidas por tanto tempo.[8] Os princípios que embasavam suas ideias sobre a Reforma eram estes: Carlstadt insistia em rejeitar tudo aquilo que a igreja católica realizava que não fosse autorizado pela Bíblia; já Lutero estava determinado a manter tudo que não fosse expressamente proibido. O Dr. Sears exprime da seguinte forma suas diferenças fundamentais: "Carlstadt defendia: 'Nas coisas referentes a Deus, não devemos levar em conta o que diz ou pensa a multidão, mas olhar somente para a Palavra de Deus'. Ele acrescenta: 'Outros alegam que, por causa dos fracos, não deveríamos nos apressar na guarda das ordens de Deus, mas esperar até que esses se tornem sábios e fortes'. No que se refere às cerimônias introduzidas pela igreja, ele tinha a mesma opinião que os reformadores suíços, a de que todas as coisas destituídas de embasamento bíblico deveriam ser rejeitadas. 'Determinada prática é suficientemente contrária às Escrituras se você não puder encontrar justificativa na Bíblia para ela.'" "Lutero, em contrapartida, afirmava: 'Toda prática que não for contrária as Escrituras é favorável às Escrituras, e as Escrituras a ela. Embora Cristo não tenha ordenado a adoração à hóstia, também não a proibiu'. 'Pelo contrário' -- dizia Carlstadt --, 'somos comprometidos com a Bíblia, e ninguém pode decidir segundo as imaginações do próprio coração.'"[9] É interessante saber qual era o assunto que causava divergência entre eles, e a opinião de cada um sobre o mesmo. O Dr. Maclaine explica o motivo do conflito que surgiu: "A diferença de opinião entre Carlstadt e Lutero a respeito da eucaristia foi a verdadeira causa da ruptura violenta entre esses dois homens proeminentes, e contribuiu muito pouco para favorecer a Carlstadt. Pois, por mais que pareça forçada a explicação dada por Carlstadt acerca das palavras usadas na instituição da ceia do Senhor, seus pontos de vista sobre essa ordenança -- como sendo a comemoração da morte de Cristo e não como sendo a celebração de Sua presença corpórea, em consequência de uma consubstanciação com o pão e com o vinho -- são muito mais racionais do que a doutrina de Lutero, a qual se encontra carregada de alguns dos absurdos mais palpáveis da transubstanciação. Caso se suponha que Carlstadt forçou as regras de interpretação, ao alegar que Cristo pronunciou o pronome este (nas palavras 'Este é o meu corpo') apontando para o próprio corpo, e não para o pão, o que pensar da explicação de Lutero para a doutrina ilógica da consubstanciação, usando como exemplo um ferro quente, no qual dois elementos se unem, ilustrando, assim, a união do corpo de Cristo ao pão da eucaristia?"[10] O Dr. Sears também explica a ocasião desse conflito em 1524: "A diferença mais importante entre ele e Lutero, e a que mais provocou hostilidade da parte de Lutero contra Carlstadt, diz respeito à ceia do Senhor. Carlstadt não apenas se opôs à transubstanciação, mas à consubstanciação, à presença concreta [do corpo de Cristo], e a erguer e adorar a hóstia. Lutero rejeitou o primeiro ponto, defendeu o segundo e o terceiro, e permitiu os dois últimos. Acerca da presença real, Lutero afirmou: 'No sacramento, encontram-se o corpo real de Cristo e o sangue real de Cristo, de modo que até mesmo os indignos e profanos dele participam; e "participam dele corporalmente" também, e não apenas espiritualmente como alega Carlstadt.'"[11] Hoje, quase todos concordam que era Lutero quem estava equivocado nessa controvérsia. D'Aubigné não consegue deixar de censurá-lo: "Quando surgiu a questão da ceia, Lutero deixou de lado o elemento próprio da Reforma e assumiu uma posição para si próprio e para sua igreja na forma de um luteranismo exclusivo."[12] A divergência é caracterizada da seguinte forma pelo Dr. Sears: "Seguiu-se uma controvérsia furiosa. Ambas as partes excederam os limites do decoro e da moderação cristã. Carlstadt se encontrava agora na vizinhança dos tumultos dos anabatistas, incitados por Muntzer. Ele simpatizava com esse grupo em algumas coisas, mas desaprovava suas desordens. Lutero se aproveitou ao máximo disso."[13] Fica claro que, nessa disputa, Lutero não conseguiu nenhuma vantagem decisiva, nem mesmo na opinião de seus amigos. Mas o Eleitor da Saxônia interferiu e exilou Carlstadt! D'Aubigné conta como isso ocorreu: "Ele deu ordens para que Carlstadt fosse destituído de seus cargos, e o baniu não só de Orlamund, mas de todos os estados do eleitorado."[14] "Lutero nada teve que ver com essa severidade da parte do governante. Tal atitude era algo alheio a sua disposição; e isso ele provou posteriormente."[15] Carlstadt, por defender a doutrina hoje aceita por quase todos os protestantes acerca da ceia, e por negar a doutrina de Lutero de que Cristo Se encontrava pessoalmente presente no pão, foi transformado em um errante sem teto por anos. Seu banimento ocorreu em 1524. Os acontecimentos que se seguiram são assim descritos: "Desde essa data até 1534, ele vagou pela Alemanha, perseguido pelas opiniões intolerantes tanto de luteranos quanto de católicos, e, em certas ocasiões, foi submetido às grandes dificuldades da indigência e impopularidade. Muito embora ele sempre tenha encontrado simpatia e hospitalidade entre os anabatistas, não há dúvida de que não é culpado da acusação de cumplicidade com a rebelião de Muntzer. Contudo, foi proibido de escrever; às vezes corria risco de vida, e ele exibe o espetáculo de melancolia de um homem que, em muitos aspectos, era grande e estava correto, mas cuja precipitação, ambição e zelo insincero, junto com muitas opiniões fanáticas, colocaram-no sob a censura bem fundamentada, porém exagerada, tanto de amigos quanto de inimigos."[16] Os fatos não parecem justificar essa narrativa. Não houve justiça na perseguição de Carlstadt. Por um breve período, ele defendeu algumas ideias fanáticas, mas não persistiu nelas por muito tempo. O mesmo escritor continua com postura crítica semelhante: "Não se pode negar que, em muitos aspectos, ele certamente estava à frente de Lutero, mas seu erro se deve à pressa em subverter e abolir as formas e pompas externas antes que o coração das pessoas, e sem dúvida o dele também, tivesse sido preparado por uma mudança interna. Há numerosas biografias sobre ele, e a Reforma certamente lhe deve muitas coisas boas pelas quais ele não recebe o crédito, por serem obscurecidas pelos danos que ele causou.[17] Aqui são descritas verdades importantes sobre a contribuição de Carlstadt, mas elas estão entremeadas com sugestões de males para os quais não há provas suficientes. O Dr. Sears diz o seguinte sobre as palavras amargas que são usadas para se referir a Carlstadt: "Há três séculos, o caráter moral de Carlstadt tem sido tratado como teria sido o caráter de Lutero, caso ouvíssemos apenas o testemunho católico. A parte interessada cumpre o papel tanto de testemunha quanto de juiz. E se julgássemos o caráter cristão de Zuínglio pela descrição de Lutero? A verdade é que Carlstadt dificilmente demonstrou um espírito pior ou usou termos mais abusivos em relação a Lutero do que Lutero em relação a ele. Carlstadt sabia que, em muitas coisas, a verdade estava do lado dele. Porém, tanto nessas coisas quanto em outras, ele foi reprimido pelo poder civil, que se encontrava do lado de Lutero."[18] D'Aubigné diz o seguinte acerca da disputa entre esses dois homens: "Ambos se opõem ao erro que, na opinião deles, lhes parece mais nocivo; e, ao atacá-lo, possivelmente passem além da verdade. Contudo, tendo admitido isso, continua sendo verdade que ambos estão corretos na tendência predominante de suas ideias, e, embora se posicionem em diferentes grupos, esses dois grandes mestres se encontram sob a mesma bandeira, a saber, a de Jesus Cristo, o único que é a verdade no pleno sentido dessa palavra."[19] D'Aubigné diz o seguinte sobre os dois, após Carlstadt ser banido: "É impossível não sentir dor ao ver esses homens, amigos no passado, e ambos dignos de nossa estima, em oposição tão ferrenha."[20] Algum tempo depois de ser banido da Saxônia, Carlstadt visitou a Suíça. D'Aubigné relata os resultados de seu trabalho nesse país e o que Lutero fez com ele: "Suas instruções atraíram atenção praticamente igual à despertada pelas primeiras teses expostas por Lutero. A Suíça parecia quase conquistada por sua doutrina. Bucer e Capito aparentemente adotaram seus pontos de vista." "Foi então que a indignação de Lutero chegou ao auge; e ele elaborou um dos mais poderosos, porém mais ultrajantes de seus escritos controversos: seu livro Against the Celestial Prophets [Contra os Profetas Celestiais]."[21] O Dr. Sears também menciona o trabalho de Carlstadt e fala sobre o livro tendencioso de Lutero: "A obra que escreveu contra ele recebeu o título de livro Against the Celestial Prophets. O livro não foi imparcial, pois a controvérsia dizia respeito principalmente ao sacramento da ceia. No sul da Alemanha e na Suíça, Carlstadt conseguiu mais adeptos do que Lutero. Banido como anabatista, foi aceito como zuingliano.[22] O Dr. Maclaine conta algo que aconteceu em seguida, que é digno da nobre natureza desses dois homens ilustres: "Carlstadt, após ser banido da Saxônia, escreveu um tratado contra o entusiasmo em geral, e especialmente contra as extravagâncias e a conduta violenta dos anabatistas. Esse tratado foi até dedicado a Lutero, que se sentiu tão tocado por ele que, arrependendo-se do tratamento injusto que dispensara a Carlstadt, intercedeu por ele e conseguiu uma permissão do Eleitor para que Carlstadt voltasse à Saxônia."[23] "Após essa reconciliação com Lutero, ele escreveu um tratado sobre a eucaristia, que transpira o mais amistoso espírito de moderação e humildade. Tendo examinado os escritos de Zuínglio, onde encontrou seus próprios pontos de vista defendidos com inigualável destreza e com o peso das evidências, partiu, pela segunda vez, para Zurique, e dali para a Basileia, onde foi admitido nos ofícios de pastor e professor de divindade. Ali, depois de uma vida exemplar de prática constante de todas as virtudes cristãs, em meio às mais calorosas demonstrações de piedade e resignação, ele morreu, em 25 de dezembro de 1541."[24] Sobre a erudição e a meticulosidade de Carlstadt, D'Aubigné diz o seguinte: "O Dr. Scheur diz que 'ele era bem versado em latim, grego e hebraico'. Lutero reconhecia que Carlstadt era superior a ele em erudição. Agraciado com grande poder intelectual, sacrificou, por suas convicções, a fama, o status, o país e até mesmo o pão."[25] A natureza sabatista de Carlstadt é confirmada pelo Dr. White, bispo de Ely: "Essa prática [a observância do sétimo dia], sendo também reavivada nos tempos de Lutero por Carolastadius, Sternebergius e por alguns sectários dentre os anabatistas, foi, na época e desde então, censurada como judaica e herética."[26] O Dr. Sears alude ao fato de Carlstadt guardar o sétimo dia, mas, como é bastante comum por parte dos historiadores defensores do primeiro dia, ele o faz de tal forma que deixa o fato suficientemente obscuro, o que leva o leitor comum a passá-lo por alto, sem sequer notá-lo. Ele escreve: "Carlstadt diferia completamente de Lutero quanto ao uso do Antigo Testamento. Para ele, a lei de Moisés continuava em vigor. Lutero, em contrapartida, tinha forte aversão pelo que ele chama de religião legal e judaizante. Carlstadt se apegava à autoridade divina do sábado do Antigo Testamento. Já Lutero cria que os cristãos tinham a liberdade para guardar qualquer dia como um sábado, contanto que fossem uniformes nessa observância."[27] Temos, porém, a declaração do próprio Lutero acerca do ponto de vista de Carlstadt sobre o sábado. Em seu livro Against the Celestial Prophets, ele afirma: "De fato, se Carlstadt escrevesse mais sobre o sábado, o domingo precisaria ser deixado de lado e o sábado -- isto é, o sétimo dia -- deveria ser santificado. Ele verdadeiramente nos faria judeus em todas as coisas, e teríamos de ser circuncidados, pois uma coisa é verdade e não pode ser negada: quem julga necessário guardar uma lei de Moisés, e a observa como lei de Moisés, também deve considerar importantes todas as demais e deve guardá-las por completo."[28] Os diversos historiadores que falam sobre a divergência entre Lutero e Carlstadt comentam abertamente as motivações de cada um. Sobre tais questões, porém, é melhor falar pouco. O dia do juízo há de revelar o que se encontra no coração das pessoas, e devemos esperar até então. Todavia, podemos discorrer livremente sobre seus atos e, com propriedade, identificar as coisas que um poderia ter aprendido com o outro. Os erros de Carlstadt em Wittemberg não foram cometidos porque ele rejeitou a ajuda de Lutero, mas por ter sido privado de tal ajuda quando Lutero foi capturado. Já os erros de Lutero naquilo que Carlstadt estava certo ocorreram porque ele achou melhor rejeitar a doutrina de Carlstadt. 1. O erro de Carlstadt quando este removeu as imagens, extingiu a missa, aboliu os votos monásticos e de celibato, permitiu que todos participassem tanto do pão quanto do vinho na ceia e passou a realizar o culto em alemão, em vez de em latim -- se é que foi erro -- foi no que diz respeito ao momento, e não à doutrina. Se Lutero estivesse com ele, provavelmente tudo isso teria sido adiado por alguns meses, ou talvez alguns anos. 2. Com a presença de Lutero, Carlstadt provavelmente teria sido poupado da influência dos profetas de Zwickau. Na situação em que se encontrava, ele de fato aceitou, por um breve período, não o ensino deles como um todo, mas apenas a doutrina de que a inspiração do Espírito Santo torna vão e inútil o ensino humano. Mas nessas coisas Carlstadt se submeteu à correção de Lutero. Se Lutero tivesse dado ouvidos a Carlstadt, teria se beneficiado nos seguintes aspectos: 1. Em seu zelo pela doutrina da justificação pela fé, ele teria sido poupado de negar a inspiração da carta de Tiago e não a teria chamado de "epístola de palha".[29] 2. Em vez de trocar a transubstanciação -- a doutrina católica de que o pão e o vinho da ceia se transformam na carne e no sangue literais de Cristo -- pela consubstanciação -- a doutrina que ele estabeleceu na igreja luterana de que a carne e o sangue de Cristo estão presentes no pão e vinho --, Lutero poderia ter ensinado a essa igreja a doutrina de que o pão e o vinho simplesmente representam o corpo e o sangue de Cristo, sendo usados em comemoração de Seu sacrifício por nossos pecados. 3. Em vez de aderir a todas as práticas da igreja católica que não se encontram expressamente proibidas na Bíblia, ele poderia ter deixado de lado tudo que não for sancionado pelo Livro sagrado. 4. Em vez da festa católica do domingo, ele teria guardado e transmitido à igreja protestante o antigo sábado do Senhor. Carlstadt necessitava da ajuda de Lutero, e ele a aceitou. Será que Lutero também não precisava do auxílio de Carlstadt? Será que não chegou o momento de defender Carlstadt da grande difamação que lhe foi imposta pelo grupo dominante? E será que isso já não teria sido feito há muito tempo se Carlstadt não tivesse sido um firme sabatista? Notas: 1. Barna Sears, D.D., Life of Luther, ed. ampl., p. 400-401. 2. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 2, p. 123. 3. Ibid. 4. D'Aubigné, Hist. of the Ref., livro 9. 5. Mosheim, Church Hist., livro 4, séc. 16, seção 3, parte 2, parágrafo 22, nota. 6. Life of Luter, p. 401. 7. D'Aubigné, Hist. Ref., livro 9, p. 282. Uso a excelente edição em volume único publicada por Porter e Coates. 8. Life of Luter, p. 402-403. 9. Idem, p. 401-402. 10. Mosheim, Hist. of the Church, livro 4, séc. 16, seção 3, parte 2, parágrafo 22, nota. 11. Life of Luther, p. 402. 12. D'Aubigné, Hist. of Ref., livro 10, p. 312. 13. Life of Luther, p. 403. 14. D'Aubigné, Hist. of Ref., livro 10, p. 314-315. 15. Ibid. 16. McClintock e Strong, Cyclopedia, vol. 2, p. 123. 17. Ibid. 18. Life of Luther, p. 400. 19. D'Aubigné, Hist. of Ref., livro 10, p. 312. 20. Idem, livro 10, p. 315. 21. Hist. of Ref., livro 10, p. 315. 22. Life of Luther, p. 403. 23. Mosheim, Church Hist., livro 4, séc. 16, seção 3, parte 2, parágrafo 22, nota. 24. Ibid. Uma declaração quase igual é feita por du Pin, tomo 13, cap. 2, seção 20, p. 103, 1703 d.C. 25. Hist. Ref., livro 10, p. 315. 26. Treatise of the Sabbath Day, p. 8. 27. Life of Luther, p. 402. 28. Citado por J. W. Moore, The Life of Martin Luther in Pictures, p. 147, Philadelphia, 195 Chestnut Street. 29. McClintock e Strong, vol. 2, p. 123. Dr. A. Clarke, Commentary, prefácio a Tiago. Capítulo 24 Guardadores do Sábado no Século 16 John Frith, reformador inglês de considerável importância, e um mártir, converteu-se por meio dos esforços de Tyndale por volta de 1525, e o auxiliou na tradução da Bíblia. Ele foi queimado em Smithfield, no dia 4 de julho de 1533. Frith é mencionado de maneira muito favorável pelos historiadores da Reforma inglesa.[1] Ele próprio declara sua opinião quanto ao sábado e ao primeiro dia: "Os judeus têm a Palavra de Deus a favor do sábado deles, uma vez que é o sétimo dia, e foram ordenados a guardá-lo com solenidade. E nós não temos a Palavra de Deus a nosso favor, mas, em vez disso, contra nós; pois não guardamos o sétimo dia, como os judeus, mas, sim, o primeiro, que não foi ordenado pela lei de Deus."[2] Quando a Reforma ergueu o véu de trevas que cobria as nações da Europa, foram encontrados guardadores do sábado na Transilvânia, Boêmia, Rússia, Alemanha, Holanda, França e Inglaterra. Não foi a Reforma que deu origem a esses sabatistas, uma vez que os líderes da Reforma, de modo geral, não tinham afinidade com tais pontos de vista. Pelo contrário, esses observadores do sábado parecem ser remanescentes das antigas igrejas guardadoras do sábado, que testemunharam em prol da verdade durante a Idade das Trevas. A Transilvânia, que depois se transformou em uma das divisões orientais do império austríaco, era, no século 16, um principado independente. Por volta da metade desse século, o país se encontrava sob o domínio de Sigismundo. Robinson, historiador dos batistas, faz um relato interessante sobre os acontecimentos daquela época e daquele país: "O príncipe recebeu suas primeiras impressões religiosas de seu capelão, Alexius, que era luterano. Ao deixar a função, o monarca escolheu Francis Davidis para sucedê-lo, e assim foi mais informado quanto aos princípios da Reforma. Davidis era natural de uma cidade extremamente populosa e bem fortificada chamada de Coloswar pelos nativos, Clausenberg pelos alemães e Claudiópolis por outros. Era um homem culto, prudente e piedoso, e, nessa fase de sua vida, tinha seus pensamentos mais voltados para os princípios da Reforma do que muitos de seus contemporâneos. Em 1563, sua alteza convidou muitos eruditos estrangeiros para irem à Transilvânia com o propósito de fazer a Reforma avançar."[3] "Vários outros estrangeiros, que haviam sido perseguidos em outros lugares, buscaram refúgio nesse país, onde não se conhecia perseguição religiosa. Esses refugiados eram batistas unitarianos, e, mediante sua habilidade e coragem infatigáveis, o príncipe, boa parte do Senado, grande número de ministros e uma multidão de pessoas abra- çaram de coração o plano de Reforma proposto por eles."[4] "No fim, os batistas se tornaram, de longe, o grupo mais numeroso, e receberam um prelo e uma academia de ensino. Além disso, a catedral lhes foi entregue para servir de local de adoração. Eles conseguiram essas coisas sem nenhuma violência; e, embora fundassem suas próprias igrejas segundo as convicções de seus membros, não perseguiram ninguém, mas permitiram a mesma liberdade aos outros. Assim, grande número de católicos, luteranos e calvinistas residiam em perfeita liberdade."[5] Robinson nos informa ainda que Davidis assumiu a posição unitariana extrema com respeito à adoração a Cristo, e esse parece ser o único erro grave do qual ele pode ser acusado. Davidis era pastor batista unitariano, e recebeu de seus irmãos a incumbência de supervisionar as igrejas da Transilvânia. Sua influência no país durante esse período foi muito grande. Sua opinião acerca do sábado é expressa da seguinte forma: "Ele supunha que o sábado judaico não fora abolido e, por isso, santificava o sétimo dia. Acreditava também na doutrina do milênio e, sendo honesto, ensinava aquilo em que cria. Era considerado como apóstolo pelas igrejas da Transilvânia e envelheceu a serviço delas. Mas os católicos, luteranos e calvinistas o consideravam um turco, blasfemador e ateu. Seus irmãos batistas poloneses diziam que ele era meio judeu. Caso fosse judeu por inteiro, não deveria ter sido preso por suas especulações."[6] "Por meios que só o supremo Sondador dos corações conhece, mas usando métodos até então desconhecidos na Transilvânia, o idoso homem foi preso e condenado à morte pelo senado. Ficou preso no castelo, e a providência, colocando fim à vida dele ali, privou seus perseguidores da desgraça de uma execução pública."[7] Robinson conta que "muitos têm sido considerados culpados" pela morte de Davidis, "mas talvez a fonte secreta desse acontecimento não será conhecida até o dia em que o Juiz do mundo investigar os crimes de sangue". Naquela época, havia muitos guardadores do sábado na Transilvânia, pois Robinson cita muitas pessoas distintas que tinham o mesmo ponto de vista que Davidis. O embaixador Bequessius, general do exército, a princesa, irmã do príncipe John, Chaquius, o conselheiro particular, os dois oradores, o general Andrassi e muitos outros do alto escalão; Somer, o reitor da academia em Claudiópolis, Christian Francken, professor nessa mesma instituição, Matthias Glirius e Adam Neusner. Robinson conta: "Todos esses tinham o mesmo ponto de vista que Davidis, como também muitos outros, de diversas posições sociais, os quais, após sua morte na prisão, defenderam sua opinião contra Socino. Palaeologus era da mesma opinião. Ele havia fugido para a Morávia, mas fora capturado pelo imperador, a pedido do papa Gregório XIV, e levado para Roma, onde foi queimado como herege. Era um homem idoso, e, a princípio, ficou aterrorizado, retratando-se; mas ele se recobrou e se sujeitou a seu destino como um cristão."[8] Essas pessoas devem ter sido guardadoras do sábado. Depois de dizer que Davidis "deixou após si discípulos e amigos que defenderam seus pontos de vista com toda força", Mosheim acrescenta: "Os mais proeminentes de todos esses foram: Jacob Palaeologus, da ilha de Quios, que foi queimado em Roma em 1585; Christian Francken, que havia debatido pessoalmente com Socino, e John Somer, mestre da academia de Clausenberg. Essa pequena seita é chamada, pelos escritores partidários de Socino, pelo apelido pejorativo de semijudaizantes."[9] Temos mais um registro dos guardadores do sábado na Transilvânia, pois, na época de Davidis, "John Gerendi [era] o líder dos sabatistas, povo que não guardava o domingo, mas, sim, o sábado, cujos discípulos assumiram o nome de genoldistas."[10] Na época da Reforma também foram encontrados guardadores do sábado na Boêmia, país da Europa central, mas dependemos daqueles que desprezavam sua fé e prática para obter qualquer conhecimento sobre sua existência. Erasmo fala o seguinte a respeito desse grupo: "Ouvimos dizer que, entre os boêmios, surgiu um novo tipo de judeus chamados de sabatistas, os quais guardam o sábado com tanta superstição que, se qualquer coisa lhes cair nos olhos, eles não a retiram -- como se não lhes fosse suficiente, em lugar do sábado, o dia do Senhor, que para os apóstolos também era sagrado; ou como se Cristo não tivesse dito expressamente o que se pode fazer no dia de sábado."[11] Nada precisamos dizer acerca da suposta superstição desses guardadores do sábado. A declaração refuta-se a si mesma, e revela o amargo preconceito daqueles que falavam dessa maneira a respeito deles. Mas não resta dúvida de que existiam guardadores do sábado na Boêmia nessa época. Eles tinham certa importância e provavelmente publicaram suas opiniões, divulgando-as para o mundo, pois Cox nos conta: "Hospinian, de Zurique, no tratado Concerning the Feasts of the Jews and of the Gentiles [Das Festas dos Judeus e dos Gentios], capítulo 3 (Tiguri, 1592), responde aos argumentos desses sabatistas."[12] A existência desse grupo de guardadores do sábado na Boêmia, na época da Reforma, é uma forte prova conjectural de que os valdenses da Boêmia, mencionados anteriormente, apesar das alegações de que guardavam o domingo, eram, na verdade, guardadores do antigo sábado. Na Rússia, os observadores do sétimo dia são numerosos na atualidade. Sua existência remonta aproximadamente ao ano 1400. Eles são, portanto, pelo menos cem anos mais antigos que a obra de Lutero. O primeiro escritor que eu cito aqui se refere a eles como "tendo deixado a fé cristã". Todavia, mesmo em nossa época, é muito comum as pessoas dizerem que aqueles que deixam o primeiro dia para guardar o sétimo renunciaram a Cristo, trocando-o por Moisés.[13] Ele também diz que eles praticavam a circuncisão. Até Carlstadt foi acusado de tal fato por Lutero, como uma dedução necessária do fato de Carlstadt observar o dia ordenado pelo quarto mandamento. Já que esse é um método comum de caracterizar os guardadores do sábado da presente época e também das eras passadas -- pois quando faltam argumentos, as pessoas recorrem a termos infames --, o historiador, que formula o relato desse povo com base na declaração do grupo dominante, certamente os representará como se estivessem rejeitando a Cristo e ao evangelho e aceitando, em seu lugar, Moisés e a lei cerimonial. Apresento as declarações dos historiadores tais como foram escritas, cabendo ao leitor julgar. Robert Pinkerton faz o seguinte relato a respeito dessas pessoas: "Seleznevtschini. Esta seita é, nos tempos modernos, exatamente o que os Strigolniks eram em sua origem. São, em princípio, judeus. Mantêm a obrigação divina da circuncisão. Guardam o sábado judaico e a lei cerimonial. Há muitos deles na região de Tula, no rio Kuma, e em outras províncias. São muito numerosos na Polônia e na Turquia, onde, tendo deixado a fé cristã, se uniram à semente de Abraão, segundo a carne, ao rejeitarem o Messias e o evangelho."[14] O antigo nome russo desse grupo era Strigolniks. O Dr. Murdock apresenta o relato a seguir sobre eles: "É comum datar a origem dos sectários da igreja russa mais ou menos da metade do século 17, na época do patriarca Nikon. No entanto, segundo os anais russos, já existiam dissidentes dentro da igreja russa 200 anos antes da época de Nikon. E os conflitos que ocorreram em sua época só proveram os meios para o aumento de seus números, dando-lhes visibilidade pública. Os primeiros desses dissidentes apareceram em Novogorod, no início do século 15, tendo recebido o nome de Strigolniks." "Um judeu chamado Horie pregava uma mistura de judaísmo e cristianismo, e converteu dois sacerdotes, Denis e Alexie, os quais conquistaram grande número de seguidores. Essa seita era tão numerosa que foi convocado um concílio nacional por volta do fim do século 15, a fim de se opor a ela. Pouco tempo depois, Karp, um diácono excomungado, se uniu aos Strigolniks e acusou o alto clero de vender o ofício do sacerdócio e corromper a igreja a tal ponto que o Espírito Santo Se retirou dela. Ele foi um propagador muito bem-sucedido dessa seita."[15] É muito comum os historiadores se referirem aos cristãos guardadores do sábado de duas maneiras: (1) citando especificamente a guarda do sábado e caracterizando-os como um grupo que deixou a Cristo para seguir Moisés e a lei cerimonial; (2) mencionando os princípios sabatistas de maneira tão vaga que o leitor provavelmente não suspeitará se tratar de guardadores do sábado. Pinkerton fala dos guardadores do sábado usando o primeiro desses métodos; já Murdock lança mão do segundo. Fica claro que Murdock não considerava que tais pessoas haviam rejeitado a Cristo, e está evidente, com base em Pinkerton, que os dois escritores estão se referindo ao mesmo povo. Qual foi a origem desses russos guardadores do sábado? Sem dúvida, não foi a Reforma do século 16, pois eles já existiam pelo menos um século antes desse evento. Vimos que os valdenses, durante a Idade das Trevas, espalharam-se por muitos países da Europa, o que também ocorreu com o povo chamado de cátaros [os albigenses], se ambos não forem o mesmo grupo. Notamos que eles se dispersaram, particularmente, pela Polônia, Lituânia, Esclavônia, Bulgária, Livônia, Albânia e Sarmácia.[16] Todos esses países passaram a integrar o império russo. Havia muitos guardadores do sábado na Rússia antes dos dias de Lutero. O sábado do Senhor foi certamente conservado por muitos dos antigos valdenses e cátaros, conforme já vimos. Aliás, as mesmas coisas afirmadas acerca dos guardadores do sábado russos -- que eles se apegavam à circuncisão e à lei cerimonial -- também eram acusações lançadas aos cátaros e à ramificação dos valdenses conhecida como passagínios.[17] Resta alguma dúvida de que temos nesses cristãos antigos os ancestrais dos guardadores do sábado russos do século 15? Maxson faz a seguinte declaração: "Constatamos que surgem guardadores do sábado na Alemanha, no fim do século 15 ou início do 16, de acordo com 'O Quadro de Todas as Religiões de Ross'. A inclusão deles no quadro de Ross revela que seu número era grande o bastante para exigir algum tipo de organização e chamar a atenção. Parte deles formou uma igreja e emigrou para a América no início da colonização dessa nação."[18] Utter faz a seguinte declaração acerca dos guardadores do sábado na Alemanha e na Holanda: "No início do século 16, encontram-se vestígios de guardadores do sábado na Alemanha. O antigo livro holandês dos mártires apresenta o relato de um ministro batista chamado Stephen Benedict, um tanto conhecido por batizar em meio a uma forte perseguição na Holanda, o qual, segundo autoridades de confiança, teria guardado o sétimo dia como o sábado. Uma das pessoas batizadas por ele foi Barbary von Thiers, esposa de Hans Borzen, que foi executada em 16 de setembro de 1529. Em seu julgamento, ela declarou que rejeitava o sacramento idólatra do sacerdócio e também a missa."[19] Apresentamos sua declaração de fé acerca do domingo e dos dias santos: "'Deus ordenou que descansássemos no sétimo dia'. Além disso ela não foi, mas com a ajuda e a graça de Deus, nisso perseverou, e até morreu por isso; pois essa é a verdadeira fé e o caminho reto em Cristo."[20] Outra mártir, Christina Tolingerin, é assim mencionada: "Acerca dos dias santos e do domingo, ela disse: 'Em seis dias o Senhor fez o mundo e no sétimo dia descansou. Os outros dias santos foram instituídos por papas, cardeais e arcebispos.'"[21] Nessa época, havia guardadores do sábado na França: "Na França também havia cristãos dessa categoria, dentre eles, M. de la Roque, que escreveu uma defesa do sábado contra Bossuet, bispo católico de Meaux."[22] O Dr. Wall faz referência a M. de la Roque em sua célebre história do batismo infantil, considerando-o "homem instruído em outros aspectos", mas em grande erro por afirmar que "a igreja primitiva não batizava bebês".[23] É digno de nota que os guardadores do sábado sempre tenham observado o batismo bíblico -- o sepultamento dos cristãos penitentes na sepultura das águas. Nenhum povo que manteve o batismo infantil ou a aspersão dos crentes tem guardado o sétimo dia.[24] Não se sabe ao certo qual é a origem dos sabatistas da Inglaterra. O fato de defenderem o batismo [por imersão] dos que creem e a guarda do sétimo dia como o sábado do Senhor aponta fortemente para o fato de terem sido descendentes dos hereges perseguidos na Idade das Trevas, em vez de dos reformadores do século 16, os quais mantiveram o batismo infantil e a festa do domingo. Crosby testifica que um grande número desses hereges já existia há muito tempo na Inglaterra: "Pois na época de William, o Conquistador [1070 d.C.], e de seu filho William Rufus, parece que os valdenses e seus discípulos da França, Alemanha e Holanda buscavam abrigo com frequência na Inglaterra, e ali abundavam. [...] A heresia beringária, ou valdense, assim denominada pelo cronologista, havia corrompido toda a França, Itália e Inglaterra por volta de 1080 d.C.[25] Maxson conta acerca dos sabatistas ingleses: "Na Inglaterra, encontramos guardadores do sábado desde tempos muito antigos. O Dr. Chambers declara: 'Eles surgiram na Inglaterra no século 16'. Com isso, entendemos que, nessa época, eles se tornaram uma denominação distinta nesse reino."[26] Benedict fala o seguinte acerca da origem deles: "Não se sabe ao certo quando os batistas do sétimo dia começaram a formar igrejas nesse reino, mas provavelmente já existiam há muito tempo. E, embora suas igrejas nunca tenham sido numerosas, encontram-se entre eles, há quase duzentos anos, alguns homens muito proeminentes.[27] Notas: 1. McClintock e Strong, vol. 3, p. 679; D'Aubigné, Hist. Ref., livro 17, p. 672, 689, 706, 707; livro 20, p. 765-766; Fox, Acts and Monuments, livro 8, p. 524-527. 2. Frith's Works, p. 69, citado por Hessey, p. 198. 3. Eccl. Researches, cap. 16, p. 630. 4. Ibid. 5. Idem, p. 631. 6. Eccl. Researches, cap. 16, p. 636. 7. Idem, p. 636-637. 8. Eccl. Researches, cap. 16, p. 640. 9. Mosheim, Hist. Church, livro 4, séc. 16, seção 3, parte 2, cap. 4, parágrafo 23. 10. Lamy, History of Socinianiam, p. 60. 11. "Nunc audimus apud Bohemos exoriri novum Judæorum genus, Sabbatarios appellant, qui tanta superstitione servant Sabbatum, ut si quid eo die inciderit in oculum, nolint eximere: quasi non sufficiat eis pro Sabbato Dies Dominicus, qui Apostolis etiam erat sacer, aut quasi Christus non satis expresserit quantum tribune dum sit Sabbato" (De Amabili Ecclesiæ Concordia; Opera, tomo 5, p. 506, Lugd. Bat. 1704; citado por Cox, Sabbath Literature, vol. 2, p. 201, 202; Hessey, p. 374). 12. Cox, vol. 2, p. 202. 13. Essas declarações a respeito dos guardadores do sétimo dia são muito comuns. Até mesmo aqueles que começaram a guardar o sábado em Newport foram acusados de "ter deixado a Cristo e se voltado a Moisés na observância de dias, tempos, estações e coisas do tipo" (Seventh-day Baptist Memorial, vol. 1, p. 32). O pastor da igreja batista do primeiro dia de Newport disse-lhes: "Julgo que vocês negaram a Cristo e continuam a fazê-lo" (idem, p. 37). 14. The Present State of the Greek Church in Russia, Apêndice, p. 273, New York, 1815. 15. Murdock's Mosheim, livro 4, séc. 17, seção 2, parte 1, cap. 2, nota 12. 16. Ver o capítulo 21 desta obra. 17. Ibid. 18. Maxson, Hist. Sab., p. 41. 19. Manual of the Seventh-day Baptists, p. 16. 20. Martyrology of the Churches of Christ, commonly called Baptists, during the era of the Reformation. Do holandês de T. J. Van Braght, Londres, 1850, vol. 1, p. 113-114. 21. Idem, p. 113. 22. Manual of the S. D. Baptists, p. 16. 23. Wall, History of Infant Baptism, vol. 2, p. 379, Oxford, 1835. 24. Não conheço nenhuma exceção a essa declaração. Se houver, provavelmente será encontrada dentre aqueles que observavam tanto o sétimo quanto o primeiro dia. Mesmo nesse caso, certamente não praticavam o batismo por aspersão, mas é possível achar a prática do batismo de crianças pequenas. 25. Hist. English Baptists, vol. pref., p. 43-44. 26. Maxson, Hist. Sab., p. 42. 27. Gen. Hist. Bapt. Denom., vol. 2, p. 414, ed. 1813. Capítulo 25 Quando e Como o Domingo se Apropriou do Quarto Mandamento Aluz da Reforma Protestante necessariamente dissipou muitos dos argumentos de maior peso usados para consolidar a festa do domingo durante a Idade das Trevas. O rolo que caiu do Céu, a aparição de São Pedro, o alívio das almas do purgatório e até dos condenados ao inferno, bem como muitos prodígios com terríveis consequências -- nenhuma dessas coisas, nem todas elas reunidas, pareceriam capazes de ainda sustentar a santidade do dia venerável. A verdade é que, quando elas foram eliminadas, as coisas que restaram para defender a festa do domingo foram: os cânones dos concílios, os editos de reis e imperadores, os decretos dos santos doutores da igreja e, o mais importante de tudo, as ordens imperiosas do pontífice romano. No entanto, tais elementos também poderiam ser usados a favor das inúmeras festas ordenadas pela mesma grande igreja apóstata. Tal autoridade serviria para os anglicanos, que devotamente aceitam todas essas festas, pois foram ordenadas pela igreja. Mas para aqueles que reconhecem a Bíblia como a única regra de fé, a situação era diferente. Na última parte do século 16, os presbiterianos e anglicanos da Inglaterra se envolveram numa disputa que tornou esse tema uma questão preocupante. Os anglicanos requeriam que as pessoas guardassem todas as festas da igreja. Os presbiterianos observavam o domingo, mas rejeitavam todo o restante. Os anglicanos apontaram para a inconsistência dessa discriminação, uma vez que a mesma autoridade eclesiástica havia ordenado todas essas festas. Como os presbiterianos rejeitaram a autoridade da igreja papal, eles não aceitariam guardar o domingo com base na autoridade da igreja romana, principalmente porque envolveria também a observância de todos os outros dias de festa. Logo, eles precisavam escolher entre abrir mão do domingo por completo ou defender a guarda do primeiro dia usando a Bíblia. Havia, na verdade, outra escolha mais nobre a ser feita, a saber, adotar o sábado do Senhor; mas seria humilhante demais para eles se unir àqueles que conservaram essa antiga e santa instituição. O cerne dessa discussão é relatado por Hengstenberg, distinto teólogo alemão: "A opinião de que o sábado foi transferido para o domingo foi formulada, pela primeira vez, em sua forma perfeita e com todas as suas consequências, em meio à controvérsia que ocorreu na Inglaterra entre anglicanos e presbiterianos. Os presbiterianos, que levaram a extremos o princípio de que toda instituição da igreja deve estar fundamentada nas Escrituras -- e não admitiam que Deus dera, a esse respeito, maior liberdade à igreja do Novo Testamento, levada à maturidade pelo Espírito Santo, do que à igreja do Antigo -- acusavam os anglicanos de estarem contaminados com o fermento papal e de serem supersticiosos e sujeitos a ordenanças de homens, por observarem as festas da igreja. Os anglicanos, em contrapartida, como prova de que uma maior liberdade fora concedida à igreja do Novo Testamento em questões como essas, apelaram para o fato de que até mesmo a guarda do domingo não passava de uma ordenança da igreja. Os presbiterianos se viram numa posição que os compelia, ou a abrir mão de guardar o domingo, ou a defender que uma ordenança da parte de Deus separava o domingo das outras festas. Sem o primeiro dia não poderiam ficar, pois tinham uma experiência cristã profunda o bastante para reconhecer o quanto a fraqueza da natureza humana torna necessários períodos regulares de revigoramento dedicados ao serviço de Deus. Por isso, decidiram-se pela segunda opção."[1] Isso é suficiente para conhecermos o momento histórico da maravilhosa descoberta que faz com que as Escrituras apoiem a ordenança divina do domingo como o sábado cristão. A data dessa descoberta, o nome do descobridor e como ele conseguiu promover o primeiro dia da semana por meio da autoridade do quarto mandamento são expressos por Lyman Coleman, um sincero historiador favorável ao primeiro dia: "A verdadeira doutrina do sábado cristão foi promulgada pela primeira vez por um dissidente inglês, o reverendo Nicholas Bound, doutor em divindade, de Norton, no condado de Suffolk. Por volta do ano 1595, ele publicou um famoso livro chamado Sabbathum Veteris et Novi Testamenti, ou A Verdadeira Doutrina do Sábado. Nesse livro, defendeu 'que a sétima parte de nosso tempo deve ser dedicada a Deus -- que os cristãos têm o dever de descansar no dia do Senhor assim como os judeus no sábado mosaico, pois o mandamento do descanso é moral e perpétuo; e que não era lícito as pessoas prosseguirem em seus estudos ou trabalhos seculares nesse dia, nem usufruir dos prazeres e das recreações permitidas nos outros dias. Esse livro se espalhou com rapidez admirável. A doutrina proposta nele provocou resposta imediata em muitos corações, e o resultado foi a mais aprazível reforma em muitas partes do reino. 'É quase inacreditável' -- diz Fuller -- 'como essa doutrina foi atraente, em parte por causa de sua pureza, em parte pela piedade evidente das pessoas que a defendiam. Assim, o dia do Senhor, especialmente nas organizações, começou a ser guardado de forma precisa, e as pessoas se tornaram lei para si mesmas, abrindo mão de esportes que, por estatuto, ainda eram permitidos. Na verdade, muitos se alegravam pela própria abnegação nesse ponto'. A lei do dia de descanso era, de fato, um princípio religioso de que a igreja cristã vinha, há séculos, tateando no escuro à procura. Homens piedosos de todas as eras haviam sentido a necessidade de autoridade divina para a santificação do dia. A consciência deles estava mais avançada que sua razão. Na prática, eles haviam guardado o dia de descanso melhor do que os princípios deles exigiam." "Todavia, a opinião pública ainda estava hesitante quanto a essa nova doutrina a respeito do dia de descanso, muito embora, a princípio, alguns tenham se oposto ferrenhamente a ela. 'Homens eruditos se encontravam muito divididos em suas opiniões acerca dessas doutrinas que promulgavam um tipo de descanso idêntico ao descanso sabático do Antigo Testamento. Alguns as aceitaram como verdades antigas, em conformidade com as Escrituras, há muito descontinuadas e negligenciadas, e agora oportunamente reavivadas para o aumento da piedade. Outros afirmavam que elas estavam fundamentadas em uma base errônea, mas, como tendiam ao avanço manifesto da religião, seria uma pena se opor às mesmas; deduzindo que ninguém tinha motivo justo para reclamar, visto estarem sendo enganados para o próprio bem. Mas um terceiro grupo rejeitou por completo tais proposições, como se essas doutrinas fossem um jugo judeu, para torturar o pescoço dos homens, e contrárias à liberdade dos cristãos. Alegavam que Cristo, o Senhor do sábado, havia removido o rigor do dia de descanso e permitido nele recreações lícitas, dizendo que essa nova doutrina colocava um brilho desigual no domingo, com o propósito claro de obscurecer todos os outros dias santos, menosprezando a autoridade da igreja; afirmavam, também, que essa observância estrita estava sendo estabelecida por motivos facciosos, era discriminatória e tinha o objetivo de rotular como libertinos todos aqueles que discordassem dela'. Inicialmente, porém, não se manifestou nenhuma oposição aberta aos pontos de vista do Dr. Bound. Por muitos anos não houve tentativa de resposta, e, 'na imprensa, nenhuma pena sequer escreveu contra ele.'" "Sua obra logo foi sucedida por vários outros tratados defendendo os mesmos conceitos. 'Todos os puritanos aderiram a essa doutrina e se distinguiram por passar essa parte do tempo sagrado em devoção pública, familiar e particular'. Até o Dr. Heylyn testificou sobre a disseminação triunfante das opiniões puritanas em relação ao dia de descanso [...]." "'Essa doutrina' -- afirma ele -- 'envolvendo tão grande exibição de piedade, pelo menos na opinião das pessoas comuns e daqueles que não examinaram seus verdadeiros fundamentos, induziu muitos a adotá-la e a defendê-la. Dentro de muito pouco tempo, tornou-se o erro mais encantador e a obsessão mais popular já adotados pelo povo da Inglaterra.'"[2] O Dr. Bound não foi, de modo algum, o inventor da teoria da sétima parte do tempo; mas pode-se dizer que ele reuniu e combinou os indícios dispersos de seus antecessores, acrescentando a esses alguma coisa de elaboração própria. Seus motivos para afirmar que o domingo corresponde ao sábado do quarto mandamento são estes: "Aquilo que é natural, isto é, que todo sétimo dia deve ser santificado ao Senhor, ainda permanece. Aquilo que é indiscutível, isto é, que o dia que foi o sétimo dia desde a criação deveria ser o sábado, ou dia de descanso, agora está mudado na igreja de Deus."[3] Ele diz que o significado da declaração "O sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus" é este: "É preciso haver um [dia] dentre sete, e não [um] dentre oito."[4] Mas o ponto central de toda a teoria é a declaração de que o sétimo dia do mandamento correspondia a um "gênero", isto é, a uma classe de sétimo dia que abrangia várias espécies de sétimos dias, no mínimo duas. Assim, ele afirma: "Então Ele fez o sétimo dia para representar um gênero neste mandamento e para ser perpétuo; e deve-se incluir nele, em virtude do mandamento, duas espécies ou tipos: o sábado dos judeus e o dos gentios, o da lei e o do evangelho. Logo, ambos estão contidos no mandamento, assim como um gênero engloba ambas as suas espécies."[5] Ele impõe o primeiro dia com base no quarto mandamento da seguinte maneira: "Assim, não temos no evangelho um novo mandamento para o sábado [ou dia de descanso], diferente do que estava na lei, mas, sim, um tempo diferente designado, isto é, não o sétimo dia da criação, mas, sim, o dia da ressurreição de Cristo e o sétimo a partir dele; e ambos, em diversos momentos, abrangidos pelo quarto mandamento."[6] Ele quer dizer que o quarto mandamento exige a guarda do sétimo dia desde a criação até a ressurreição de Cristo, e, desde esse acontecimento, requer a observância de um sétimo dia diferente, isto é, o sétimo dia a partir da ressurreição de Cristo. Aqui vemos a perversa sagacidade pela qual os homens conseguem escapar da lei de Deus, dando, ao mesmo tempo, a impressão de que a estão observando fielmente. Essa foi a origem da teoria da sétima parte do tempo, segundo a qual o "sétimo dia" é removido do quarto mandamento e "um dia em sete" é sutilmente introduzido em seu lugar -- uma doutrina elaborada justamente no período em que nada mais seria capaz de salvar o venerável dia do sol. Com o auxílio dessa teoria, o domingo "papal e pagão" conseguiu ousadamente se revestir do quarto mandamento, assumindo o caráter de uma instituição divina, exigindo a obediência de todos os cristãos bíblicos. Agora o dia podia deixar de lado todas as outras fraudes dos quais sua existência dependia e passar a embasar sua autoridade apenas nesse argumento. Na época de Constantino, o domingo ascendeu ao trono do império romano e, durante todo o período da Idade das Trevas, manteve sua supremacia por meio da cadeira de São Pedro. Agora, porém, ele fora elevado ao trono do Altíssimo. Assim, um dia que Deus "não ordenou, nem falou, nem passou por Sua mente" foi imposto sobre toda a humanidade com toda a autoridade de Sua santa lei. O efeito imediato da obra do Dr. Bound sobre a controvérsia que se criou é assim descrito por uma testemunha ocular anglicana, o Dr. Heylyn: "Ao inculcar ao povo essas novas especulações sabáticas [acerca do domingo], ensinando que somente esse dia 'fora ordenado por Deus e todo o restante das festas observadas pela igreja da Inglaterra era um remanescente da adoração do eu na igreja de Roma', os outros dias santos estabelecidos nesta igreja foram tão astutamente abalados que, até hoje, não se recuperaram totalmente do golpe recebido. Tal situação não foi um efeito secundário ou além do propósito deles, mas algo assim pretendido desde o princípio."[7] Em um capítulo anterior, chamamos atenção para o fato de que o domingo só pode ser mantido como instituição divina se adotarmos a regra de fé reconhecida pela igreja católica, ou seja, a Bíblia juntamente com as tradições da igreja que lhe são adicionadas. Vimos que, no século 16, os presbiterianos da Inglaterra tiveram que decidir entre abrir mão do domingo como festa da igreja ou mantê-lo como uma instituição divina ordenada pela Bíblia. Eles escolheram a segunda opção. Todavia, embora aparentassem evitar a acusação de observar uma festa católica, alegando provar que o domingo fosse uma instituição bíblica, a natureza absolutamente insatisfatória das várias inferências retiradas das Escrituras a fim de apoiar esse dia os levou a recorrer às tradi- ções da igreja, acrescentando-as a suas supostas referências bíblicas em favor do domingo. Seria melhor guardar o domingo reconhecendo francamente se tratar de uma festa da igreja católica, não ordenada pela Bíblia, do que professar observá-lo como instituição bíblica e então provar isso adotando a regra de fé dos católicos romanos. Jouanes Peronne, proeminente teólogo católico italiano, em uma importante obra doutrinária, intitulada Theological Lessons [Lições Teológicas], faz uma declaração muito impressionante a respeito do reconhecimento da tradição por parte dos protestantes que guardam o domingo. No capítulo "Concerning the Necessity and Existence of Tradition" [Da Necessidade e Existência da Tradição], ele propõe ser necessário aceitar doutrinas que só podem ser provadas com base na tradição e que não podem ser sustentadas pelas sagradas Escrituras. Ele então afirma: "Na verdade, se tradições de tal caráter forem rejeitadas, não é possível que várias doutrinas que os protestantes mantiveram conosco desde que se separaram da igreja católica, sejam, de algum modo, firmadas. Esse fato fica estabelecido sem qualquer sombra de dúvida; pois eles defendem, junto conosco, a validade de batismos administrados por hereges ou infiéis, a validade do batismo infantil, e também a verdadeira forma de batismo [aspersão]. Eles creem também que a lei de se abster do sangue e de animais sufocados não está em vigor; e também sobre a substituição do sábado pelo dia do Senhor, bem como as coisas que já mencionei e diversas outras."[8] A teoria do Dr. Bound sobre a sétima parte do tempo tem encontrado aceitação geral em todas as igrejas que surgiram da igreja de Roma. Cotton Mather declarou com muita propriedade: "Todas as igrejas reformadas, fugindo de Roma, levaram consigo algo de Roma, algumas mais, outras menos.[9] Um tesouro sagrado que todas elas receberam da venerável mãe das meretrizes foi a antiga festa do sol. Ela havia retirado de sua comunhão o sábado do Senhor; e, tendo adotado o venerável dia do sol, transformou-o no dia do Senhor da igreja cristã. Os reformados, deixando sua comunhão e carregando consigo a antiga festa, viram-se agora em condições de justificar sua observância como se fosse, na verdade, o sábado do Senhor! Assim como o manto sem costura de Jesus, o Senhor do sábado, foi arrancado Dele antes que O pregassem na cruz, o quarto mandamento, da mesma forma, foi arrancado do dia de descanso do Senhor, ao redor do qual ele foi colocado pelo grande Legislador, e entregue a esse "dia do Senhor" criado pelo papa; e esse ladrão Barrabás, vestido com o quarto mandamento que foi furtado, tem conseguido, desde aquela época até hoje, exigir do mundo, e com sucesso surpreendente, a sua observância como se fosse o sábado divinamente designado pelo Deus altíssimo. Aqui encerramos a história da festa do domingo, agora plenamente transformada no sábado cristão. Uma rápida apresentação da história dos guardadores do sábado ingleses e norte-americanos concluirá esta obra. Notas: 1. Hengstenberg, Lord's Day, p. 66. 2. Coleman, Ancient Christianity Exemplified, cap. 26, seção 2; Heylyn, Hist. Sab., parte 2, cap. 8, seção 7; Neal, Hist. Puritans, parte 1, cap. 8. 3. Nicholas Bound, Sabbathum Veteris et Novi Testamenti; or, the True Doctrine of the Sabbath, segunda edição, Londres, 1606, p. 51. 4. Idem, p. 66. 5. True Doc. of the Sab., p. 71. 6. Idem, p. 72. 7. Hist. Sab., parte 2, cap. 8, seção 8. 8. Praelectiones Theologicae, vol. 1, parte 2, seção 2, cap. 1, p. 194. "Propositio. Praeter sacram Scripturam admitti necessario debent Traditiones divinæ dogmaticæ ab illa prorsus distinctæ." "Non posse praeterea, rejectis ejusmodi traditionibus, plura dogmata, quæ nobiscum retinuerunt protestantes cum ab Ecclesia catholica recesserunt, ullo modo adstruis, res est citra comnis dubitationis aleam posita. Etenim ipsi nobiscum rotinuerunt valorem baptismi ab haereticis aut intidelibus administrati, valorem item paedobaptismi, germanam baptismi formam, cessationem legis de abstinentia a sanguine et suffocato, de die dominico Sabbatis suffecto, praeter ea quæ superius commemoravimus aliaque haud pauca." 9. Backus, Hist. of the Baptists in New England, p. 63, ed. 1777. Capítulo 26 Guardadores do Sábado Ingleses Chambers conta o seguinte acerca dos guardadores do sábado no século 16: Durante o reinado de Elizabeth, muitos pensadores conscienciosos e independentes chegaram à conclusão (como havia ocorrido antes com alguns protestantes da Boêmia) de que o quarto mandamento exigia, não a observância do primeiro dia, mas, sim, do sétimo dia da semana ali especificado, e um descanso corporal estrito, como serviço então devido a Deus. Já outros, embora convencidos de que o dia fora alterado por autoridade divina, aceitaram a mesma opinião quanto à obrigação bíblica de se abster do trabalho. O primeiro grupo se tornou numeroso o bastante para representar uma quantidade considerável por mais de um século na Inglaterra, sob o título de "sabatistas" -- palavra hoje alterada para a denominação menos ambígua de "batistas do sétimo dia."[1] Gilfillan cita um escritor inglês de 1584, John Stockwood, o qual afirma que havia, na época, "grande diversidade de opinião entre as pessoas comuns e humildes acerca do dia de descanso e do emprego adequado do mesmo." E assim Gilfillan explica um dos motivos dessa controvérsia: "Alguns defendiam a obrigação continuada e imutável do sábado do sétimo dia."[2] Em 1607, John Sprint, escritor inglês favorável ao primeiro dia, apresentou os pontos de vista dos guardadores do sábado nessa época, os quais, na verdade, são essencialmente os mesmos em todas as eras: "Eles alegam que seus motivos provêm: (1) da precedência do sábado à lei e à queda, e leis dessa natureza são imutáveis; (2) da perpetuidade da lei moral; (3) da grande parte dela que trata do [sábado mais] que de todos [os outros preceitos]; (4) [...] e o motivo que torna perpétuo esse preceito da lei: ele é o memorial e a reflexão das obras de Deus, o qual pertence tanto aos cristãos quanto aos judeus."[3] John Trask começou a falar e escrever a favor do sétimo dia como o sábado do Senhor por volta da época em que o rei James I e o arcebispo de Canterbury publicaram o célebre Book of Sports for Sunday [Livro de Esportes para o Domingo], em 1618. Seu campo de trabalho era Londres e, sendo muito zeloso, logo foi chamado a prestar contas à autoridade persecutória da igreja anglicana. Ele apresentou o elevado conceito da suficiência das Escrituras como guia de todos os serviços religiosos e de que as autoridades civis não deveriam reprimir a consciência das pessoas em questões religiosas. Foi levado diante da infame Câmara Estrelada, onde foi realizada uma longa discussão a respeito do sábado. Foi nessa ocasião que o bispo Andrews exprimiu pela primeira vez o argumento favorável ao primeiro dia, tão conhecido hoje, de que os mártires no passado eram interrogados com a pergunta "Você guarda o dia do Senhor?".[4] Gilfillan, citando as palavras de escritores da época, fala sobre o julgamento de Trask: "Por 'realizar reuniões religiosas ilegais e facciosas, que poderiam levar a sedições e comoção pública, e por escandalizar o rei, os bispos e o clero', 'ele foi censurado pela Câmara Estrelada e condenado a ser amarrado ao pelourinho de Westminster, e de lá ser levado aos empurrões à Prisão de Fleet, onde ficaria como prisioneiro."[5] Essa sentença cruel foi executada e, por fim, minou sua resolutividade. Depois de suportar por um ano as misérias da prisão, ele se retratou de sua doutrina.[6] O caso de sua esposa é digno de menção particular. Pagitt assim descreve seu caráter: "Era uma mulher dotada de muitas virtudes singulares, e teria se tornado digna da imitação de todos os bons cristãos se suas faltas em outras coisas, sobretudo o estranho espírito sem precedentes de se fechar na própria opinião e sua obstinação em manter ideias extravagantes particulares, não a tivessem estragado."[7] Pagitt conta que ela era uma professora que prezava pela excelência no ensino e tinha cuidado especial ao lidar com os pobres. O autor apresenta da seguinte forma os motivos que a impulsionavam: "Ela afirmava fazer essas coisas por consciência, pois cria que, um dia, seria julgada por tudo aquilo que fizesse na carne. Por isso, decidiu guiar-se pela mais segura regra, em vez de buscar seus próprios interesses particulares.[8] Usando as palavras de Pagitt, este foi seu crime: "Por fim, por dar aulas somente cinco dias por semana, e descansar no sábado,sabendo- -se por qual motivo ela o fazia, foi levada para a nova prisão na alameda Maiden, um local que na época era designado para a detenção de várias outras pessoas com opiniões que divergiam da promovida pela igreja anglicana."[9] Note qual foi o crime: não foi a sua ação em si, pois um guardador do primeiro dia poderia ter feito a mesma coisa, mas, sim, porque decidiu assim agir para obedecer ao quarto mandamento. Seu motivo a expôs à vingança por parte das autoridades. Ela era uma mulher de coragem indomável e não compraria sua liberdade mediante a renúncia ao sábado do Senhor. Durante o longo tempo de cárcere, Pagitt diz que alguém escreveu a ela o seguinte: "Seu constante sofrimento seria digno de elogios, caso tivesse ocorrido pela causa da verdade. Mas, sendo por causa do erro, sua retratação será mais aceitável a Deus e louvável aos homens.[10] Mas sua fé e perseverança permaneceram até que ela fosse liberta pela morte: "A Sra. Trask ficou presa por quinze ou dezesseis anos por causa de sua opinião quanto ao sábado do sétimo dia. Ao longo de todo esse período, não quis receber assistência de ninguém, por mais que precisasse, alegando que está escrito: "Mais bem-aventurado é dar do que receber". Também não pegava nada emprestado, pois está escrito: "Emprestarás a muitas gentes, porém tu não tomarás emprestado". Por isso, ela considerava uma desonra a seu cabeça, Cristo, pedir esmolas ou pegar emprestado. Sua alimentação durante a maior parte do tempo em que ficou presa, a saber, até pouco antes de sua morte, consistiu em pão e água, raízes e ervas, sem carne, vinho, nem bebida fermentada. Toda sua renda consistia em quarenta shillings por ano. O que lhe faltava para viver conseguia por meio dos outros presos, que a empregavam às vezes para realizar algum negócio para eles."[11] Pagitt, que foi contemporâneo de Trask, apresenta da seguinte forma os princípios dos sabatistas de sua época, a quem chama de traskitas: "As opiniões que eles defendiam acerca do sábado eram estas: "1. O quarto mandamento do decálogo, 'Lembra-te do dia de sábado para o santificar' [Êxodo 20], é um preceito divino, única e totalmente moral, sem conter nenhum aspecto da lei cerimonial, quer no todo, quer em parte. Por isso, sua observância semanal deve ser perpétua e continuar em vigor e virtude até o fim do mundo. "2. O sábado, ou o sétimo dia de cada semana, deve ser um eterno dia santo na igreja cristã, e a observância religiosa desse dia é obrigatória a todos debaixo da dispensação do evangelho, assim como era para os judeus antes da vinda de Cristo. "3. O domingo, ou o dia do Senhor, é um dia comum de trabalho, e se trata de superstição e adoração ao eu tratá-lo como se fosse o sábado do quarto mandamento."[12] Foi por causa dessa nobre profissão de fé que a Sra. Trask permaneceu confinada à prisão até o dia de sua morte. Pelo mesmo motivo, o Sr. Trask foi obrigado a ficar no pelourinho, e de lá foi levado aos empurrões à Prisão de Fleet, permanecendo trancado em uma miserável prisão, da qual escapou por retratação depois de suportar seus horrores por mais de um ano.[13] Utter descreve a posição do próximo ministro sabatista da seguinte maneira: "Theophilus Brabourne, instruído ministro do evangelho da igreja estatal, escreveu um livro, impresso em 1628, em que argumentou 'que o dia do Senhor não é o dia de sábado por instituição divina', mas 'que o sábado do sétimo dia está agora em vigor". Brabourne publicou outro livro em 1632, com o título A Defense of that Most Ancient and Sacred Ordinance of God's, the Sabbath Day [Defesa da Mais Antiga e Sagrada Ordenança Divina, o Dia de Sábado]."[14] Brabourne dedicou o livro ao rei Carlos I, pedindo que ele usasse sua autoridade para restaurar o antigo sábado. Mas aqueles que confiam em governantes sem dúvida se decepcionam. O Dr. Frances White, bispo de Ely, descreve a situação em seu tratado contra o sábado: "Como o tratado de Brabourne sobre o sábado foi dedicado a sua Majestade Real, e os princípios que ele usou para basear seus argumentos (todos eles comumente pregados, impressos e cridos por todo o reino) podem ter envenenado e infectado muitas pessoas com esse erro sabatista ou com qualquer outro de teor semelhante, foi do agrado e vontade do rei, nosso gracioso mestre, que um tratado fosse escrito a fim de impedir outros males e firmar seus bons súditos (que há muito têm sido confundidos com essas questões sabatistas) no velho e bom caminho da antiga e ortodoxa igreja católica. Portanto, aquilo que Sua santa Majestade ordenou, eu, seguindo a orientação de Vossa Eminência [arcebispo Laud], executei obedientemente."[15] O rei desejava, com essa ordem, derrotar não só aqueles que guardavam o dia ordenado pelo mandamento, mas também os que, seguindo a teoria do Dr. Bound, alegavam que o domingo era esse dia. Então ele reuniu o Dr. Heylyn e o bispo White para realizar esse trabalho: "Tendo em vista que o fardo era pesado demais para qualquer um suportar e que a obra precisava ser feita rapidamente, considerou-se apropriado dividir o trabalho entre duas pessoas. A parte argumentativa e acadêmica foi destinada ao instruído Dr. White, bispo de Ely na época, o qual já dera provas de sua habilidade com questões polêmicas em vários livros e debates contra os papistas. A parte histórica e prática [deveria ser escrita] por Heylyn de Westminster, que conquistara certa reputação por seus estudos dos escritores antigos."[16] Tanto a obra de White quanto a de Heylyn foram publicadas em 1635. O Dr. White, ao se dirigir àqueles que promovem a observância do domingo com base no quarto mandamento, comenta o seguinte a respeito dos argumentos de Brabourne, que mostram que o mandamento ordena o antigo sétimo dia e não o domingo: "Se vocês mantiverem os princípios particulares de vocês de que o quarto mandamento é pura e simplesmente moral, uma lei da natureza, será impossível a vocês, em inglês ou latim, solucionar as objeções de Theophilus Brabourne."[17] Mas o rei reservava mais do que simples argumentos contra Brabourne. Ele foi levado diante do arcebispo Laud e da Suprema Corte Eclesiástica da Inglaterra [Court of High Commision]. Abalado pelo destino da Sra. Trask, ele se sujeitou, por um tempo, à autoridade da igreja da Inglaterra, mas, algum tempo depois, escreveu outros livros defendendo o sétimo dia.[18] O livro do Dr. White contém esta expressiva menção à teoria do tempo indefinido: "Quanto ao tempo indefinido, ou ele nos vincula a todos os momentos, assim como uma dívida, cujo dia de pagamento não é expressamente datado, é passível de ser paga em qualquer momento, ou ele deixa de nos vincular absolutamente a qualquer tempo."[19] Utter, após mencionar Brabourne, continua: "Por volta dessa época, Philip Tandy começou a promulgar, na parte norte da Inglaterra, a mesma doutrina a respeito do sábado. Ele foi educado na igreja estatal, da qual se tornou ministro. Após mudar de opinião quanto ao modo de batismo e ao dia de descanso, abandonou essa igreja e 'se tornou alvo de muitos disparos'. Ele teve várias discussões públicas acerca de seus pontos de vista peculiares e muito fez para propagá-los. James Ockford foi outro defensor antigo, na Inglaterra, de que o sétimo dia é o sábado. Ao que tudo indica, estava bem familiarizado com os debates de que Trask e Brabourne participaram. Insatisfeito com a convicção simulada de Brabourne, escreveu um livro em defesa do ponto de vista sabatista, intitulado The Doctrine of the Fourth Commandment [A Doutrina do Quarto Mandamento]. Essa obra, publicada por volta do ano de 1642, foi queimada por ordem das autoridades da igreja estatal.[20] A célebre família Stennett produziu, por quatro gerações, uma sucessão de habilidosos ministros sabatistas. Edward Stennett, o primeiro deles, nasceu no início do século 17. Seu livro, chamado The Royal Law Contended For [A Luta em Favor da Lei Real], foi publicado pela primeira vez em Londres, no ano de 1658. "Ele era um ministro capaz e dedicado, mas, por divergir da igreja estatal, foi privado dos meios necessários para seu sustento". "Sofreu durante grande parte da perseguição à qual os dissidentes estavam expostos nessa época, em especial por sua fiel adesão à causa do sábado. Por causa dessa verdade, ele sofreu tribulação, proveniente não só de quem estava no poder, que o manteve por muito tempo na prisão, mas também de irmãos dissidentes hostis que se esforçaram para destruir sua influência e arruinar sua causa". Em 1664, ele publicou uma obra chamada The Seventh Day is the Sabbath of the Lord [O Sétimo Dia é o Sábado do Senhor]."21 Em 1671, William Sellers escreveu uma obra em defesa do sétimo dia, dando uma resposta ao Dr. Owen. Cox descreve da seguinte forma o objetivo do livro: "Em oposição à ideia de que algum dia em sete é tudo o que o mandamento exige que seja colocado à parte, o autor defende a obrigação do sétimo dia como o sábado com base no fato de 'o próprio Deus, de maneira direta na letra do texto, chamar o sétimo dia de dia de sábado, dando os dois nomes a um só e o mesmo dia, conforme fica claro para todo aquele que lê os mandamentos.'"[22] Um dos ministros sabatistas mais proeminentes da segunda metade do século 17 foi Francis Bampfield. Originalmente, ele foi membro do clero da Igreja Anglicana. Crosby, historiador batista, o descreve assim: "Profundamente insatisfeito em sua consciência com as condições de conformidade, ele se despediu de sua triste e chorosa congregação em [...] 1662. Pouco tempo depois, foi preso por adorar a Deus apenas com a própria família. Sua lealdade inabalável ao rei foi esquecida tão depressa [...] que ele foi detido com mais frequência e exposto a maiores durezas, por sua não conformidade, do que a maioria dos outros dissidentes."[23] Acerca de sua prisão, Neale afirma: "Após o ato de uniformidade, ele continuou pregando em particular sempre que tinha oportunidade, até ficar preso por cinco dias e noites, com 25 de seus ouvintes, em uma cela [...], na qual passaram o tempo em atividades religiosas. Algum tempo depois, ele foi solto. Logo após o incidente, foi apreendido de novo e permaneceu por nove anos na cadeia de Dorchester, embora demonstrasse lealdade inabalável ao rei."[24] Enquanto estava preso, pregou quase todos os dias e até levantou uma igreja dentro da prisão. Ao ser liberto, não cessou de pregar em nome de Jesus. Após sua libertação, foi para Londres, onde pregou com grande sucesso.[25] Neale conta sobre seus esforços nessa cidade: "Enquanto morava em Londres, fundou, em Pinner's Hall, uma igreja com os princípios dos batistas sabatistas, princípios que ele defendia zelosamente. Era excelente pregador e homem extremamente piedoso.[26] Em 17 de fevereiro de 1682, foi detido enquanto pregava; e no dia 28 de março, foi condenado à prisão perpétua em Newgate, sendo obrigado a abdicar de todos os seus bens. Por causa das dificuldades que sofreu na prisão, morreu em 16 de fevereiro de 1683.[27] Wood nos conta: "Bampfield morreu na dita prisão de Newgate [...] aos 70 anos de idade. Seu corpo foi [...] seguido por grande grupo de pessoas facciosas e dissidentes até a sepultura".[28] Crosby diz a seu respeito: "Todos os que o conheceram reconhecem que era um homem muito piedoso, e é muito provável que sua erudição e bom senso também teriam uma boa reputação, não fosse por sua opinião em duas questões, a saber, que não se deveria batizar bebês e que o sábado judaico ainda devia ser guardado."[29] Bampfield publicou duas obras a favor do sétimo dia, uma em 1672 e a outra em 1677. Na primeira delas, ele apresenta da seguinte forma a doutrina do sábado: "A lei do sétimo dia foi dada antes da proclamação da lei no Sinai; ela existe desde a criação, sendo dada a Adão [...] e, por meio dele, ao mundo inteiro. (Êxodo 16:23; Gênesis 2:3) [...] A obediência do Senhor Jesus Cristo a essa quarta palavra, ao observar, em Sua vida terrestre, o sétimo dia como o sábado semanal, [....] e nenhum outro dia da semana para esse fim, faz parte daquela justiça perfeita que todo cristão sensato deve aplicar a si mesmo a fim de ser justificado aos olhos de Deus -- e toda pessoa que passa por essa experiência deve imitar a Cristo em cada ato do Salvador de obediência às dez palavras."[30] Seu irmão, Thomas Bampfield, que fora orador em um dos parlamentos de Cromwell, também escreveu a favor da observância do sétimo dia e foi preso, por causa de seus princípios religiosos, na prisão de Ilchester.[31] Mais ou menos na época do primeiro encarceramento de Bampfield, levantou-se grande perseguição contra os guardadores do sábado em Londres. Crosby testemunha: "Por volta desse período [1661 d.C.], no momento em que uma congregação de batistas que defendia o sétimo dia como o sábado estava reunida em seu local de encontro na alameda Bull-Stake, com as portas abertas, por volta das 15h [19 de outubro], enquanto John James pregava, um meretíssimo juiz, o Dr. Chard, juntamente com o Sr. Wood, o prefeito, entraram no recinto. Wood ordenou, em nome do rei, que ele se calasse e descesse, por ter proferido palavras de traição contra o soberano. Mas James, dando pouca ou nenhuma atenção àquilo, prosseguiu. O prefeito se aproximou dele no meio da congregação e ordenou mais uma vez, em nome do rei, que ele descesse, caso contrário ele o arrastaria para baixo. Diante disso, a confusão se tornou tão grande que James não conseguiu continuar.[32] Depois que o oficial o tirou do púlpito, levou-o até o tribunal cercado por uma forte escolta. Utter dá prosseguimento à narrativa: "O Sr. James foi examinado e encaminhado à prisão de Newgate, após o relato de várias testemunhas falsas que o acusaram de proferir palavras de traição contra o rei. Seu julgamento ocorreu cerca de um mês depois, durante o qual ele se portou de tal modo que granjeou muita simpatia. Mesmo assim, porém, foi sentenciado à forca, ao estripamento e ao esquartejamento.[33] Essa terrível sentença não o desanimou em nada. Ele disse calmamente: 'Bendito seja Deus, que justifica aqueles que o homem condena'. Enquanto esteve preso, sentenciado à morte, foi visitado por diversas pessoas distintas, que se sentiram muito tocadas por sua piedade e resignação e se ofereceram para usar sua influência a fim de garantir seu perdão. Mas ele parecia ter pouca esperança no sucesso desses. A Sra. James, aconselhada por amigos, apresentou duas petições ao rei [Carlos II], alegando a inocência do esposo, o caráter daqueles que testemunharam contra ele e suplicando a sua majestade que lhe concedesse o perdão. Nos dois casos, foi repelida com zombaria e escárnio. No cadafalso, no dia de sua execução, James se dirigiu aos presentes de maneira muito nobre e emocionante. Após terminar o discurso, ele se ajoelhou, agradeceu a Deus as misericórdias da aliança e sua inocência consciente. Orou por aqueles que testemunharam contra ele, pelo algoz, pelo povo de Deus, pelo fim das divisões, pela volta de Cristo, pelos espectadores e por si próprio, para que desfrutasse do sentimento do favor e da presença de Deus e do privilégio de entrar na glória. Quando terminou, o algoz disse: 'O Senhor receba sua alma', ao que James respondeu: "Obrigado". Um amigo, ao lhe mencionar que aquele era um dia feliz, ouviu dele: 'Eu louvo a Deus por ser um dia feliz'. Após agradecer ao xerife a cortesia, disse: 'Pai, em Tuas mãos entrego meu espírito'. [...] Depois de morto, seu coração foi arrancado e queimado, os pedaços de seu corpo esquartejado foram colocados nas portas da cidade, e sua cabeça foi exibida em Whitechapel, em um poste em frente à alameda na qual ficava sua casa de oração."[34] Essa era a experiência dos guardadores do sábado ingleses no século 17. O preço pago pela obediência ao quarto mandamento naqueles tempos era muito alto. As leis da Inglaterra naquele período eram muito opressoras para com todos os dissidentes, e eram cumpridas com toda rigidez contra os guardadores do sábado. Mas Deus levantou pessoas capazes, distintas por sua piedade, para defender Sua verdade em meio a esses tempos turbulentos, e, quando necessário, selar seu testemunho com o próprio sangue. No século 17, onze igrejas sabatistas prosperaram na Inglaterra, ao mesmo tempo em que vários guardadores do sábado podiam ser encontrados espalhados por diversas partes do reino. Hoje [segunda metade do século 19], existem apenas três dessas igrejas! E apenas alguns remanescentes ainda permanecem entre elas! Qual seria o motivo desse fato tão doloroso? Não é porque seus adversários conseguiram refutar sua doutrina, pois as obras divergentes de ambos os lados ainda existem e falam por si mesmas. Não é porque lhes faltavam pessoas espirituais e instruídas, pois Deus lhes concedeu indivíduos assim, sobretudo no século 17. Também não é porque tivesse surgido fanatismo entre eles, trazendo desgraça a sua causa, uma vez que não há registro nenhum desse tipo. Eles foram cruelmente perseguidos, mas o período de perseguição foi o de maior prosperidade para eles. Assim como a sarça de Moisés, eles permaneceram sem se consumir em meio ao fogo ardente. O declínio da causa do sábado na Inglaterra não se deve a nenhum desses elementos. O sábado foi ferido em casa de amigos. Depois de um tempo, os sabatistas ingleses assumiram a responsabilidade de fazer com que o sábado não tivesse qualquer importância prática, e de tratar sua violação como se não fosse uma transgressão muito séria da lei de Deus. Sem dúvida, esperavam ganhar pessoas para Cristo por meio dessa conduta, mas, em vez disso, simplesmente rebaixaram o padrão da verdade divina até o pó. Os ministros guardadores do sábado assumiram o cuidado pastoral de igrejas que guardavam o primeiro dia. Em alguns casos, essa era a única responsabilidade deles, e, em outros, além dessas, também supervisionavam igrejas sabatistas. O resultado não deve surpreender a ninguém. Como esses pastores e essas igrejas guardadoras do sábado diziam a todos, por meio de seu modo de agir, que o quarto mandamento podia ser quebrado com impunidade, as pessoas levaram a sério suas palavras. Crosby, historiador que defende o primeiro dia, coloca o assunto sob uma luz correta: "Se o sétimo dia deve ser observado como o sábado cristão, então todas as congrega- ções que guardam o primeiro dia deveriam ser consideradas transgressoras do sábado. [...] Deixarei que esses cavalheiros da oposição lidem com seus próprios pontos de vista e justifiquem a prática de se tornarem pastores de um rebanho que, segundo a consciência e a crença deles, está transgredindo o sábado.[35] Sem dúvida, tem havido nobres exceções a esse modo de agir. Contudo, a grande maioria dos sabatistas ingleses não tem cumprido com fidelidade, por muitos anos, o elevado encargo que lhes foi confiado. Notas: 1. Chambers, Cyclopedia, verbete "Sabbath", vol. 3, p. 402, Londres, 1867. 2. Gilfillan, Sabbath, p. 60. 3. Observation of the Christian Sabbath, p. 2. 4. Ver o capítulo 15 desta obra. 5. Gilfillan, Sabbath, p. 88. 6. Ibid. 7. Pagitt, Heresiography, p. 209, Londres, 1661. 8. Ibid. 9. Idem, p. 210. 10. Idem, p. 164. 11. Idem, p. 196-197. 12. Idem, p. 161. 13. Manual of the Seventh-day Baptists, p. 17-18; Heylyn, Hist. of the Sab., parte 2, cap. 8, seção 10; Gilfillan, Sabbath, p. 88-89; Cox, Sabbath Literature, vol. 1, p. 152-153. 14. Manual of the S. D. Baptists, p. 18. 15. Francis White, Treatise of the Sabbath Day, citado por Cox, Sab. Lit., vol. 1, p. 167. 16. Heylyn, Cyprianus Angelicus, citado por Cox, vol. 1, p. 173. 17. Treatise of the Sabbath Day, p. 110. 18. Hessey, Bampton Lectures, p. 373-374; Cox, Sab. Lit., vol. 2, p. 6; A. H. Lewis, Sabbath and Sunday, p. 178-184. Essa obra contém muitas informações valiosas acerca dos guardadores do sábado ingleses e norte-americanos. 19. Treatise of the Sabbath Day, p. 73. 20. Manual of the S. D. Baptists, p. 19-20. 21. Cox, vol. 1, p. 268; vol. 2, p. 10. 22. Idem, vol. 2, p. 35. 23. Hist. English Baptists, vol. 1, p. 365-366. 24. Hist. Puritans, parte 2, cap. 10. 25. Crosby, Hist. Eng. Baptists, vol. 1, p. 366-367. 26. Hist. Puritans, parte 2, cap. 10. 27. Calamy, Ejected Ministers, vol. 2, p. 258-259; Lewis, Sabbath and Sunday, p. 188-193. 28. Wood, Athenae Oxonienses, vol. 4, p. 123. 29. Crosby, vol. 1, p. 367. 30. Judgment for the Observation of the Jewish or Seventh-day Sabbath, p. 6-8, 1672. 31. Calamy, vol. 2, p. 260. 32. Crosby, vol. 2, p. 165-171. 33. Quando lhe perguntaram que razões ele teria para apresentar para que a sentença não fosse pronunciada, ele disse que deixaria com eles estes textos bíblicos: Jeremias 26:14-15; Salmos 116:15. 34. Manual, etc., p. 21-23. 35. Crosby, Hist. Eng. Bapt., vol. 3, p. 138-139. Capítulo 27 O Sábado na América do Norte Aprimeira igreja sabatista da América do Norte surgiu em Newport, Rhode Island. O primeiro guardador do sábado nos Estados Unidos foi Stephen Mumford, que partiu de Londres três anos depois do martírio de John James e 44 anos após a chegada dos pais peregrinos em Plymouth. Ao que parece, Mumford foi enviado como missionário pelos guardadores do sábado ingleses.[1] Isaac Backus, historiador dos primeiros batistas da Nova Inglaterra, apresenta o registro a seguir: "Stephen Mumford veio de Londres em 1664, trazendo consigo a opinião de que todos os dez mandamentos, da maneira como foram entregues no monte Sinai, eram morais e imutáveis. Ensinava também que foi o poder do anticristo, que cuidaria em mudar os tempos e as leis, que transferiu o dia de descanso do sétimo dia para o primeiro dia da semana. Vários membros da primeira igreja [batista] de Newport aceitaram essa opinião, mas continuaram na igreja por alguns anos, até que dois homens e suas esposas que haviam aderido a esse ponto de vista voltaram a guardar o primeiro dia."[2] Ao chegar, Mumford começou a trabalhar com fervor para converter as pessoas à observância do quarto mandamento, conforme inferimos pelo relato a seguir: "Stephen Mumford, o primeiro guardador do sábado na América do Norte, chegou de Londres em 1664. Tacy Hubbard começou a guardar o sábado em 11 de março de 1665. Samuel Hubbard começou em 1º de abril de 1665. Rachel Langworthy, em 15 de janeiro de 1666. Roger Baxter, em 15 de abril de 1666 e William Hiscox, em 28 de abril do mesmo ano. Esses foram os primeiros guardadores do sábado dos Estados Unidos. Surgiu uma controvérsia entre eles e os membros da igreja que durou vários anos. Eles desejavam manter o vínculo com a igreja, mas, por fim, foram obrigados a se retirar, para que pudessem desfrutar e guardar em paz o santo dia de Deus."[3] [Baxter é grafado Baster no Memorial dos Batistas do Sétimo Dia]. Embora Mumford ensinasse a verdade fielmente, parece que nutria as mesmas ideias dos sabatistas ingleses, de que era possível guardadores do primeiro e do sétimo dia permanecerem juntos na comunhão da mesma igreja. Caso os defensores do primeiro dia tivessem a mesma opinião, a luz do sábado teria se extinguido dentro de poucos anos, conforme prova claramente a história dos guardadores do sábado ingleses. Pela providência de Deus, porém, o perigo foi evitado pela oposição que esses observadores dos mandamentos enfrentaram. Além das pessoas acima citadas, quatro outros aceitaram o sábado em 1666, mas renunciaram o mesmo em 1668. Estes quatro também eram membros da primeira igreja batista de Newport, a qual guardava o domingo. Embora os sabatistas que mantiveram sua integridade considerassem lícito comungar com os outros membros da igreja que eram plenamente convictos quanto à observância do primeiro dia, eles tinham, todavia, outro sentimento em relação àqueles que, após aceitar e guardar o sábado por um tempo, haviam se apostatado. Essas pessoas "escreviam e falavam contra o sábado, afligindo os guardadores do sábado a tal ponto que estes não conseguiam se assentar à mesa do Senhor com eles, nem com o restante da igreja, por causa deles". Mas como os sabatistas eram membros de uma igreja que guardava o primeiro dia e "não tinham poder para lidar com os apóstatas por conta própria, sem a ajuda da igreja", "viram-se impedidos de resolver a situação, sendo apenas membros leigos. Por isso, concluíram que não deveriam levar o caso para o julgamento da igreja, a saber, o caso referente àqueles que haviam se afastado da observância do sétimo dia, pois sabiam que a igreja tinha uma opinião contrária". Pediram então o conselho dos guardadores do sábado de Londres e, nesse meio tempo, abstiveram-se da comunhão com a igreja. O Dr. Edward Stennet lhes escreveu em nome dos guardadores do sábado londrinos: "Se a igreja mantiver comunhão com esses apóstatas da verdade, vocês devem expressar, então, o desejo de serem legitimamente removidos da igreja; se esta se recusar a fazê-lo, vocês devem se retirar por conta própria".[4] Todavia, eles decidiram não sair da igreja, mas informaram à "igreja em público que não se sentiam confortáveis em participar da comunhão juntamente com as quatro pessoas que haviam pecado". "E assim, por vários meses, eles prosseguiram sofrendo pouca ou nenhuma ofensa da parte da igreja. Depois disso, os irmãos da liderança ou do pastorado começaram a se posicionar acerca dos dez preceitos". O Sr. Tory "declarou que a lei foi abolida". O Sr. Luker e o Sr. Clarke "assumiram para si a obra de pregar a não observância da lei, dia após dia". Mas os guardadores do sábado responderam "que os dez preceitos continuavam tão santos, justos, bons e espirituais quanto antes". O Sr. Tory "com algumas palavras desagradáveis, disse 'que eles só falavam do quarto preceito', ao que responderam 'que todos os dez preceitos tinham força igual e que eles não defendiam a um excluindo os outros'. E, por vários anos, continuaram a frequentar a igreja com uma comunhão dividida".[5] Bailey conta qual foi o resultado: "Quando mudaram de opinião e prática [em relação ao sábado bíblico], eles não tinham a menor intenção de fundar uma igreja com essa característica distintiva. Deus, evidentemente, tinha uma missão diferente para eles, e os levou a ela por meio de várias provações que envolveram perseguição. Eles foram forçados a deixar a comunhão da igreja batista ou abandonar o sábado do Senhor seu Deus."[6] "Eles saíram da igreja batista em 7 de dezembro de 1671."[7] "No dia 23 de dezembro, apenas 16 dias depois de deixarem a igreja batista, eles, reunidos, concordaram em organizar sua própria denominação religiosa."[8] Essa foi a origem da primeira igreja guardadora do sábado na América do Norte.[9] A segunda igreja sabatista deve sua origem nesta circunstância: por volta de 1700, Edmund Dunham, de Piscataway, New Jersey, repreendeu uma pessoa por trabalhar no domingo. Foi-lhe perguntado, então, qual era sua autoridade bíblica para a reprovação. Ao pesquisar o assunto, ele ficou convencido de que o sétimo dia é o único dia de descanso semanal na Bíblia, e, assim, começou a guardá-lo. "Pouco depois, outros seguiram seu exemplo, e, em 1707, foi organizada uma igreja batista do sétimo dia com 17 membros. Edmund Dunham foi escolhido como pastor e enviado para Rhode Island a fim de ser ordenado.[10] A Associação Geral da Igreja Batista do Sétimo Dia foi organizada em 1802. Em sua primeira assembleia anual, a denominação contava com oito igrejas organizadas, nove ministros ordenados e 1.130 membros.[11] A Associação foi organizada apenas com o poder de aconselhar, sendo que cada igreja manteve sua independência em questões de administração eclesiástica e de disciplina.[12] Hoje [1873], a Associação abrange cerca de 80 igrejas e oito mil membros. Elas podem ser encontradas na maioria dos estados do norte e oeste dos Estados Unidos, e são divididas em cinco associações regionais, que não possuem poder disciplinar ou legislativo sobre as igrejas que as compõem. Pertencem à denominação cinco escolas de Ensino Médio, uma faculdade "e uma universidade, com os seguintes departamentos em funcionamento: acadêmico, estudantil, mecânico e teológico".[13] A sociedade missionária dos batistas do sétimo dia sustenta vários missionários dentro do país, que trabalham principalmente no extremo oeste e sul do campo em que a denominação se faz presente. Nos últimos anos, alcançaram sucesso considerável nessa obra. A igreja também conta com um posto missionário em Xangai, China, e uma pequena igreja de cristãos fiéis ali. A American Sabbath Tract Society [Sociedade Americana de Folhetos sobre o Sábado] é a casa publicadora da denominação. Sua sede fica em Alfred Center, Nova York. Ela publica o Sabbath Recorder [Registrador do Sábado], periódico dos Batistas do Sétimo Dia, além de uma série de obras valiosas acerca do sábado e da lei de Deus. Durante os 200 anos que se passaram desde a organização da primeira igreja sabatista na América do Norte, Deus tem levantado, dentre esse povo, pessoas de talento extraordinário e forte valor moral. Ele também, de modo providencial, tem chamado a atenção para o legado sagrado que confiou há tanto tempo aos batistas do sétimo dia, que se mostram lentos em perceber sua imensa importância. Dentre os conversos ao sábado por meio da atuação desse povo, é digno de honrosa menção o nome de J. W. Morton. Em 1847, ele foi enviado como missionário, pelos presbiterianos reformados, à ilha do Haiti. Lá, entrou em contato com publicações sabatistas e, depois de dedicada pesquisa, entendeu que o sétimo dia é o sábado do Senhor. Sendo um homem honesto, obedeceu de imediato àquilo que percebeu ser a verdade e, ao voltar para casa a fim de ser julgado por sua heresia, foi sumariamente excluído da igreja presbiteriana reformada, sem ter o direito de declarar os motivos que orientaram sua conduta. Ele deixou uma obra valiosa para o mundo, intitulada Vindication of the True Sabbath [Reivindicação do Verdadeiro Sábado], na qual ele relata sua experiência e expressa, com vigor e clareza, suas razões para observar o sétimo dia. Não faltam aos batistas do sétimo dia homens cultos e talentosos. Eles possuem amplos recursos para sustentar a causa de Deus. Embora, no passado, não tenham reconhecido plenamente sua responsabilidade, perante toda a raça humana, pela grande verdade que Deus confiou a seu encargo, há motivos para crer que, agora, até certo ponto, estão despertando para essa grande dívida.[14] Existe também, no estado da Pensilvânia, um pequeno grupo de batistas do sétimo dia alemães, residentes nos condados de Lancaster, York, Franklin e Bedford, bem como na parte central e ocidental do estado. Eles surgiram em 1728, com base nos ensinos do alemão Conrad Beissel. Praticam a trina imersão, o lava-pés e observam a comunhão aberta. Incentivam o celibato, mas não o impõem a ninguém. Até aqueles que escolhem esse estilo de vida têm liberdade para se casar a qualquer momento que decidirem fazê-lo. Eles fundaram e mantiveram com sucesso uma escola sabatina em Ephrata, sua sede, quarenta anos antes de Robert Raikes introduzir o sistema de escolas dominicais. Esse povo sofreu forte perseguição por guardar o sétimo dia, pois as leis da Pensilvânia são especialmente opressoras em relação aos sabatistas.[15] Os batistas do sétimo dia alemães não pertencem à Associação Geral da Igreja Batista do Sétimo Dia. Já mencionamos que os guardadores do sábado são numerosos na Rússia, Polônia e Turquia. Encontramos a declaração a seguir a respeito dos guardadores do sábado na Hungria: "Uma congregação de cristãos do sétimo dia na Hungria não foi tolerada pelas leis e, por isso, aderiu ao judaísmo, a fim de sua existência ser permitida em conexão com uma das 'religiões aceitas'."[16] Provavelmente, o que aconteceu foi o seguinte: como as leis do império austro-húngaro eram contrárias a qualquer grupo religioso que não pertencesse a alguma das denominações ou ordens toleradas, esses "cristãos do sétimo dia", não sendo tolerados usando o próprio nome, garantiram o privilégio de guardar o sétimo dia permitindo que sua doutrina fosse classificada, pelas autoridades civis, sob o guarda-chuva do judaísmo. Dessa forma, passaram a desfrutar da tolerância concedida às "religiões aceitas". Não estamos dizendo que isso foi correto, mesmo tendo sido feito por razões técnicas, mas o fato revela a que ponto eles estavam dispostos a ir para guardar o sábado do sétimo dia. Não há motivo nenhum para suspeitarmos que tenham abandonado a crença em Cristo. Também somos informados da existência de guardadores do sábado no norte da Ásia: "Há uma seita de cristãos gregos na Sibéria que guarda o sábado judaico (o sétimo dia). Tais grupos já existem nos Estados Unidos, na Alemanha e cremos que na Inglaterra também.[17] O sábado chamou a atenção do povo do advento pela primeira vez em Washington, New Hampshire. Uma fiel irmã batista do sétimo dia, a Sra. Rachel D. Preston, do Estado de Nova York, ao se mudar para esse local, trouxe consigo o sábado do Senhor. Lá ela se interessou pela doutrina de que o glorioso advento do Salvador estava próximo. Ao ser instruída nesse assunto pelo povo do advento, ela os ensinou sobre os mandamentos de Deus, e, desde 1844, praticamente toda a igreja dessa localidade, formada por cerca de 40 pessoas, passou a guardar o sábado do Senhor.[18] Dessa forma, o mais antigo grupo de guardadores do sábado entre os adventistas do sétimo dia surgiu em Washington, New Hampshire. Seu número atual é pequeno, pois foi reduzido pela emigração e morte, mas ainda existe ali um pequeno grupo que dá testemunho dessa antiga verdade bíblica. A partir daí, vários ministros adventistas aceitaram a verdade do sábado em 1844. Um deles foi o pastor T. M. Preble, que teve a honra de ser o primeiro a levar essa grande verdade aos adventistas por meio da página impressa. Seu artigo data de 13 de fevereiro de 1845. Ele apresentou brevemente os argumentos em favor do sábado bíblico e mostrou que o dia não fora mudado pelo Salvador, mas, sim, pela grande apostasia. Então ele afirmou: "Assim, vemos o cumprimento de Daniel 7:25, com o chifre pequeno mudando 'os tempos e a lei'. Portanto, parece-me que todos aqueles que guardam o primeiro dia como se fosse o sábado, são guardadores do domingo papal e transgressores do sábado divino."[19] Dentro de poucos meses, muitas pessoas começaram a guardar o sábado em resultado da luz assim lançada em seu caminho. O pastor J. B. Cook, pregador e escritor de grande talento, foi um desses primeiros conversos ao sábado. Nessa época, os pastores Preble e Cook desfrutavam do pleno vigor de suas faculdades mentais e possuíam talento e reputação de piedade, o que lhes conferia grande influência em favor do sábado entre os adventistas. Esses homens foram chamados pela providência de Deus a fim de ocupar um lugar importante na reforma do sábado. Ambos, porém, embora pregassem e escrevessem em prol do sábado, cometeram o erro fatal de não atribuir a ele importância prática. Eles pareciam ter a mesma comunhão tanto com os que rejeitavam o sábado quanto com os que o observavam. Tal procedimento levou a seu resultado natural. Após dois ou três anos guardando o sábado dessa maneira, os dois homens apostataram dessa prática e, a partir de então, usaram toda a influência que tinham para combater o quarto mandamento. A maioria dos que aceitaram o sábado com base nos esforços deles não se impressionaram o suficiente com sua importância, a ponto de se firmarem em suas fortes evidências. Assim, depois de um curto período, deixaram de lado sua guarda. Mas os eventos haviam sido suficientes para despertar amarga oposição ao sábado por parte de muitos adventistas, e para criar argumentos inteligentes e plausíveis, que seriam usados pelas pessoas a fim de provar que Deus aboliu Sua própria lei sagrada. Essa foi a consequência de suas ações, e essa era a situação quando rejeitaram o sábado. Contudo, o resultado de seu modo de agir ensinou uma lição valiosa aos adventistas guardadores do sábado, que jamais foi esquecida. Eles aprenderam que o quarto mandamento deve ser tratado como parte da lei moral, para que os homens sejam conduzidos a sua sagrada observância. O primeiro artigo do pastor Preble em prol do sábado foi o instrumento que chamou a atenção de nosso respeitável irmão José Bates para essa instituição divina. Ele logo se convenceu da obrigatoriedade do sábado e começou a observá-lo de imediato. Bates havia desempenhado papel proeminente no movimento do advento nos anos de 1843 e 1844; e, agora, com zelo abnegado, tomou a desprezada verdade do sábado para apresentá-la a todos os seus irmãos. Ele não o fez pela metade, como Preble e Cook, mas com toda seriedade e totalmente consciente da importância do assunto. O tema do santuário celestial também começou a interessar muitos adventistas por volta dessa época, sobretudo Bates. Ele foi um dos primeiros a entender que o móvel central do santuário é a arca da aliança. Também chamou a atenção para a proclamação do terceiro anjo sobre os mandamentos de Deus. Ele vestiu a armadura para tirá-la somente quando sua obra fosse terminada. Bates tem sido um instrumento para conduzir muitos à guarda dos mandamentos de Deus e à fé de Jesus, e poucos dos que aceitaram o sábado com base em seus ensinos o renegaram.[20] Alguns meses depois de Bates, nosso estimado e eficiente irmão Tiago White também aceitou o sábado. Ele já havia trabalhado com muito sucesso no grande movimento adventista e aderiu de coração à obra da reforma do sábado. Unindo-se a Bates na proclamação da doutrina do advento e do sábado, ambas inseparavelmente relacionadas com o tema do santuário e da mensagem do terceiro anjo, ele tem alcançado, com a bênção de Deus, grandes resultados a favor do sábado. O interesse dos adventistas do sétimo dia em publicações se originou por seu intermédio. Ele começou essa obra em 1849, sem recursos e com apenas poucos amigos, mas com muita labuta, sacrifício e zeloso esmero. Com a bênção divina sobre seus esforços, ele foi usado para o estabelecimento de um eficiente escritório de publicações, e para a disseminação de muitas obras importantes em todo nosso país e, até certo ponto, em outras nações também. A publicação da Advent Review and Herald of the Sabbath [Revista do Advento e Arauto do Sábado], o periódico dos adventistas do sétimo dia, foi iniciada por ele em 1850. Durante a maior parte da existência da publicadora, Tiago White tem servido como um dos editores; e, nos seus primeiros anos de funcionamento, ele era não somente o diretor, mas o único editor. Durante todos esses anos, ele também tem trabalhado com vigor como ministro do evangelho de Cristo. Quando as necessidades da causa exigiram uma ampliação de capital e operações mais amplas, foi criada, na forma de uma sociedade anônima, uma associação na cidade de Battle Creek, Michigan, em 3 de maio de 1861, com o nome de Associação de Publicações Adventista do Sétimo Dia. Essa associação possui três casas publicadoras espaçosas, com maquinário, prelos potentes e todo o equipamento necessário para um amplo negócio de publicações. Há cerca de 50 pessoas regularmente empregadas nessa obra de publicação. A associação conta com um capital aproximado de 70 mil dólares. Sob os cuidados de Deus, ela deve sua prosperidade à administra- ção prudente e ao vigor incansável de Tiago White. Atualmente (em novembro de 1873), a Advent Review tem uma circulação de cinco mil exemplares. O periódico mensal Youth's Instructor [Instrutor da Juventude], destinado aos filhos dos adventistas guardadores do sábado, começou a ser publicado em 1852, e hoje conta com uma circulação de quase cinco mil exemplares. O periódico mensal em dinamarquês Advent Tidende tem circulação de 800 exemplares por mês e beneficia aqueles que falam dinamarquês e norueguês, uma vez que um número considerável de pessoas falantes desses idiomas aceitou o sábado. Os adventistas do sétimo dia têm grande interesse pelas questões de higiene e das leis de saúde, e fundaram um Instituto de Saúde em Battle Creek, Michigan, que publica o periódico mensal Health Reformer [Reformador da Saúde], em forma de revista, com quase cinco mil exemplares em circulação. Diversas publicações sobre profecias, os sinais dos tempos, a volta de Cristo, o sábado, a lei de Deus, o santuário, etc. foram impressas ao longo dos últimos 20 anos e alcançaram ampla circulação, reunindo, no total, muitos milhões de páginas. As necessidades financeiras regulares da causa são supridas por um método de coleta conhecido como benevolência sistemática. Por meio desse sistema, é proposto que cada amigo da causa contribua com determinada soma semanal, proporcional aos bens que possui. As doa- ções, porém, não são compulsórias. Dessa maneira, todos carregam o fardo, de forma que ele não se torna pesado para ninguém. E os recursos necessários para a obra chegam com constância à tesouraria das várias igrejas e, por fim, das Associações estaduais. Um acerto de contas é feito todos os anos nas Associações estaduais, em que os trabalhos, receitas e gastos de cada pastor são analisados com todo cuidado. Assim, ninguém tem permissão para desperdiçar recursos, e também não se permite que nenhum daqueles reconhecidos como tendo sido chamados por Deus ao ministério sofra necessidades. As igrejas mantêm suas reuniões, na maior parte do tempo, sem o auxílio dos pastores. Elas conseguem os recursos para sustentar os servos de Cristo, mas solicitam que eles dediquem seu tempo e esforços principalmente para salvar aqueles que ainda não têm a luz dessas importantes verdades brilhando em seu caminho. Assim, eles vão por toda parte pregando a Palavra de Deus, à medida que Sua providência lhes guia o caminho. Durante os meses de verão, a obra em novos campos é levada adiante, principalmente por meio de grandes tendas, que permitem que o pregador tenha um local apropriado para adoração onde quer que ache proveitoso trabalhar. Os adventistas do sétimo dia contam com 13 Associações estaduais, que se reúnem anualmente nos respectivos Estados. São elas: a Associação do Maine, Vermont, Nova Inglaterra, Nova York e Pensilvânia, Ohio, Michigan, Indiana, Illinois, Wisconsin, Minnesota, Iowa, Missouri e Kansas e a da Califórnia. Cada Associação deve atender às necessidades locais da causa. Há também uma Associação Geral, que se reúne todos os anos, composta por delegados das Associações estaduais. A Associação Geral faz uma supervisão geral da obra em todas as Associações estaduais, enviando obreiros para as mais carentes, tanto quanto possível, e reunindo toda a força do corpo de crentes para o cumprimento da obra. Ela também cuida do trabalho missionário nos Estados que ainda não contam com uma Associação organizada. Cerca de 50 pastores se dedicam em tempo integral à obra do evangelho. Há também um número considerável que prega durante parte do tempo e dedica o restante ao trabalho secular. Há cerca de seis mil membros nas várias Associações. Mas este povo está tão espalhado (pois são encontrados em todos os Estados do norte e em vários do sul), que uma grande quantidade não tem conexão com a organização da igreja. Eles são formados por famílias isoladas e espalhadas por toda parte, desde o Maine até a Califórnia e Oregon. Em muitos casos, os periódicos Review e Instructor são os únicos pregadores de sua fé a que eles têm acesso. As questões que mais interessam esse povo são o cumprimento das profecias, a segunda vinda pessoal do Salvador como um evento agora muito próximo, a imortalidade somente por intermédio de Cristo, a mudança de coração por meio da obra do Espírito Santo, a observância do sábado do quarto mandamento, a divindade e a obra mediadora de Cristo e o desenvolvimento de um caráter santo pela obediência à santa e perfeita lei de Deus.[21] São muito cuidadosos com a ordenança do batismo, crendo não somente que ela exige o sepultamento no túmulo das águas, mas que até mesmo essa forma de batismo é falha se administrada àqueles que quebram um dos dez mandamentos. Também acreditam que a orientação de nosso Senhor em João 13 deve ser observada junto com a ceia. Eles ensinam que os dons do Espírito citados em 1 Coríntios 12 e Efésios 4 foram criados para permanecer na igreja até o fim dos tempos. Acreditam que tais dons se perderam em consequência da mesma apostasia que mudou o sábado. Creem também que, na restauração final dos mandamentos por meio da obra do terceiro anjo, os dons do Espírito de Deus também serão restaurados. Por isso, afirma-se que o remanescente da igreja, ou a última geração de seus membros, "guarda os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus". (Apocalipse 12:17; 14:12) E o anjo de Deus explica isso dizendo que "o testemunho de Jesus é o espírito de profecia". (Apocalipse 19:10) Por isso, o espírito de profecia ocupa um lugar distinto, a ele designado, na obra final da reforma do sábado. Essas são suas crenças a respeito dessa parte das Escrituras. E, desde o princípio, sua história tem sido marcada pela influência desse dom sagrado. Enfrentando forte oposição, o povo conhecido como adventistas do sétimo dia tem se levantado para dar testemunho em favor do sábado do Senhor. Seus membros se depararam com perigos provenientes de inimigos declarados e de falsos irmãos, mas até o momento eles vêm superando as dificuldades do caminho e reunindo forças uns com os outros para o conflito a sua frente. Há uma obra específica que esperam realizar: a de preparar um povo para o advento do Senhor. É importante fazer uma menção honrosa aos adventistas do sétimo dia da Suíça. Eles primeiramente aprenderam essas preciosas verdades pelo ensino de M. B. Czechowski, que há alguns anos os instruiu nos mandamentos de Deus e na fé de Jesus. Desde que o trabalho de Czechowski no meio deles cessou, Deus lhes tem dado forças para permanecerem firmes na verdade, e tem aumentado o número de crentes, totalizando cerca de 60 pessoas. Eles sentem no coração o desejo de obedecer à verdade e de se sacrificar para seu avanço. Há também alguns indivíduos que seguem essa fé na Itália, Alemanha e Dinamarca. Às vezes, a observância do sábado é defendida por meio do argumento de que o ser humano necessita de um dia de descanso e envelhecerá prematuramente se trabalhar sete dias por semana, o que é absolutamente verdade. Ela também tem sido defendida com base no raciocínio de que Deus reserva bênçãos materiais e prosperidade para aqueles que santificarem Seu sábado, o que pode ser verdade em muitos casos. A Bíblia, no entanto, não usa esse tipo de motivo para ordenar a guarda dessa instituição sagrada. Sem dúvida, há grandes vantagens que resultam da observância do sábado, mas estas não representam os motivos que Deus coloca diante de nós para guardarmos o sétimo dia. A verdadeira causa é infinitamente superior a todas as considerações dessa natureza, e deveria levar todas as pessoas a obedecer, mesmo se tivessem a certeza de que isso lhes custaria tudo o que é mais precioso na vida presente. O sábado tem sido defendido mediante o argumento de que ele garante ao ser humano um dia para o culto divino, no qual, por comum acordo, ele possa comparecer diante do Criador. Trata-se de uma consideração muito importante, mas a Bíblia pouco diz a esse respeito. Isso corresponde a uma das bênçãos suplementares do sábado, mas não é o principal motivo para sua observância. O sábado foi ordenado para comemorar a criação dos céus e da terra. A importância do sábado como memorial da criação é que ele mantém sempre viva a verdadeira razão por que a adoração é devida a Deus. Pois a adoração ao Senhor se baseia no fato de Ele ser o Criador e de todos os outros seres terem sido criados por Ele. Logo, o sábado se encontra no próprio alicerce da adoração a Deus, pois ensina essa grande verdade de maneira muito impressionante, e nenhuma outra instituição o faz. O verdadeiro fundamento da adoração ao Senhor, não só a que Lhe é prestada no sétimo dia, mas de toda a adoração, encontra-se na distinção entre o Criador e Suas criaturas. Esse grande fato nunca pode se tornar obsoleto e nunca deve ser esquecido. Para mantê-lo na mente do ser humano, Deus lhe concedeu o sábado. Ele o aceitou em sua inocência, e, a despeito da perversidade de Seu professo povo, o Senhor preservou essa instituição sagrada ao longo de todo o período após a queda do homem. Os 24 anciãos, ao adorar Aquele que Se assenta no trono, declaram o motivo que faz Deus ser digno de ser adorado: "Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas Tu criaste, sim, por causa da Tua vontade vieram a existir e foram criadas. (Apocalipse 4:10-11) Portanto, essa grande verdade é digna de ser lembrada até mesmo na nossa condição glorificada. E aprenderemos agora que, aquilo que Deus deu ao homem no paraíso, a fim de manter essa grande verdade em sua mente, será honrado no paraíso restaurado. O futuro nos é apresentado nas Escrituras proféticas. Com base nelas, aprendemos que nosso planeta está reservado para o fogo e que, de suas cinzas, surgirão novo céu e nova terra, e eras infindáveis. (2 Pedro 3; Isaías 65; Apocalipse 21 e 22)[22] Sobre essa herança glorificada, governará o segundo Adão, o Senhor do sábado, e, sob Sua graciosa proteção, as nações dos salvos herdarão a terra para sempre. (Daniel 7:9,10,13,14,17-27; Salmos 2:7-9; 37:9-11,18-22,34; Malaquias 4:1-3) Quando a glória do Senhor assim encher a Terra, como as águas cobrem o mar, o sábado do Altíssimo será novamente e pela última vez trazido à atenção de todos: "Porque, como os novos céus e a nova terra, que hei de fazer, estarão diante de Mim, diz o Senhor, assim há de estar a vossa posteridade e o vosso nome. E será que, de uma Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante Mim, diz o Senhor.[27] Será que Paulo não estaria se referindo a esses fatos expressos por Isaías ao afirmar: "Portanto, resta um repouso [do grego sabbatismos, literalmente "uma guarda do sábado"] para o povo de Deus" (Hebreus 4:9)[23]? O motivo para essa reunião mensal de todas as hostes dos remidos na nova Jerusalém, provenientes de todas as partes da terra santa, pode ser encontrado em Apocalipse: "Então, me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em mês, e as folhas da árvore são para a cura [literalmente, o serviço][24] dos povos." (Apocalipse 22:1-2) O ajuntamento das nações dos salvos na presença do Criador, provenientes de toda a face da nova terra, a cada sábado, testifica da santidade do sábado mesmo em nossa condição santificada, e coloca o selo do Altíssimo sobre a perpetuidade dessa antiga instituição. com estas palavras: "guardar o sábado". Schrevelius define sabbatismos com esta única frase: "observância do sábado". Ele também deriva a palavra de sabbatizo. Portanto, em grego, sabbatismos é o substantivo que significa o ato de guardar o sábado, ao passo que sabbatizo, de onde o substantivo se deriva, é o verbo que exprime essa ação. Notas: 1. "Quando os batistas do sétimo dia de Londres enviaram para os Estados Unidos, em 1664, Stephen Mumford e, em 1675, William Gibson, eles empreenderam os mesmos esforços, na medida de sua capacidade, que qualquer outra sociedade cristã destinada à propagação do evangelho em terras estrangeiras" (Seventh-Day Baptist Memorial, vol. 1, p. 43). 2. Ch. Hist. of N. England from 1783 to 1796, cap. 11, seção 10. 3. Jas Bailey, Hist. of the S. D. Bapt. Gen Conf., p. 237-238. 4. Seventh-day Baptist Memorial, vol. 1, p. 27-29. 5. Records of the First Baptist Church in Newport, citado em S. D. Baptist Memorial, vol. 1, p. 28-39. 6. Bailey, Hist., p. 9-10. 7. Idem, p. 237. 8. Idem, p. 238. 9. Manual of the S. D. Baptist, p. 39-40; Backus, cap. 11, seção 10. 10. Hist. S. D. Baptist Gen. Conf., p. 15, 238. 11. Idem, p. 46-55. 12. Idem, p. 57-58, 62, 74, 82. 13. Sabbath and Sunday, p. 232. 14. Muitas informações interessantes a respeito dos batistas do sétimo dia dos Estados Unidos podem ser encontradas em Utter, Manual of the S. D. Baptists; Bailey, Hist. of the S. D. Bapt. Gen. Conf.; Lewis, Sabbath and Sunday e no S. D. B. Memorial. 15. Rupp, History of All the Religious Denominations in the United States, 2ª ed., p. 109-123; Bailey, Hist. Gen. Conf., p. 255-258. 16. New York Independent, março de 1869. 17. Semi-Weekly Tribune, 4 de maio de 1869. 18. Essa irmã nasceu em Vernon, Vermont. Seu nome de solteira era Rachel D. Harris. Aos 17 anos de idade, ela se converteu e logo depois entrou para a igreja metodista. Depois de se casar, mudou-se com o marido para o centro do Estado de Nova York. Lá, aos 28 anos, passou a observar o sábado bíblico. Seu pastor metodista fez o que pôde para dissuadi-la de guardar o sábado, mas, por fim, disse que poderia guardá-lo se ela estivesse disposta a permanecer com eles. Mas ela foi fiel a sua convicção do dever e se uniu à primeira Igreja Batista do Sétimo Dia de Verona, condado de Oneida, Nova York. O sobrenome do seu primeiro marido era Oaks, e o do segundo, Preston. Ela e a filha, Delight Oaks, eram membros da primeira igreja de Verona quando se mudaram para Washington, New Hampshire. A mãe morreu em 1º de fevereiro de 1868, e a filha, vários anos antes. 19. O artigo do pastor Preble apareceu no Hope of Israel de 28 de fevereiro de 1845, publicado em Portland, Maine. Esse artigo foi reimpresso na Advent Review de 23 de agosto de 1870. O artigo revisado por Preble e publicado em forma de panfleto também foi impresso na Review de 21 de dezembro de 1869. 20. Ele descansou em 19 de março de 1872, aos oitenta anos de idade. 21. Para conhecer melhor os pontos de vista dos adventistas do sétimo dia, ver seu periódico semanal, Advent Review and Herald of the Sabbath, publicado em Battle Creek, Michigan, por dois dólares anuais, e a lista de publicações anunciadas em suas colunas. 22. Milton assim declara esta doutrina: "O mundo queimará e de suas cinzas surgirão Novo céu e nova terra, nos quais os justos habitarão, E depois de toda sua longa tribulação Verão dias dourados, abundantes de áureas ações, Com alegria e amor triunfantes e a verdade inabalável." Paradise Lost [Paraíso Perdido], livro 3, versos 234-238. "Assim persistirá o mundo, Maligno para os bons, benigno para os maus; Sob o próprio peso, gemendo; até que surja o dia De alívio para os justos, E de vingança para os ímpios, no retorno Daquele que não faz muito prometeu te ajudar, A semente da mulher, no passado obscuramente predito, Agora mais amplamente conhecido, o teu Salvador e Senhor. Por fim, nas nuvens, no céu será revelado Na glória do Pai, para dissolver Satanás com seu mundo perverso, e então criar, Da massa ardente, purificada e refinada, Novo céu, nova terra por eras sem fim, Fundados na justiça, na paz e no amor, Para produzir frutos, alegria e júbilo eterno." Idem, livro 12, versos 537-551. 23. A margem da KJV traduz como "uma guarda de um sábado". Liddell e Scott definem sabbatismos como "uma guarda do sábado". Eles não trazem nenhuma outra definição, mas derivam o termo do verbo sabbatizo, o qual definem apenas. 24. Ver os Léxicos de Liddell e Scott, Schrevelius, e Greenfield.